No livro aqui resenhado, Lúcio de Sousa pretende atingir três objetivos. Um deles consiste na reconstrução do que denominou de sistema de tráfico de escravos japoneses, chineses e coreanos, que operou no seio de redes mercantis portuguesas estabelecidas na Ásia marítima oriental. O segundo objetivo do autor consiste na reconstituição das “comunidades japonesas” estabelecidas em territórios que estiveram sob a influência das Coroas ibéricas. O terceiro objetivo é analisar o impacto do tráfico de escravos japoneses sobre a legislação ibérica produzida nos séculos XVI e XVII, que inclui o período da união das coroas luso-espanholas (1580-1640).
O livro é composto por oito capítulos. O primeiro capítulo, “O estágio chinês” (“The Chinese Stage”) trata dos primórdios do tráfico praticado pelos portugueses, que funcionava ainda de forma não regulada na primeira metade do século XVI, em um contexto em que atuavam mercadores privados, contrabandistas e piratas que navegavam nos mares da China. Nessa fase, os escravizados seriam predominantemente de origem chinesa, adquiridos por meio de sequestro, da venda (ou oferta como penhor) de filhos pelos pais em situação de extrema necessidade, de saques realizados por piratas nas zonas costeiras da China. Levados para o Japão, os cativos eram comprados por portugueses, que muitas vezes se serviam deles para fins bélicos (“escravos de peleja”). O capítulo também analisa as mudanças que ocorreram a partir da década de 1550, quando os portugueses receberam permissão de autoridades locais chinesas para o estabelecimento formal em Macau, bem como fora instituída a rota comercial Goa-Malaca-Macau-Nagasáqui. Navios mercantes eram enviados regularmente de Macau para o Japão, carregados de seda, ouro e outros produtos. No regresso do Japão a Macau, os portugueses traziam prata, cobre e escravos. Segundo Lúcio de Sousa, essa dinâmica mercantil teria criado condições para que Macau se tornasse um centro de exportação de escravizados. Afirma que muitos dos chineses levados para o Japão foram revendidos posteriormente em diversos portos da Ásia ou mesmo levados para a Europa (p. 28).
O capítulo seguinte, “O estágio japonês” (“The Japanese Stage”) concentra-se nos anos 1570 a 1592, contexto em que japoneses, muitos dos quais capturados no âmbito de guerras locais, teriam predominado entre os escravos comprados pelos portugueses no Japão. Além disso, Nagasáqui fora concedida aos jesuítas, graças ao papel de um daimiô (espécie de senhor de terras local) cristão, iniciativa que favoreceu a atividade tanto dos missionários quanto dos mercadores portugueses naquela região do Japão, o que permitiu o estabelecimento de uma estrutura mais complexa ligada ao comércio de cativos. O terceiro capítulo, “O estágio coreano” (“The Korean Stage”) abrange o período de 1593 a 1598, quando houve o declínio do número de japoneses escravizados, num contexto em que o Japão moveu campanhas militares contra a Coreia. Um dos resultados foi o transporte de coreanos prisioneiros de guerra para o Japão, uma parcela dos quais foi escravizada e comprada por portugueses, que os transportaram para diversos portos da Ásia.
O quarto capítulo, “Reorganização do tráfico português de escravos” (“Reorganization of the Portuguese Slave Trade”) discute a reorientação do tráfico após a abertura da rota marítima que passou a conectar territórios sob influência portuguesa (caso de Macau e Malaca) às Filipinas. Segundo o autor, nessa nova conjuntura verificou-se o colapso do tráfico de escravos japoneses por meio da rota Nagasáqui-MacauMalaca-Cochim-Goa. Os portugueses não teriam deixado de adquirir escravizados em Nagasáqui, todavia, operavam em escala mais reduzida e com o intuito de atender a demanda local. O redirecionamento do tráfico esteve associado à atenção concedida pelos portugueses às Filipinas, para onde passaram a transportar cativos chineses e oriundos do Sudeste Asiático, da Índia e de Moçambique. A comunicação entre Filipinas e México tornou-se regular por meio do Galeão de Manila, em que foram transportados produtos asiáticos, prata americana e pessoas escravizadas. Agentes portugueses tornaram-se importantes fornecedores de cativos para abastecer o mercado de Manila, de onde eventualmente eram levados para a América, via oceano Pacífico.
Nos quatro capítulos mencionados, o autor aborda, segundo as fases da organização do comércio de escravos, desde seu transporte esporádico até a instituição de um sistema mais complexo, que é detalhado no capítulo cinco, “A estrutura da escravidão portuguesa no Japão” (“The Structure of Portuguese Slavery in Japan”), em que trata dos diferentes agentes envolvidos na captura, venda e transporte dos escravizados, bem como da construção das embarcações e de sua tonelagem, além de fornecer algumas pistas acerca dos valores pagos na compra de asiáticos escravizados e um levantamento acerca das viagens comerciais realizadas por portugueses com destino ao Japão.
