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They Were Her Property: White Women as Slave Owners in the American South | Stephanie E. Jones-Rogers

Mulheres frágeis e delicadas, dedicadas exclusivamente aos cuidados do lar, cujas ações estavam pautadas pela maternidade e que não se envolviam nos assuntos escravistas em consequência de seu gênero. Assim foram representadas as mulheres brancas do Sul dos Estados Unidos no antebellum (período anterior à Guerra Civil). O livro de Stephanie E. Jones-Rogers, Professora Associada do Departamento de História da Universidade da Califórnia, campus de Berkeley, contesta a difundida imagem das brancas sulistas como distantes do universo da escravidão, no tocante ao gerenciamento e disciplina da população cativa. O protagonismo dessas mulheres – seu envolvimento nas variadas esferas da escravidão – é escrutinada com detalhes, desfazendo o mito de que não se envolviam nos negócios escravistas. Não eram simples espectadoras, elas participavam ativamente do sistema, na administração, exploração e violência.

They Were Her Property revela como aquelas senhoras brancas não foram meras testemunhas de toda a violência que envolveu a escravidão, atuavam dinamicamente, lucrando e defendendo a instituição. Eram proprietárias e reclamavam por esse seu direito. A autora centra seu olhar nas mulheres casadas, sobre as quais a historiografia construiu a imagem de que não se imiscuíam com assuntos relacionados à escravidão, restritos aos maridos. Diferente das viúvas, que às vezes aparecem nos estudos operando de maneira mais efetiva na gestão de escravizados, às mulheres casadas atribuiu-se um papel secundário, quiçá avesso aos assuntos escravistas. Divergindo dessas análises, Jones-Rogers demonstra como no Sul dos Estados Unidos era muito difícil para qualquer pessoa estar a par do universo cotidiano da escravidão.

A pesquisadora utilizou variada documentação: censos federais, ações judiciais, testamentos, registros de compra e venda de escravizados, imprensa, acordos matrimoniais, petições judiciais e diários femininos. No entanto, sua fonte principal foi o conjunto de entrevistas de ex-escravizados realizada pelo Federal Writers’ Project (FWP) da Works Progress Administration (WPA), em 1935. Os testemunhos dos egressos do cativeiro permitiram à autora apreender as ações das escravistas brancas, que muitas vezes não estavam registradas em outras fontes.

Jones-Rogers sustenta que o poder daquelas mulheres, para contestar a autoridade de seus maridos e outros homens da família, advinha de sua posição como proprietárias de escravos. Portanto, as relações de gênero estavam, se não reguladas, ao menos influenciadas pelo lugar que ocupavam no sistema escravista. Esse é um dos aspectos relevantes do livro, que contribui tanto para a historiografia da escravidão quanto para os estudos de gênero.

Um importante ponto da obra a ser destacado é a desconstrução da maternidade como determinante identitário feminino ou norteadora de atitudes. A autora evidencia como ser mãe não impediu nem influenciou proprietárias em questões relativas à separação de famílias escravizadas, ao emprego de mulheres como amas de leite ou no tratamento violento de suas propriedades humanas, inclusive crianças. Ser dona de escravos era o elemento preponderante em sua identidade.

O livro está dividido em oito capítulos. No primeiro Jones-Rogers mostra como as filhas de proprietários de escravos, desde a mais tenra idade, aprendiam qual era o lugar que ocupavam na sociedade. Como toda criança, o aprendizado se dava pela observação das ações dos adultos, sobretudo de seus pais e familiares. Na infância, quando se aprendia como o mundo ao seu redor se organizava, técnicas para disciplinar e administrar a população escravizada eram vivências recorrentes. Esses contatos influenciavam a maneira como tratariam seus próprios escravos, repetindo os mecanismos aprendidos ou, às vezes, refutando-os. Em ocasiões especiais, pais presenteavam sua prole com pessoas escravizadas, que muitas ganhavam ainda crianças, transformando-se a partir de então em proprietárias. Tornar-se dona de escravos constituía importante elemento na formação da identidade racial e de classe daquelas meninas.

Utilizando relatos de ex-cativos, Jones-Rogers evidencia como se dava o “treinamento” para que meninas se tornassem futuras proprietárias. O aprendizado ocorria quando, por exemplo, mães e pais forçavam seus escravizados a empregarem o tratamento de “Master” e “Mistress” ao se dirigirem aos senhorzinhos e senhorinhas desde o nascimento, objetivando que reconhecessem o poder da criança branca, ou quando permitiam que as pequenas escravistas determinassem quais castigos um cativo receberia por algum desleixo. Logo, toda brutalidade e violência envolvidas na escravidão constituíam parte da formação da senhorinha.

