Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Schreiner/literatura e a construção da nação sul-africana/1880-1902 | Raquel Gryszczenko Alves Gomes

Quais são os caminhos para o estudo de África para além da lusofonia? Existe espaço para a publicação e pesquisa de temas distantes dos países de língua portuguesa? A pergunta anteriormente enunciada revela não somente o itinerário dos estudos africanos no Brasil, como nos deixam pistas de leitura para o texto da historiadora Raquel Gomes.

O título da obra nos sugere um estudo original sobre uma autora Africâner de nascimento e identidade britânica no entardecer do século XIX. Poderíamos chamar Olive Schreiner (1855-1920) de feminista? Esta provocação inicial – até anacrônica -, todavia, pode ser substituída por uma personagem que oferece retrato e resistência às políticas do Império Britânico. Thoughts on South Africa, obra de Schereiner publicada em 1923, por exemplo, revela muito mais sobre os movimentos da autora em torno das questões de identidade sul-africana, como nos demonstra Gomes:

A sul-africana também partilha da ideia de que “(…) um real entendimento do povo sul-africano e de seu problema requer primeiro uma real compreensão do território.” A autora opta assim por iniciar seu texto pautando-se na geografia – longos relatos acerca das montanhas, do céu, do solo, antecedem uma descrição das unidades políticas em que o espaço sul-africano encontrava-se dividido, começando por uma detalhada apresentação da província do Cabo e de sua população” (GOMES, 2013, p.100).

O texto de Gomes nos leva a supor, portanto, que as discussões de gênero e raça, caminhavam simultaneamente com a própria constituição do que atualmente chamamos de África do Sul. Ainda que esta posição se apresente com mais clareza na análise de Thoughts on South Africa, a análise da historiadora nos leva a refletir com frequência sobre as dicotomias “que reforçam o inglês como pertencente ao espaço da urbe e o bôer ao campo, à fazenda, ligado a ideia de arcaico e atrasado em relação ao inglês.” (GOMES, 2013, p. 102,). Schreiner não pode ser entendida como alguém “além do seu tempo” – como Raquel Gomes nos exorta – visto suas posições em torno das questões raciais em curso ao sul da África. Se nosso apreço – como leitor – por Olive Schreiner vacila quando a historiadora nos expõe as visões e discussões da escritora sobre os nativos da África do Sul, a obra Trooper Peter Halket, de 1897, confirma alguns desconfortos da escritora e a contextualiza em uma sociedade específica, dentre as muitas que compunham a África do Sul.

Para compreender as vicissitudes de Schreiner e seus personagens Gomes ambienta o leitor no contexto social e político do que viria a ser a África do Sul entre os anos de 1880 e 1902; demonstrando a articulação de Schreiner em clubes de discussão sobre gênero e sexualidade, por exemplo. A historiadora observa, todavia, que “a presença de Schreiner no grupo, contudo, passou a ser constantemente questionada pelas demais mulheres envolvidas nos debates, que afirmavam que seu ‘comportamento imoral’ faria com que também adquirissem má fama na sociedade” (GOMES, 2013, p.30-31).

Ainda que Schreiner não tenha continuado nos clubes e rodas de conversa das elites, sua escrita tornara-se ferramenta para denunciar a condição da mulher no sul da África nos primeiros anos do século XX:

Enquanto Lyndall torna-se responsável por imprimir a ousadia e o inovador à narrativa, Tant’Sannie é aquela que nos relembra constantemente dos valores que estão sendo questionados – religiosidade, acesso ao conhecimento, casamento, sexualidade. (GOMES, 2013, p. 81, grifos nossos)

Mas que sociedade seria essa que Lyndall, personagem de The Story of an African Farm rejeitava? Filha de missionários moradores de Wittenberg (Nordeste do território sul africano) em 1855, Lyndall foi separada dos pais na adolescência, sendo tutora em fazendas da Colônia do Cabo. Educada em meio aos costumes britânicos, a personagem estaria distante dos hábitos culturais de sua região (majoritariamente formada de Bôeres) sem, contudo, pertencer efetivamente ao mundo britânico. Esta contradição interna é tida por Gomes como um dos propulsores de The story of an African Farm.

Desde o início o texto nos oferece pistas do esforço metodológico de comparação entre biografia, correspondências da escritora e as articulações na escrita ficcional. Ao longo dos capítulos se insinuam as relações do texto de Schreiner com os (des) caminhos da identidade sul-africana. As obras de Schreiner apresentavam – e Gomes demonstra isso – questões chaves para a análise do Imperialismo britânico. Os romances da escritora se prestavam ainda à busca dos britânicos pelo exótico.