No sexto capítulo, intitulado “Estudos de caso: atravessando diásporas” (“Case Studies: Crossing Diasporas”), o autor aborda a experiência de quatro personagens: Vitória Dias, cativa chinesa levada para Portugal pelo comerciante Henrique Dias Milão e processada pela Inquisição de Lisboa por suspeita de ser judaizante; Gaspar Fernandes, escravo japonês que pertencera à família do mercador Rui Perez e foi levado da Ásia para o México; Miguel Carvalho, descendente de coreanos nascido em Macau; e Jerônimo Iyo, japonês escravizado que se tornou “moço de serviço” da Companhia de Jesus, recebeu ordenação sacerdotal em Manila e sofreu o martírio no Japão.
O sétimo capítulo intitula-se “O mundo ibérico e a diáspora japonesa” (“The Iberian World and the Japanese Diaspora”), e não é centrado na análise do tráfico de escravos, na medida em que explora a circulação e o estabelecimento de japoneses em territórios da Ásia, América e Europa que estiveram sob influência portuguesa ou espanhola, caso de Macau, Goa, Filipinas, México, Peru, Argentina ou nos próprios reinos de Portugal e Espanha. Trata das múltiplas formas de inserção social de japoneses e japonesas em tais ambientes geográficos: mercenários, mercadores, escravos domésticos, estudantes do Seminário da Companhia de Jesus, intérpretes, entre outras ocupações.
O último capítulo, “Escravidão japonesa e legislação ibérica” (“Japanese Slavery and Iberian Legislation”), pretende investigar como um conjunto de leis produzidas no mundo ibérico (tanto reinóis quanto ultramarinas) tentaram regulamentar a escravização de japoneses nas regiões asiáticas que estiveram sob influência lusa. Entre as fontes analisadas constam decretos dos concílios provinciais de Goa (celebrados entre 1567 e 1606), provisões régias, cartas e consultas redigidas por jesuítas que comentaram aspectos da escravidão no Japão. Outra fonte investigada foi um manuscrito atribuído ao padre Francisco Rodrigues, S. J., documento de onde Lúcio de Sousa extraiu os tópicos relacionados à questão do tráfico de escravos e do cativeiro de japoneses.
Acerca da organização do livro, a escolha da ordem dos capítulos nem sempre foi favorável ao desenvolvimento da argumentação, pois a narrativa sofre algumas interrupções ao longo da obra. No sexto capítulo, por exemplo, cujo objetivo era tratar dos estudos de caso, o autor retorna a temáticas gerais, mais precisamente ao envolvimento dos jesuítas no tráfico de escravos, o que suspende a exposição dos casos. Além disso, a análise detida sobre a legislação de matriz ibérica a respeito da escravização de japoneses poderia ter sido apresentada anteriormente e não como último capítulo da obra, pois não parece que o coroamento da pesquisa do autor seja a discussão sobre essa legislação.
A estrutura de The Portuguese Slave Trade in Early Modern Japan assemelha-se à de outro livro publicado por Lúcio de Sousa, em 2014, intitulado Escravatura e diáspora japonesa nos séculos XVI e XVII, ainda que nesse livro anterior a ordem dos capítulos seja distinta. Ali o objetivo central foi tratar da escravidão e da diáspora japonesa, sendo inclusive o título do livro. De certa forma, esse propósito mantém-se no livro aqui analisado, na medida em que o autor considera que as implicações da presença japonesa nas regiões sob influência dos Habsburgos “são completamente desconhecidas” e que não haveria nenhum estudo que tivesse se detido atentamente a recapitular o “fenômeno da escravidão japonesa e de sua diáspora” (p. 1) entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do XVII, propondo-se ele a enfrentar esta tarefa.
Na obra em pauta, um dos procedimentos adotados foi apresentar os vários episódios documentados de escravos japoneses (chineses e coreanos) cuja captura, venda ou transporte teve alguma relação com as redes mercantis portuguesas (e ibéricas, em geral, no que concerne ao período de 1580 a 1640) atuantes nas regiões estudadas. O autor realizou um minucioso levantamento de diversas microtrajetórias de asiáticos escravizados e alforriados, listadas em tabelas, porém as referências às fontes poderiam ter sido indicadas para cada caso individualmente e não agrupadas ao final da tabela, o que dificulta a identificação da fonte correspondente.
Em relação à citação das fontes, alguns trechos suscitam dúvidas acerca da tradução (ou da interpretação) delas, como o referente a Juan Antón, que o autor descreveu como um japonês levado para o México, que teria comprado a sua própria alforria e cujo senhor era um escravo negro (p. 290 e 445). Contudo, um excerto do original em espanhol cita três personagens (o japonês Juan Antón, um “negrillo” e dom Juan Viscaíno, que era senhor do “negrillo”, mencionados no artigo de Eikichi Hayashiya citado pelo autor), de modo que não fica claro quem foi alforriado por quem, o que dificulta a confirmação da conclusão do autor decorrente de sua abordagem de Juan Antón: “Esse excerto demonstra a aquisição de pessoas japonesas por escravos africanos” (nota 130, p. 290).