Um aspecto interessante no trabalho da pesquisadora é o relativo à manutenção/ampliação da propriedade escrava. Nesse sentido, o escravista presentear filhas com cativas era uma maneira de possibilitar o incremento de suas posses desde cedo. Cientes disso, elas empenhavam-se em promover a reprodução, inclusive induzindo ou forçando suas escravizadas a terem relações sexuais não consensuais. São ainda mencionadas proprietárias que zelavam pela saúde das crianças e das gestantes escravizadas, um cálculo de que o menor volume de trabalho gerado naquele período poderia trazer rendimentos futuros. Jones-Rogers sustenta que não se tratava de benevolência ou sentimento “maternal”, mas sim a busca de vantagens econômicas que disso poderiam obter.

Quando as senhoras brancas contraíam matrimônio, os escravos que levavam consigo para o casamento, muitas vezes, eram para seu uso e controle exclusivo, ou seja, não se tornariam parte da propriedade do marido. Assim, no capítulo 2, são abordadas as formas como as mulheres casadas administravam seus escravizados. A doutrina legal da “cobertura” (coverture) estabelecia que a esposa era uma protegida (“coberta”) de seu marido e, por isso, o casal tinha uma única identidade jurídica, comandada por ele. Contudo, embora juridicamente em vigor no antebellum, a lei não impediu que muitas mulheres administrassem seus bens autonomamente. Arranjos pré-nupciais, que eram muito comuns, estabeleciam que ao se tornar esposa ela teria total controle legal sobre suas posses, o que incluía seus cativos. A separação de bens do casal era em geral publicada na imprensa, fornecendo uma garantia a mais à esposa no caso de credores do marido pretenderem solicitar os bens da esposa para o pagamento de dívidas.

A autora descortina casos em que, numa mesma residência, os cônjuges tinham, cada um, seus próprios escravos, administrando e disciplinando segundo seus próprios critérios e, quando o marido intervinha nos métodos de gerenciamento da esposa, surgiam conflitos, segundo o testemunho de ex-escravizados. A historiadora argumenta que a contestação à autoridade do marido se fundamentava na sua condição de proprietária de escravos, pois elas não estavam dispostas a perder o controle sobre as pessoas que as serviam desde a infância. Algumas mulheres chegaram a levar seus casos aos tribunais quando maridos ou outros indivíduos intervinham em seus direitos de propriedade. Nesse ponto, Jones-Rogers afirma que, no século XIX, a doutrina da cobertura era uma “ficção legal”, o que era reconhecido, inclusive, por legisladores e membros dos tribunais. Apesar disso, pondera que algumas esposas no Sul escravista tiveram sua vida marcada pela doutrina legal da cobertura. Em todo o período tratado, mulheres casadas ratificavam seus direitos de controle sobre a propriedade escrava e iam à Justiça quando eles estavam ameaçados, desafiando inclusive os próprios maridos. Jones-Rogers interpreta essa questão como evidência de que a concepção hierárquica de gênero muitas vezes não se verificava na prática social.

No terceiro capítulo, a análise centra-se no estilo de gerenciamento das proprietárias. Ex-escravizados afirmaram que as senhoras eram administradoras eficazes e disciplinadoras, descrevendo seu comportamento com os mesmos termos empregados para os senhores. Umas recorriam à brutalidade, outras não, e, raramente, tratavam seus cativos de modo maternal. A historiadora sustenta que a não utilização da violência não deve ser confundida com fraqueza ou benevolência, nem com um desconforto feminino em praticar a crueldade; era, na realidade, estratégia diferenciada de gerenciamento. Essas mulheres brancas assumiam a posição de poder e desafiavam quem tentasse limitar ou se opor a elas, deixando claro que a prerrogativa de administração e punição de seus escravos era exclusiva delas, desautorizando maridos ou feitores de praticarem ações disciplinadoras não autorizadas por elas.

Jones-Rogers argumenta que a hipervigilância necessária ao sistema escravista impunha que todos os brancos tivessem poder potencial sobre a pessoa escravizada. Aquelas mulheres tiveram que lançar mão de estratégias para manter a ordem, não em consequência de seu gênero, mas da resistência da população escravizada que desafiava os proprietários de um modo geral. Quando empregavam violência exacerbada, poderiam parar nos tribunais, recorrentemente saindo impunes, já que as leis sulistas permitiam tanto a eles quanto a elas tal comportamento.

