The Quest for a Moral Compass: A Global History of Ethics | Kenan Malik

A Ética é uma das áreas da filosofia de relevância mais direta para nossa vida cotidiana, chegando mesmo a definir o que alguns filósofos, dentre eles I. Kant, denominaram de ³filosofia prática´. É também por isso mesmo uma de suas áreas mais interdisciplinares, com importantes intersecções com a antropologia, o direito, a sociologia, a ciência política, a história, e as ciências naturais e biológicas, apenas para destacar algumas.

Kenan Malik parte de uma hipótese interpretativa segundo a qual a Ética deve ser analisada em uma perspectiva histórica. É uma posição que vem ganhando força mais recentemente e que vai contra as correntes universalistas e principistas em Ética segundo as quais, mesmo que valores tenham uma relação com o contexto histórico de uma sociedade e decisões sejam sempre tomadas em determinadas situações, ainda assim precisamos definir princípios que tenham efetivamente um caráter universal, ou seja, que mesmo que em um sentido muito geral e abstrato sejam válidos para todos e para sempre. Malik busca encontrar uma posição entre o formalismo abstrato, muito distanciado da experiência concreta dos seres humanos e de um relativismo reducionistas em que o contexto explica tudo. Seja quais forem as circunstâncias é sempre necessário aos seres humanos e às sociedades a que pertencem, e o autor examinava vários exemplos bastante significativos, uma “bússola´ ética, ou seja, um conjunto de valores e princípios que orientam nossa tomada de decisão.

Malik começa a desenvolver seu argumento a partir do que considera o próprio surgimento da Ética na tradição ocidental, ou pelo menos, da caracterização de valores que, vistos como fundamentais em uma sociedade em um momento determinado, se tornaram pontos de partida da tradição. Trata-se da guerra de Tróia tal como nós a conhecemos através da Ilíada, talvez o texto fundacional da tradição literária ocidental e cuja narrativa teve uma influência determinante em toda essa tradição. A Ilíada, mais do que a Odisséia, foi o texto de referência, inicialmente no período arcaico em sua transmissão oral, que educou a sociedade grega, sendo seus grandes temas e valores retrabalhados e refinados na tragédia grega e posteriormente no pensamento filosófico. Ainda que a filosofia em Platão e em Aristóteles tenha se distanciado criticamente desse primeiro momento, a base dos valores éticos se encontra nos textos provenientes do período arcaico.

Malik não é um filósofo de formação, sua área é a biologia, particularmente a neurobiologia, mas também a história da ciência. E é essa perspectiva que explica em grande parte sua discussão da Ética em um sentido mais amplo e menos formal. Nascido na Índia em 1960, foi educado na Inglaterra e vem atuando de maneira ampla na mídia e no meio acadêmico, sendo hoje visiting lecturer na Universidade de Surrey no Reino Unido. Militou ativamente pelos direitos dos imigrantes, polemizou sobre os direitos dos animais, defendendo a importância do uso de animais em pesquisas científicas, e discutiu criticamente o multiculturalismo, defendendo o racionalismo e os valores do Iluminismo. Suas publicações anteriores sobre multiculturalismo e o Islamismo na sociedade europeia, principalmente britânica, tiveram grande repercussão e já antecipam em muitos aspectos a discussão ética consolidada em The Quest for a Moral Compass. Este livro retoma, amadurece e aprofunda questões presentes nas obras anteriores e preocupações com a sociedade contemporânea, valorizando agora a perspectiva histórica e as diferenças culturais, mas contendo também preocupações centrais com valores fundamentais. Seria possível identificar valores comuns a todas as sociedades?

Nem sempre os filósofos fazem uma distinção clara entre os termos “ética´ e “moral´. Na verdade o conceito de ética, tal como o conhecemos, foi introduzido por Aristóteles em uma de suas obras mais importantes, a Ética a Nicômaco. E o termo grego “ética´, usado nesse sentido pela primeira vez por Aristóteles, foi traduzido para o latim por “moral´. Portanto, literalmente, não há nenhuma diferença. Contudo, quando alguma distinção é feita geralmente se reserva o termo ´ética´ para uma discussão mais teórica, enquanto que o termo “moral´ tem um sentido mais aplicado‑ mas essa distinção raramente é precisa ou consistente. É significativo portanto que Malik use já no título o termo “moral´. Moral significa nessa discussão os valores que adotamos nas decisões que tomamos e que desta forma nos servem para justificá-las e legitimá-las. Por outro lado, seu subtítulo consiste em “uma história global da ética´, passando então para um plano mais conceitual. Em suas reflexões, Malik articula assim as duas dimensões, a ética e a moral, se perguntando, por um lado, sobre o caráter global ou universal de acordo com o uso encontrado na filosofia, e por outro lado, o sentido aplicado levando em conta os valores socioculturais e as decisões que tomamos com base neles.

