Dividido em cinco capítulos, Uma introdução à História da Historiografia Brasileira (1870-1970), escrito por Thiago Lima Nicodemo, Pedro Afonso Cristovão dos Santos e Mateus Henrique de Faria Ferreira, avalia as transformações na escrita da história no Brasil e o processo de especialização do ofício de historiador no período. Esse processo se deu em pelo menos dois aspectos conjuntos, tanto por uma lenta distinção dos estudos históricos em relação a outros campos quanto pelo advento das universidades como locais de produção histórica especializada. Ao mesmo tempo, observa-se que a profissionalização do ofício apresentava questões que iam além de um âmbito acadêmico, como os usos da história na análise da sociedade e de seus problemas, o que deveria tornar a história relevante para o futuro. Sem pretender apresentar a “formação”, os “momentos decisivos” ou um cânone da historiografia brasileira, os autores do livro analisam como se deu sua modernização no país, em um processo que esteve longe de ser uma simples apropriação de matrizes exteriores, sobretudo europeias (p.9).
No primeiro capítulo, os autores tratam das transformações no conceito de história e seus efeitos na historiografia brasileira. Com base principalmente em Reinhart Koselleck, os autores notam como a história passou a ser entendida como um conceito de singular coletivo, a História a incorporar as diferentes histórias particulares em si. De um modelo de tempo cíclico, a experiência moderna do tempo passou a apontar para um futuro a ser planejado pelos homens, modelo cujo principal estopim foi a Revolução Francesa. Quanto ao conceito de historiografia, os autores utilizaram uma ferramenta de pesquisa do Google para verificar as ocorrências do termo em espanhol, inglês, francês e alemão a partir de um banco de dados com mais de oito milhões de livros digitalizados1. Apesar dos limites inerentes a esse tipo de pesquisa, nota-se um padrão: de uma ocorrência quase nula até meados do século XIX, a curva de “historiografia” subiu entre os séculos XIX e XX para disparar a partir dos anos 1940-50 (p.19-21). Portanto, seu advento é um fenômeno do século XX, o que os autores do livro apontam como índice de modernização da disciplina.
Além disso, o termo “historiografia” não designa somente a escrita da história, mas a história da sua escrita, da qual os textos de balanço historiográfico são o principal exemplo. Nesse conjunto de textos, fundamental foi o “Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen”, por Capistrano de Abreu. Embora Capistrano oscile entre “estudos históricos” e “ciência histórica”, seu objetivo é avaliar a escrita da história do Brasil e indicar os critérios necessários para sua elaboração. Ainda que o termo “historiografia” não estivesse consolidado, Capistrano percebia a autonomia e as singularidades do saber histórico, num processo autocrítico e reflexivo que se aprofundou até o estabelecimento da história da historiografia nas universidades. Porém, os autores do livro observam que essas mudanças não se reduzem a aspectos teóricos, sendo indissociáveis de dinâmicas de transmissão e reprodução do conhecimento. Assim, a história da historiografia também envolve a construção de identidades profissionais, pois remete a questões de legitimidade e dos limites entre as diferentes disciplinas históricas (p.37-38).
No segundo capítulo, o livro trata da afirmação da história enquanto disciplina especializada no período anterior às universidades, entre o fim do século XIX e começo do XX. Nessa época, o principal historiador a refletir sobre os critérios para a elaboração de uma história em parâmetros científicos foi Capistrano de Abreu. Em seu necrológio de Varnhagen, Capistrano destacava a erudição e conhecimento de fontes históricas daquele autor, assim como seu esforço para elaborar uma história geral do Brasil. Porém, Capistrano considerava esse trabalho incompleto, pois faltavam documentos e estudos especializados suficientes para possibilitar a escrita de uma obra de síntese. Além disso, Capistrano lamentava que a sociologia não tivesse surgido na época de Varnhagen, pois ela permitiria conhecer a lógica dos eventos passados que desembocavam no presente. Assim, o estudo da história não visava mais extrair lições do passado, num modelo de tempo cíclico, mas interpretar sua singularidade e revelar sua evolução (p.51). Teoria e crítica das fontes aparecem assim como dimensões complementares, numa relação tensa e necessária que caracteriza o conhecimento histórico moderno.
No longo processo de profissionalização do ofício de historiador e da escrita da história, o surgimento das universidades foi visto como sinal de uma mudança sem precedentes, tema que ocupa o terceiro capítulo. Com base na trajetória de Sérgio Buarque de Holanda, os autores avaliam como a historiografia se institucionalizou em centros de produção especializados e sob novas referências. No texto “O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos”, Sérgio Buarque fez um balanço da produção em diferentes áreas da história, que a utilizaram ou repercutiram sobre ela. Essa acepção mais ampla permitiu que autores como Gilberto Freyre e Oliveira Vianna surgissem como referências, embora estivessem mais ligados à sociologia. Contudo, o autor mais citado é Capistrano de Abreu, considerado precursor tanto pelos temas de seus estudos quanto pelo aparato crítico de suas obras, aspectos que nortearam a melhor produção histórica posterior (p.78).
Semelhante a Capistrano, Sérgio Buarque considerava que a produção de conhecimento histórico no Brasil passava por monografias especializadas, em vez de obras de síntese. Apesar das diferenças de formação e de época, ambos percebiam as tensões entre teoria e empiria, síntese e estudo monográfico, assim como as possibilidades de reescrita da história (p.84). Assim, os autores do livro consideram Capistrano e Sérgio Buarque exemplos de “homens-pontes”, “elos” entre formas distintas de fazer história, embora as diferentes condições em que aqueles historiadores atuavam não possam ser ignoradas. Nesse sentido, os autores destacam o contexto pós-Segunda Guerra em que Sérgio Buarque escreveu, quando a concepção de história passou a ser vista como um meio de emancipação do passado, e não como fornecedora de modelos de conduta ou objeto de culto.