O modo como o mercado de escravos adentrou as casas-grandes e de que maneira foi acessado pelas proprietárias é o tema do capítulo 4. Transações de compra e venda de escravos poderiam se dar nas propriedades e ser protagonizadas por mulheres. Estas conversavam com amigos e familiares sobre suas necessidades e eles estabeleciam os contatos iniciais. Jones-Rogers esclarece que não era necessário que as senhoras fossem elas mesmas aos mercados e leilões de escravos para efetuarem seus negócios. Comerciantes itinerantes, não raro, dormiam ou descansavam nas propriedades sulistas, e lá realizavam transações com homens e mulheres. Proprietárias de escravos podiam, portanto, de várias maneiras, comprar e vender mão de obra escravizada sem precisar sair de casa. A opção por realizar as operações mercantis dentro de casa, todavia, não significa que as mulheres tivessem aversão ao mercado formal.

Algumas instituíam seus maridos ou parentes como procuradores, o que não constituía uma prática exclusivamente feminina. Os intermediários poderiam ser mulheres, como mães, tias e irmãs. Outras senhoras, em contrapartida, se aventuravam no mercado e participavam de leilões públicos. Mas as transações comerciais empreendidas pelas mulheres, diferentes das dos homens brancos, se davam, sobretudo, com parentes homens e amigos da família, reduzindo o nível de risco envolvido na circulação delas fora de seu círculo de sociabilidades. Jones-Rogers sustenta que o fato de muitas das transações não terem sido realizadas por elas diretamente nos mercados formais fez com que seus nomes não constassem nos livros-caixa dos comerciantes, produzindo um falso cenário no qual mulheres não praticavam negócios envolvendo escravos. A exposição, ao longo da vida, a todas as dimensões da escravidão possibilitou que as senhoras sulistas tivessem percepção e traquejo no mercado negreiro. Finalmente, recorrendo à experiência mais ampla no comércio de gente, elas também negociavam alforrias com escravizados que pretendessem comprar a própria liberdade ou a de membros da família.

O mercado de amas de leite no Sul escravista é tema específico do quinto capítulo. As mulheres brancas aparecem no centro dessas transações, para atender uma demanda que transformou o aleitamento em uma forma de trabalho escravo especializado. Os testemunhos de ex-escravizados mostram que o emprego de amas de leite cativas era generalizado, e com base neles a autora contradiz estudos que afirmam serem as amas o último recurso das mulheres brancas para a nutrição de seus bebês. A difusão, no século XIX, do medo de que os bebês pudessem absorver características raciais e morais negativas através da amamentação fez com que a prática de aleitamento empreendido por outra mulher que não a mãe fosse malvista. Contudo, a despeito da condenação social, as mulheres brancas consideravam sua saúde frágil para a tarefa e utilizavam amas para aleitarem e cuidarem de seus rebentos. Ao demandarem tal tipo de especialização, elas foram essenciais para a criação de uma forma adicional de exploração das escravizadas e, com isso, aumentaram seu potencial valor. Além de trabalharem em diversas atividades, as que davam à luz poderiam servir como amas de leite. Nesse sentido, Jones-Rogers aponta mulheres proprietárias que forçavam suas escravas a terem relações sexuais não só para ampliarem a propriedade, mas também para atuarem como amas de leite.

A autora verificou que a escravidão possibilitou a manipulação e o exame do corpo da nutriz de muitas formas. As mulheres brancas adquiriam amas de leite para seus bebês dentro e fora de sua propriedade, constituindo uma rede informal de familiares e amigos que colaboravam para a aquisição do serviço de uma ama de leite. A imprensa também foi utilizada pelos comerciantes de escravos para publicar anúncios de amas de leite escravizadas. Ao comparar os anúncios publicados no Norte com os do Sul, a autora verificou que estes estavam pautados pelo léxico do mercado escravista, logo, quem anunciava sabia que as mães sulistas compreendiam a terminologia e suas implicações, ou seja, a ama de leite anunciada era quase sempre escravizada.

No capítulo 6, a historiadora, de maneira mais contundente, refuta a afirmação de que proprietárias sulistas não frequentavam mercados e leilões de escravos. Operações de compra e venda envolvendo mulheres, que pararam nos tribunais, mostram que elas se envolviam em tais negócios com muita frequência. A presença de mulheres brancas nos mercados de escravos é atestada por viajantes, comerciantes, funcionários municipais e pessoas escravizadas. Jones-Rogers cita exemplos de mulheres que viram mães escravizadas sendo separadas de seus filhos pela venda em leilões e isso não lhes aborreceu ou causou repulsa em consequência de uma suposta sensibilidade feminina ou maternal.