Em seguida à análise do surgimento desses temas na tradição grega, o autor examina uma das questões mais centrais da discussão sobre ética: sua relação com a experiência religiosa e a necessidade, ou não, de fundamentação dos valores e princípios éticos em um Ser Supremo ou em um plano transcendente. Ao longo da obra essa questão é discutida não só no Cristianismo ocidental, mas também em outras culturas como o Islamismo e o Hinduísmo. A Ética supõe o pensamento e a experiência religiosos? Malik inicia este debate com a célebre afirmação de Nietzsche “Deus está morto”, na verdade um uso talvez irônico de um verso de um hino cantado na Sexta-Feira da Paixão, quando Cristo está morto e depois ressuscitará. Essa afirmação é radicalizada por Dostoievsky para quem se Deus está morto então tudo é permitido. A ética pressupõe necessariamente um fundamento religioso, como quis Kierkegaard, ou isso seria abrir mão de nossa racionalidade? 2 “salto da fé´ kierkegaardiano não é uma solução porque, como lembra Malik, segundo este filósofo “o paradoxo da fé consiste em que o particular se eleva em relação ao universal´. E a experiência da fé, no sentido acima, tem sempre inevitavelmente uma dimensão individual, subjetiva.

Uma das contribuições mais relevantes dessa obra ao debate ético consiste precisamente no exame de outras tradições culturais para além da ocidental. Sem cair nos impasses do multiculturalismo que relativiza valores e posições éticas e ao mesmo tempo evitando o formalismo racionalista, Malik procura levar em conta outras experiências, não só contemporâneas, mas também históricas. A grande questão aí, contudo, parece ser: se “ética´ é um termo cuja formulação remonta a Aristóteles e à tradição grega, em que medida podemos estender coerentemente esse conceito para outras tradições, por exemplo, o Confucionismo e o Hinduísmo. O caráter político-jurídico do Confucionismo parece favorecer isso, no Hinduísmo parece mais distante. Haveria “ética´ fora da tradição ocidental, podemos generalizar o sentido de “ética´ ou simplesmente se tratam de experiências e tradições tão distintas que esse termo só pode se aplicar metaforicamente. Mesmo assim, Malik propõe que essas alternativas são relevantes para a tradição ocidental e permitem repensá-la.

O capítulo 5, intitulado “Nirvana´, procura elaborar as questões chave da ética, como os valores e seus fundamentos, a partir de culturas radicalmente distintas da ocidental como o Hinduísmo e o Budismo, com diferentes concepções do “eu´, da divindade e do destino, o “karma´. Mas, as questões éticas originárias, a busca por valores que orientam a ação também aí se encontram. No capítulo seguinte temos uma discussão das tradições Confucionista e Daoísta, ampliando assim a visão das tradições “não-ocidentais´, mostrando sua diversidade e ressaltando que, sem se oporem à ocidental, podem representar alternativas de pensamento e de conduta e levar a uma reflexão recíproca. O Islamismo é igualmente examinado em sua origem, mas também em sua relação com o pensamento ocidental do qual pode ser considerado o mais próximo e historicamente com mais contato. Essas reflexões são de grande relevância para o mundo europeu hoje, sobretudo no contexto das imigrações.

A concepção de uma ética religiosa, cujo fundamento último é a experiência da fé, pode ser contrastada com uma ética filosófica ou racional, a ética característica do humanismo cujo fundamento é a razão humana. A ética teria dois tipos de fundamento ou trata-se simplesmente de duas concepções gerais de ética radicalmente diferentes? Essa questão não tem, e talvez não possa ter uma só resposta clara e direta.

Dados os interesses de Malik e sua defesa do racionalismo, uma ausência chama a atenção, Sigmund Freud e a teoria psicanalítica, que recebem uma única e breve menção na página 30, mas cuja teoria do inconsciente é central para a discussão sobre o alcance do racionalismo e o sentido do humanismo.

O último capítulo, intitulado “A queda do homem” (The Fall of Man) retoma as questões iniciais e as examina à luz do longo percurso do livro através das principais discussões sobre ética na filosofia ocidental e das tentativas, algumas talvez mais bem sucedidas do que outras, de aproximá-las das várias vertentes do pensamento universal. Todo esse percurso aponta para um inevitável pluralismo de ideias e de experiências sociais e culturais. O que não invalida as aproximações e interlocuções possíveis. Sua conclusão enfatiza uma ética que tem como princípio-chave o ser humano e como valor moral a responsabilidade que nos cabe, “A escolha é nossa” (“The choice is ours”), conclui.

O dilema em relação ao universalismo permanece. O próprio conceito de universal é fruto da cultura ocidental e se projeta sobre as outras culturas. Haveria um conceito de universal no Hinduísmo ou no Confucionismo? Ou isso não passa mais uma vez em grande parte de um resultado da hegemonia teórica do pensamento europeu ocidental?


Resenhista

Danilo Marcondes – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: danilosouzafilho@gmail.com


Referências desta Resenha

MALIK, Kenan. The Quest for a Moral Compass: A Global History of Ethics. Brooklyn e Londres: Melville House, 2014. Resenha de: MARCONDES, Danilo. A necessidade de uma bússola moral. Afro-Ásia, n. 57, p. 231-234, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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