A cultura digital do século XXI transformou as nossas formas de consumir e produzir informação. A reprodutibilidade técnica propiciada pela criação da prensa de Gutenberg alcançou um novo patamar com a Internet e as nuvens de armazenamento de dados. A portabilidade do computador com a criação dos smartphones possibilita que as pessoas possam reproduzir fotografias na quantidade que desejarem. A Revolução da Informação também contribuiu para a digitalização de acervos de museus e arquivos, onde estão milhares de fotos em preto e branco que, antes, eram inacessíveis ao historiador. Ao mesmo tempo, a criação de softwares de edição de imagem permitiu a formação de novos artistas, ligados às culturas visual e digital contemporâneas. A obra The colour of time: a new history of the world procura responder a este mundo da convergência, que alia a arte digital ao ritmo rápido e conciso do texto da TV. A especialista em imagens digitais Marina Amaral aperfeiçoou a técnica antiga dos coloristas de fotografias em preto e branco utilizando softwares de edição e de seu olhar apurado de artista. Já o historiador e jornalista inglês Dan Jones guia o leitor com textos curtos e concisos sobre os fatos históricos e as fotografias originais.
Marina Amaral e Dan Jones são profissionais do século XXI, em que as novas tecnologias digitais estão modificando o ensino atual nas escolas e nas universidades. Os autores surgiram da cultura contemporânea, necessariamente visual, e influenciada pela imagem virtual e digital. São 200 fotografias em preto e branco que se transformaram em imagens coloridas de fatos marcantes do período de 1850 a 1960. Uma forma de renovação dos livros de História que pode reanimar um mercado editorial que ainda não sabe se seguirá o caminho digital ou analógico ou aliar os dois mundos.
O livro está dividido em dez capítulos, divididos por décadas, em ordem cronológica. Os autores contam no prefácio da obra que olharam cerca de 10.000 fotografias em dois anos, já que algumas não eram possíveis de serem produzidas em cores com a qualidade e nitidez necessárias aos olhos da artista (JONES, AMARAL, p.9). Dan Jones segue a máxima dos textos jornalísticos para a TV, “de casar o texto com a imagem”, sem abrir mão do conteúdo. Os textos que contextualizam as imagens têm como características serem informativos, claros, concisos e compostos de palavras simples, de fácil compreensão (PATERNOSTRO, 2006). Eles são acompanhados de pesquisas de citações retiradas de livros, cartas, impressos, discursos transcritos e periódicos de época. Por exemplo, a fotografia do terremoto de São Francisco, em 1906, aparece acompanhada de um trecho de uma reportagem do jornal San Francisco Call-Chronicle Examiner: “Death and destruction have been the fate of San Francisco city is a mass of smoudering ruins”2 (JONES, AMARAL, 2018, p.202), a imagem de um combate vista da perspectiva de um tripulante do navio HSM Audacious tem uma carta do Tenente Humphrey T. Waldwyn de 1916 a respeito da guerra no HSM Warspite: “There was a terrific flash and shock and I was knocked endways…my eyes full of water and dust…realized it was pretty hot and we were getting heavily hit…” 3 (JONES, AMARAL, 2018, p.249).
As fotografias não foram selecionadas sem uma perspectiva historiográfica e empírica do historiador Dan Jones. Entre as escolhas dos autores estão retratos de personalidades como a Rainha Vitória, Abraham Lincoln, Nelson Mandela e Albert Einstein, cenas de guerra com anônimos, famosos em fotografias publicadas em jornais de grande circulação, como Marilyn Monroe e Mahatma Gandhi, e outras que se tornaram icônicas, como a detonação de uma bomba nuclear norte-americana conhecida como “Helen do Biquini”, no Atol de Biquini (JONES, AMARAL, p.425). A diagramação do livro privilegia as imagens, e o formato da publicação se aproxima de um livro de fotografia. Logo no início o leitor encontra uma linha do tempo com os principais fatos de cada década, o que costuma aparecer em publicações deste tipo.