De modo geral, pode-se considerar que Lúcio de Sousa empreendeu um grande esforço para coligir fontes primárias e secundárias tanto sobre o envolvimento de portugueses na captura e no comércio de asiáticos escravizados (com foco em japoneses, chineses e coreanos), quanto a respeito da circulação desses asiáticos em regiões de influência ibérica, o que realizou por meio de investigação em arquivos e bibliotecas situadas principalmente em Portugal, Espanha, Itália, México, Macau e Tóquio. O livro resulta, portanto, desse trabalho de reunião de informações oriundas de fontes e da historiografia relacionadas a tantos espaços geográficos distintos que, embora distantes entre si, encontravam-se conectados pelas dinâmicas mercantis (ou missionárias) do período. Este é um dos pontos fortes do livro.
Acrescente-se que o autor mobilizou diferentes tipologias documentais em sua pesquisa, que incluiu processos inquisitoriais, relatos de cronistas da expansão lusa, martirológios, registros paroquiais, testamentos, diários de bordo da Carreira da Índia (rota marítima regular que ligava Portugal ao Índico), provisões régias, atas de concílios provinciais, cartas e outros escritos elaborados por jesuítas.
Em função da variedade de questões tratadas, o livro tem o potencial de atrair uma ampla audiência interessada em história marítima, tráfico de escravos no Índico e no Pacífico, história dos jesuítas no Japão, estudos inquisitoriais e redes mercantis de cristãos-novos. No entanto, ao propor a reconstituição e a análise de tantos temas ao mesmo tempo, a obra tenderá a ser alvo do escrutínio de especialistas em diferentes domínios, exigentes quanto à aferição do contributo da pesquisa ao seu campo específico de estudos. Assim, a redução do escopo da obra e o aumento da atenção concedida a questões conceituais e metodológicas poderiam ter favorecido o exame mais verticalizado de algumas questões, bem como o aprofundamento da análise do corpus documental elencado pelo autor, que é vasto e fecundo, mas que também apresenta desafios em sua exploração.
Em linhas gerais, para tentar atingir os três objetivos da pesquisa, o autor procurou entrelaçar as ações e a vida de mercadores, jesuítas e escravos nas zonas de influência ibérica na Ásia, seguindo os deslocamentos geográficos de asiáticos (escravizados ou não) para outras regiões (Portugal, Espanha, México, Peru e Argentina). Os estudos de casos são enredados na narrativa sobre as conjunturas que afetam as dinâmicas mercantis, as rotas marítimas e a circulação de escravizados. No que concerne às conclusões da pesquisa, o autor afirma que teriam ocorrido transformações no tráfico operado por meio das redes mercantis portuguesas, no eixo Macau-Japão, que deixariam de funcionar com o transporte esporádico de escravos para se tornar uma atividade crescente e lucrativa no final do século XVI. Nesse sentido, o autor considera que o tráfico de escravos no Japão teria deixado de ser regional para assumir uma dimensão transnacional e intercontinental, embora ele reconheça as dificuldades encontradas para mensurar a quantidade de escravos transportados e a dimensão precisa das embarcações portuguesas que operavam nas rotas Macau-Japão ou com destino às Filipinas.
Em suma, a leitura de The Portuguese Slave Trade in Early Modern Japan oferece uma oportunidade para que se conheçam aspectos do tráfico de escravos e da escravidão na Ásia, especialmente relacionados ao Japão. Por fim, vale ressaltar que o livro sistematiza múltiplas informações – dispersas em diferentes arquivos – que permitiram o levantamento de percursos de vida (sobretudo de japoneses) que transitaram por portos do Japão, pelos mares da China, para regiões da Península Ibérica (Lisboa, Serpa e Sevilha) e para a América (Acapulco, Guadalajara, Córdoba, Lima) entre os séculos XVI e XVII. Ao direcionar o foco para o tráfico de escravos praticado além do mundo Atlântico – mais investigado pela historiografia que circula no Brasil –, o livro lança o nosso olhar para outras paragens, deixando que se revele o movimento de populações de diversas origens capturadas e transportadas por outras águas, cruzando o Índico e o Pacífico.
Resenhista
Patricia Souza de Faria – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. https://orcid.org/0000-0002-5125-2940
Referências desta Resenha
SOUSA, Lúcio de. The Portuguese Slave Trade in Early Modern Japan: Merchants, Jesuits, and Japanese, Chinese, and Korean Slaves. Leiden: Brill, 2019. Resenha de: FARIA, Patricia Souza de. Escravos japoneses, chineses e coreanos nas redes mercantis portuguesas (séculos XVI E XVII). Afro-Ásia, n. 64, p. 593-599, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]
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