O fortalecimento das universidades como centros de produção e difusão do conhecimento e os efeitos desse processo sobre a escrita da história do Brasil são o tema dominante no quarto capítulo. Com foco no período entre meados dos anos de 1940 e 1960, os autores apontam como sinais nesse sentido o surgimento das agências de fomento à pesquisa, os primeiros contatos de historiadores brasileiros com os norte-americanos e publicações como o Manual bibliográfico de estudos brasileiros e a Revista de História da Universidade de São Paulo (USP). Contudo, sem perder a dimensão teórica de vista, os autores demonstram como a criação dessas instituições influenciou a reflexão dos historiadores em favor de uma história que relacionasse o estudo do passado com os impasses do presente. Assim, “O sentido da atualidade do passado no presente se entrelaçava com os objetivos da especialização e da profissionalização” (p.108), de onde a descrição do estado da arte serviria para uma melhor análise da conjuntura atual.
Além disso, essas novas produções tinham em comum a preocupação em estabelecer bases de ensino e referências intelectuais que legitimassem a historiografia universitária, relacionando-a com os principais centros do exterior. Dessa forma, na análise da Revista de História os autores destacam a formação de uma memória disciplinar em torno dos Annales, que tanto participaram da “missão” fundadora da USP quanto colaboraram com artigos para a revista (p.114). E na elaboração do manual de metodologia Iniciação aos estudos históricos, voltado aos estudantes de graduação da USP, os autores do livro notam a defesa de uma historiografia que relacionasse a história do Brasil com a Europa, cujos precursores seriam Capistrano e Sérgio Buarque (p.128- 129).
A partir disso, no último capítulo os autores passam a refletir sobre a consolidação da história da historiografia enquanto disciplina universitária nos anos 1960 e 1970. Neste ponto José Honório Rodrigues torna-se a principal referência, pois seus trabalhos foram pioneiros na área e defendiam um projeto pedagógico em que o ensino de teoria e metodologia seria voltado aos cursos de graduação. Ao considerar as debilidades de formação e de ensino então vigentes nas universidades, Rodrigues era uma voz dissonante quanto ao papel dessas instituições enquanto espaço para se realizar uma historiografia profissional (p.146-147). Porém, apesar dessas críticas Rodrigues se tornou a principal referência para trabalhos posteriores na área, como o balanço da historiografia pós-1964 feito por José Amaral Lapa, por exemplo.
Ao mesmo tempo, se no começo dos anos 1970 nota-se um aumento nos estudos sobre história da historiografia, surge a questão de como essa história era ensinada nas universidades e as diferentes propostas nesse sentido. Nesse aspecto, os autores constataram que as ementas de alguns cursos, como em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, dedicavam disciplinas específicas ao estudo da historiografia desde a década de 1940, embora com nomes como “estudos históricos” ou “teoria da história” (p.158-159). E projetos curriculares também constavam nos primeiros simpósios da Anpuh, onde se defendia o estabelecimento de disciplinas sobre historiografia nas graduações, embora não houvesse consenso quanto aos conteúdos a serem ministrados. Por esses debates, percebe-se que a historiografia e a história da historiografia passaram a ser entendidas como parte da formação dos alunos, e não mais como um ramo de estudos à parte nos currículos. Assim, a disseminação do termo “historiografia” implica numa maior reflexão quanto às relações entre sujeito e objeto, a formação e as escolhas feitas pelo historiador.
Por fim, os autores questionam quais os efeitos simbólicos causados pelo advento dessa disciplina entre os profissionais. Afinal, a exemplo do que ocorre em outros campos, a história da historiografia também cria hierarquias e recompõe territórios, inserida num contexto de competição e pluralismo teórico-metodológico das práticas científicas. Diante das várias formas de se escrever a história e de sua popularização entre o fim do século XX e começo do XXI, os autores advertem quanto ao risco de se monumentalizar obras e autores como “inventores” do Brasil. Em vez disso, eles afirmam que cabe refletir sobre os Brasis e brasileiros que esses livros construíram, superando os antigos limites da história enquanto formadora da identidade nacional (p.194). Pois se historiografia é entendida como uma atividade plural, as tensões que constituem essa tarefa acarretam novas questões aos historiadores de hoje, como a abordagem transdisciplinar e a superação de antigas dicotomias, tais como sujeito-objeto, teoria-empiria, históriacrônica, entre outras.
Nota
1 O português não constava na base de dados da ferramenta.
Referências
NICODEMO et al., Thiago Lima. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018, 232p.
ABREU, João Capistrano de. Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro. In: ___. Ensaios e estudos: crítica e história, 1ª série. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos. In: EUGÊNIO, João Kennedy; MONTEIRO, Pedro Meira. Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: EdUerj, 2008.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.
LAPA, José Roberto do Amaral. História e historiografia: Brasil pós-64. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
RODRIGUES, José Honório. Teoria da história do Brasil: introdução metodológica. 5. Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
Resenhista
Tiago Conte – Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: tconteste@gmail.com http://lattes.cnpq.br/9151389362679199
Referências desta Resenha
NICODEMO, Thiago Lima; SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; FERREIRA, Mateus Henrique de Faria. Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018. Resenha de: CONTE, Tiago. História da historiografia e profissionalização do ofício no Brasil. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 5, n. 11, p. 283-289, ago./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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