O uso de coloração em fotos não é novo. Daguerreótipos em preto e branco eram pintadas à mão em lugares em que a técnica foi popularizada, como a Europa, os Estados Unidos e o Japão, do final do século XVIII até a criação do filme colorido. O pintor e impressor suíço Johann Baptist Isenring é considerado o autor dos primeiros daguerreótipos coloridos manualmente com uma substância criada com pigmentos e goma arábica, em 1841 (MARCONDES, 2004, p.3). Como todo processo de criação de novas tecnologias, ele foi aperfeiçoado posteriormente por outros inventores. A fotografia colorida se tornou muito popular no Japão e era considerada uma obra de arte. Muitos artistas se destacaram na pintura de daguerreótipos, como o fotógrafo Felice Beato e o colorista Charles Wirgman. O fotógrafo Yokoyama Matsusaburō criou a técnica shashin abura-e (pinturas a óleo fotográficas), cobrindo as fotografias com tinta a óleo. O trabalho mais famoso é o do fotógrafo japonês e colorista Kusakabe Kimbei, que retratou cenas cotidianas de cidades japonesas e realizou retratos em estúdio de samurais a partir de 1881.
Assim, as fotografias coloridas manualmente por pintores, fotógrafos e artistas se tornavam mais realistas para o espectador e eram símbolo de status para a classe média no início do século XX. Os retratos e paisagens pintados manualmente eram adquiridos como presentes de casamento, de Natal e lembranças de férias. Era comum emoldurar os retratos coloridos posados em estúdios fotográficos dos daguerreotipistas, tal qual as pinturas a óleo. No Brasil, a popularização do retrato colorido data de 1940, com a formação dos primeiros estúdios em cidades como Rio de Janeiro, Salvador e Recife. (MARCONDES, 2004, p.5). Como aconteceu na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, as fotografias eram restritas às elites, que reafirmavam os seus valores com a inserção de ícones representativos nos retratos, como vestimentas e adereços (MARCONDES, 2004, p.5). Portanto, a maioria das imagens produzidas por meio do desenvolvimento das técnicas fotográficas estão em preto e branco neste início da popularização.
A coloração dos daguerreótipos e o aperfeiçoamento das técnicas que permitissem a criação das imagens em cores mostra o fascínio pela ilusão do real nas fotografias. A criação da Internet possibilitou a mudança de suporte do papel para o computador e o aumento cada vez maior das técnicas de reprodução, no final do século XX para o XXI. O resultado foi o cenário que vemos hoje: as fotografias digitais se tornaram descartáveis e altamente reproduzíveis a ponto de serem protegidas por direitos autorais não só pelo uso, mas também de modificações por terceiros.
Traduzir a subjetividade de uma fotografia e transformá-la em fonte documental ainda é um desafio para os historiadores que estudam a cultura visual. Por trás da imagem daquele segundo congelado no tempo, há a perspectiva do fotógrafo e “um olhar que carrega intencionalidade que não são próprios de quem está sendo fotografado” (MARTINS, 2002). Existem diversos fatores que devem ser analisados em uma fotografia, como o olhar do produtor da imagem, a composição da cena, a perspectiva e a técnica utilizadas, o tempo de exposição que o filme demandava e todos estes contam muito para o trabalho final. Cada época tem a sua estética e a sua maneira de produzir imagens. Além disso, a fotografia também é um processo social, em que o fotógrafo imagina o que deseja reproduzir para a sociedade, o que acha que é ideal, aceitável e positivo para o fotografado (MARTINS, 2002), uma representação do seu tempo.
A História Cultural tentou resolver esta condição peculiar da fotografia como documento histórico, ao observar os aspectos comuns nas imagens fotografadas que poderiam ser analisados como construções sociais e representações de uma sociedade em um determinado recorte historiográfico (KNAUSS, 2008, p.153). “O importante da fotografia está no imaginário social de que ela é meio, na imaginação mediadora que suscita” (MARTINS, 2002). Ao mesmo tempo, a fotografia é um meio de projeção da sociedade e do modo em que ela se vê e se expressa naquele tempo passado. É um documento que mostra além do instante congelado no tempo. Há realmente a intenção de reproduzir as relações sociais de um determinado meio por meio de cenas, embora se torne no fim, apenas, um simulacro do real. A imagem fotográfica pode ser considerada arte, técnica, memória e documento, e possibilita o estudo do passado se aliada a outros suportes (MAUAD, 1996, p.15).