Raquel Gomes nos apresenta a literatura de Shcreiner em íntima relação com o contexto político no qual ela se insere. Compreende os privilégios da autora ao mesmo tempo em que expõe o abismo que a escritora vivencia em relação às políticas do Império Britânico e aos caminhos para a identidade nacional sul-africana. Os textos da literata, segundo Gomes , marcam as vicissitudes de um processo político tenso e complexo que ia além da contradição entre ingleses e bôeres. Na chave de uma História política que articula indivíduo e sociedade Raquel Gomes apresenta Schreiner como:

[…] o produto de uma história social específica. […] com o conhecimento que era possível para seu tempo: Depois de Darwin, antes de Freud e durante o período em que o Capital de Marx foi escrito. […] Escrevemos acerca da vida missionária e política […] justamente porque isso era parte de uma cultura europeia, e encaramos a presença missionária nas sociedades coloniais como parte da ação imperialista daquele período. Preconceito racial e cultural eram onipresentes: os sul-africanos anglófonos desdenhavam afrikaners; todos os brancos desprezavam todos os negros (GOMES, 2013, p. 45).

A historiadora explicita como os debates de uma identidade local passavam, necessariamente, pelo seu oposto: a negação de uma “britanicidade” (GOMES, 2013, p. 78). Esta “britanicidade” é entendida pela historiadora como o norte das relações dos personagens e do cenário social e político observado por Schreiner: “desta forma podemos entender que o personagem criado por Olive Schreiner não é traiçoeiro por ser inglês ou irlandês, mas sim por ser britânico – por ser um agente do imperialismo e por corroborar com discursos de dominação e superioridade.” (GOMES, 2013, p. 78, grifos da autora)

O conjunto das relações De Schreiner tanto com figuras ligas ao colonialismo quanto com seus opositores permite um olhar para continente africano raramente possível nas produções acadêmicas brasileiras. Além disso, o texto da historiadora nos permite observar uma identidade britânica fragmentada. Tal fragmentação acaba por reverberar e ressignificar não somente o projeto colonial, mas também as construções de identidade nas ex-colônias inglesas.

Raquel Gomes analisa as várias facetas de uma escritora central nas discussões acerca da identidade sul-africana. A mobilização de periódicos e da fortuna crítica da obra de Schreiner permite a compreensão de uma identidade sul-africana “tradicional, ao mesmo tempo que rebelde” – como diria Edward Thompson em Costumes em Comum (2005) – que se revela nos textos da escritora.

Se Schreiner é uma autora desconhecida do leitor brasileiro, seu aparente “desenraizamento” – citando O homem desenraizado (1990) de Todorov – salta aos nossos olhos, assim como a maior parte da escrita dos viajantes e missionários que nos serve de fonte até hoje. Assim, é possível pensar Olive Schreiner como ao mesmo tempo produto e produtora de modos metropolitanos na colônia, assim como Mary Louise Pratt observou acerca dos viajantes e missionários em “Os olhos do Império” (1999).

Também é possível ler o texto de Raquel Gomes à luz das discussões da História Social da Literatura. Gomes cita tanto historiadores consagrados nesse campo de estudos no Brasil como Sidney Chalhoub, quanto outros menos conhecidos do público brasileiro, como o indiano Partha Chatterjee. A historiadora atualiza os debates mobilizando uma bibliografia sobre África do Sul ainda desconhecida para a maior parte dos historiadores brasileiros.

Por fim, acreditamos que o texto de Raquel Gomes nos apresenta uma visão do colonialismo muito próxima da que Nancy Rose Hunt expõe na Introdução do número 3 da revista Gender and history de 1996:

O colonialismo não pode mais ser visto como um processo de imposição de uma metrópole europeia singular, mas deve ser encarado como ‘camadas entremescladas de reações políticas’ e linhas de projeções, domesticações em conflito entre si que convergiam em mal-entendidos, lutas e representações locais específicas (HUNT, 1996, p. 346).

Assim, devemos entender a história produzida por Gomes como um estímulo para novos e diferentes estudos sobre a África.


Referência

GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Schreiner, literatura e a construção da nação sul-africana, 1880-1902. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2013.


Resenhista

Marcos Paulo Amorim Santos – Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E-mail: marcospaulo_3@hotmail.com


Referências desta Resenha

GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Schreiner, literatura e a construção da nação sul-africana, 1880-1902. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2013. Resenha de: SANTOS, Marcos Paulo Amorim. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 30, n. 2, p. 306-310, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR/JF]

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