Comerciantes e traficantes de escravos não consideravam uma anomalia a presença de mulheres brancas em pontos de venda e leilões de escravos. Elas examinavam os corpos dos escravizados e averiguavam todas as suas características. Solteiras, casadas e viúvas aparecem na documentação negociando escravos diretamente com comerciantes e traficantes. Nos seus relatos, ex-escravizados lembram que elas atuavam de maneira astuta e calculista no mercado de escravos. Havia também mulheres que tinham “bordéis negros”, cuja existência era garantida por uma combinação entre mercado negreiro e mercado sexual. Jones-Rogers classifica como comerciantes de escravas as donas de prostíbulos que empregavam mulheres cativas. Elas impunham a violência sexual às mulheres escravizadas e, semelhantes a outras proprietárias, as obrigavam a ter relações sexuais não consensuais a fim de aumentar sua riqueza por meio da procriação. Todas as situações de compra e venda por mulheres brancas contradizem a visão de que tivessem uma relação maternal com seus escravizados, fossem homens ou mulheres, adultos ou crianças.

A vivência no período da Guerra Civil (1861-65) para as mulheres proprietárias de escravos e suas tentativas de manterem autonomia e poder fazem o mote do capítulo 7. Jones-Rogers argumenta que o conflito retirou da vida daquelas sulistas sua fonte primária de riqueza, colocou-as em posição de dependência econômica, forçou-as a estabelecer relações com quem tinha recursos financeiros e desestabilizou o poder que detinham dentro de seus casamentos e famílias, uma vez que sua autoridade era consequência da propriedade escrava que detinham. No decorrer da Guerra Civil, elas lutaram para a conservação de sua estabilidade econômica, sobrevivência e independência financeira. O fim da escravidão levou-as a recomeçarem suas vidas sob condições econômicas e materiais muito distintas do que tinham no período anterior.

Ao perceberem que a derrota estava próxima, algumas proprietárias tentaram vender seus cativos ou renunciaram a seu direito de propriedade, forçando-os a saírem de suas terras. Escravizados compreenderam a situação e começaram a se comportar de maneira diferente, fugindo em maior número. Era difícil para as proprietárias impedir a fuga dos adultos, por isso lutaram para manter as crianças ao seu lado, alegando que agiam por amor e desejo de protegê-las.

A abolição foi classificada por uma proprietária da Georgia como “um roubo sem precedentes”. A vivência dessas mulheres no pós-emancipação é analisada no último capítulo. Os efeitos econômicos do fim da escravidão em suas vidas foram sentidos de maneira profunda. Algumas negaram a liberdade aos ex-escravizados, obrigando-os a trabalhar de maneira compulsória. A historiadora defende que a escravidão e a propriedade humana constituíram elementos fundamentais da identidade das mulheres sulistas. Laços ideológicos e sentimentais com a escravidão foram fundamentais para seu comportamento depois da abolição.

Após a guerra algumas mulheres brancas não se adaptaram às novas relações de trabalho, reclamando que antigos escravizados não estavam dispostos a trabalhar adequadamente, e as estratégias de controle do trabalho tiveram que ser readequadas. Outras, no entanto, conseguiram estabelecer contratos assalariados, visto que antes já estavam acostumadas a negociar acordos com escravizados que buscavam comprar suas alforrias. Mulheres não escravistas tinham experiência em negociar com trabalhadores contratados, o que lhes propiciou uma vantagem no pós-abolição. Dentre os traumas provocados pela guerra nas antigas senhoras, além das perdas humanas, estão as financeiras, sobretudo a posse de escravos. Perderam a posição que ocupavam na casa e a autonomia face ao marido, o que decorria de serem donas de escravos.

O livro oferece uma abordagem muito interessante e inovadora. Contudo, não nos permite ter a dimensão de quantas proprietárias tinham título de posse separado do de seus maridos ou, de maneira mais precisa, qual a quantidade de mulheres que conseguiram autonomia para administrar seus bens independentemente de maridos e familiares masculinos. They Were Her Property muda a compreensão acerca das relações que mulheres brancas do Sul dos Estados Unidos tinham com a escravidão e das relações de gênero estabelecidas. Seria interessante comparar com o que se passou em outras sociedades escravistas como o Brasil.


Resenhista

Karoline Carula – Universidade Federal Fluminense. https://orcid.org/0000-0003-2143-1240


Referências desta Resenha

JONES-ROGERS, Stephanie E. They Were Her Property: White Women as Slave Owners in the American South. New Haven: Yale University Press, 2019. Resenha de: CARULA, Karoline. Elas compravam, vendiam e castigavam: mulheres brancas no sul escravista dos Estados Unidos. Afro-Ásia, n. 64, p. 627-635, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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