O semiólogo e sociólogo Roland Barthes (1989), na obra A Câmara Clara, explica que a imagem fotografada é uma “emanação do real passado”, já que aquele instante fotografado não existe mais (p.132). Neste fragmento de tempo do aperto do botão a produção da imagem, aparece a “morte” do sujeito fotografado, anunciada no momento da eternização da foto pelo fotógrafo, e a transformação em um objeto para a posteridade. A fotografia fora do contexto também pode adquirir novos sentidos por meio do olhar do espectador, o spectator de Barthes (1989). Portanto, os textos curtos também fazem a mediação da leitura de The Colour of Time, em que o espectador atento vê a imagem, antes perdida no tempo passado, ganhar vida e sentido com as cores e uma explicação com base na História. Assim, o spectator pode imaginar, pelo menos digitalmente, como seria a cena retratada pelo operator, o fotógrafo, ou seja, a sua imagem mental daquele fragmento do tempo registrado para a posteridade (DUBOIS, 1994). As imagens de Marina Amaral, pela escolha por critérios técnicos e estéticos, trazem um “choque fotográfico” ao “sujeito-espectador” (BARTHES, 1989), já que mostra o que estava oculto ou inconsciente que se revela no contemplar demorado da fotografia. Assim, o trabalho digital em cores traz a surpresa das cenas que passariam despercebidas aos espectadores em fotos famosas produzidas em preto e branco. Ao mesmo tempo, não se pode esquecer que a escolha das fotos faz parte da subjetividade dos autores do livro.
Para Susan Sontag (2004), a fotografia tem um sentimento mágico, que leva o espectador ao mundo dos sonhos e a uma realidade que só existiu naquele instante do aperto de botão e se torna um objeto com poder de sensibilização. Trazendo sensações boas ou ruins para o observador, a fotografia retrata um instante que não existe mais e que permanece na memória. Sontag (2004) mostra o poder da imagem com o exemplo da foto de uma criança sul-vietnamita correndo nua atingida por napalm que esteve na primeira página de muitos jornais e que contribuiu para a rejeição da guerra do Vietnã (p.28). Algumas destas fotos simbólicas, perpetuadas no tempo e repletas de sentido para o espectador, foram escolhidas pelos autores, ao lado de imagens de anônimos que marcaram época.
Cabe lembrar que o trabalho de Marina Amaral é composto também de escolhas livres de cores e tons, já que não existem muitas referências acerca das fotos originais disponíveis nos arquivos além das pessoas fotografadas, da data e do local. O rigor histórico aparece nas pesquisas possíveis de serem executadas. Um exemplo aparece nas cores de uniformes militares que ela encontra em museus ou livros e dos vestidos vitorianos. Portanto, pode-se analisar as imagens como um trabalho artístico mediado pelo computador e guiado pelo olhar atento e detalhista da autora. “Mais importante do que a questão de ser ou não a fotografia uma arte é o fato de que ela anuncia (e cria) ambições novas para a arte” (SONTAG, 2004, p. 164). Assim, a artista Marina Amaral dá novos usos e significados a fotografia e enriquece a cultura visual contemporânea com uma nova forma de produção de arte na Era Digital.
Notas
2 “Morte e destruição foram o destino da cidade de São Francisco, que é uma massa de ruínas fumegantes”, tradução nossa.
3 “Houve um tremendo choque e fui derrubado…meus olhos cheios de água e poeira…eu percebi que estava muito quente e que estávamos sendo fortemente atingidos…”, tradução nossa.
Referências
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SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Resenhista
Carla Ferreira Dieppe – Bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Referências desta Resenha
JONES, Dan; AMARAL, Marina. The colour of time: a new history of the world (1850-1960). Londres: Head of Zeus, 2018. Resenha de: DIEPPE, Carla Ferreira. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 34, n. 1, p. 285- 293, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR/JF]
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