Há, entre docentes de Ciências Sociais no Brasil, certo estranhamento em relação aos autores que, comumente, são tratados nos cursos introdutórios, em especial na Sociologia. Cada vez mais perceptível em virtude do momento histórico de releituras críticas das tradições, esse estranhamento resulta de uma uniformidade em relação ao conjunto de sociólogos que desponta em nossos currículos, que espelha um padrão obsoleto: são homens, brancos e do Norte Global. Isso indica que o eurocentrismo e o androcentrismo seguem sendo colonialidades persistentes no ensino da Sociologia em nível global. Basta olhar para as ementas e para os manuais e livros didáticos usados no ensino da disciplina em diferentes escolas e universidades.
Ainda não traduzido para o português, o livro de Syed Farid Alatas e Vineeta Sinha é uma obra que instiga a repensar tanto a docência quanto o próprio cânone da Sociologia. O livro consolida um movimento epistemológico que vem ganhando forma e força em espaços acadêmicos não hegemônicos – isto é, fora do eixo “euro-norte-americano”. Trata-se de reler a tradição sociológica clássica de modo a atentar para os perigos das narrativas unívocas, que fizeram da experiência da “modernidade europeia” o único pano de fundo possível para o surgimento da disciplina. Paralelamente, os/as autores/as denunciam os traços de dependência acadêmica nos cursos de Ciências Sociais, posicionando-se em defesa de currículos e ementas que compreendam métodos, fundamentos, categorias e conceitos não euro e androcêntricos. Cada autor/a é responsável por cinco capítulos da obra, sendo a introdução e a conclusão assinadas em coautoria. Os capítulos apresentam biografias sociológicas de pensadores/as, analisados/as a partir de suas trajetórias intelectuais, suas interfaces com tradições outras e suas contribuições para o estudo de realidades históricas nas quais estavam inseridos/as.
Syed Farid Alatas é um sociólogo malaio, professor da Universidade Nacional de Singapura. Oriundo de uma família de intelectuais renomados,1 Alatas tem se mostrado, nas últimas duas décadas, um teórico engajado em duas frentes: de um lado, a denúncia do “eurocentrismo latente” nas Ciências Sociais, identificando “sociologias alternativas” (p. 337) como forma de fortalecer as teorias sociais do Sul Global; de outro, a defesa de diálogos inter-religiosos, particularmente no contexto das sociedades do Sudeste Asiático, a partir de uma perspectiva islâmica crítica. Vineeta Sinha é professora do mesmo departamento de Sociologia, onde tem se debruçado sobre temas ligados à renovação crítica da teoria social, à religiosidade hindu na diáspora e à economia política da assistência médica. Sinha trabalha, de um lado, com a prática do hinduísmo em Singapura, a partir da intersecção entre religião e mercantilização, e, de outro, com o campo da assistência médica de uma Singapura culturalmente plural.
O projeto do livro surgiu no final da década de 1990, durante um curso de graduação sobre teoria sociológica clássica que os/as autores/as ensinaram juntos/as. Como informam na introdução do livro, “Eurocentrism, Androcentrism and Sociological Theory”,2 os textos-bases dos cursos de introdução à Sociologia, em diferentes regiões do mundo, refletem dois vieses que espelham o campo globalmente: o eurocentrismo e o androcentrismo. Em termos gerais, trata-se da negligência de fontes não ocidentais e de vozes femininas na composição do repertório teórico-metodológico clássico, sobretudo no que tange ao período inicial de desenvolvimento da disciplina. Mas, apesar da denúncia, os/as autores/as não advogam pela retirada da teoria sociológica ocidental dos currículos de instituições não ocidentais. Em vez disso, reivindicam, a partir de suas próprias experiências de ensino, outro tipo de abordagem pedagógica, mais inclusiva, pautada no compromisso de sintonizar os/as estudantes com demais representantes possíveis da teoria sociológica. Aliás, esse tensionamento epistemológico é um modo de legitimar os clássicos ocidentais, na medida em que revela suas qualidades atemporais, ao mesmo tempo em que acusa seus limites conceituais, metodológicos, políticos e ideológicos.
O livro possui dois desígnios. Primeiro, fazer as vezes de um “manual alternativo” de introdução à Sociologia, recurso para o ensino crítico da teoria clássica, abordando, a partir de uma perspectiva pós-colonial, autores pioneiros no contexto europeu – como Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim –, mas oferecendo “corretivos necessários” (p. 2) aos currículos e às ementas, de modo a destacar intelectuais não ocidentais e teóricas/pensadoras negligenciadas pela tradição. Segundo, compor um repertório conceitual que vá além da experiência da “modernidade europeia” (Iluminismo, Revolução Industrial e Revolução Francesa), pano de fundo para a emergência da disciplina no Ocidente, pautando forças sociais, políticas, históricas e intelectuais que acarretaram reflexões sistematizadas em outros locais do mundo, com atenção para processos ausentes na teoria clássica dominante, como o próprio colonialismo (p. 4).3
Em conformidade com esses dois objetivos, o primeiro capítulo, de Alatas, aborda Ibn Khaldun (1332- 1406), um dos mais célebres filósofos muçulmanos. O texto Muqaddimah, ou Prolegomenon, de 1377, de Khaldun – trabalho que serviu de introdução ao Kitāb al-ʿibar (O Livro das Lições), em que o filósofo delineia sua hipótese sobre a “história cíclica” –, é erigido por Alatas à condição de preâmbulo da Sociologia (p. 20), uma vez que ele se propôs a examinar as causas primeiras, a estrutura constituinte e o sentido da história universal, objetivos que Khaldun atribuiu à nova “ciência da sociedade humana” (p. 21). Alatas nota a originalidade dessa proposta científica para pensar os processos de mudança histórica de maneira sistemática, positiva e não normativa. No entanto, mesmo que se reconheça a importância de Ibn Khaldun na história das ideias, o grau desse reconhecimento não respeita sua grandeza teórica, pois seus diagnósticos e conceitos não foram integrados aos marcos das Ciências Sociais modernas. A ausência de uma Sociologia khalduniana, por exemplo, é mais surpreendente quando se percebe que ele desenvolveu repertórios teórico-metodológicos que se enquadram nos programas de uma Sociologia positiva – em oposição ao estudo normativo do social –, o que o aproxima de Comte, Spencer, SaintSimon e outros precursores europeus. Outro sinal da marginalização de Khaldun é o fato de que, mesmo celebrado no mundo árabe, é raro vê-lo em cursos de Ciências Sociais ao lado dos “pioneiros” europeus. Ao tratar desse processo de marginalização disciplinar pela qual passam figuras como Ibn Khaldun, Alatas (pp. 42-43) se aproxima de Raewyn Connell, mostrando como intelectuais fora do eixo hegemônico são vistos como fontes de dados históricos brutos, mas quase nunca como propositores principais de ferramentas relevantes para o estudo da contemporaneidade; ou seja, sempre como objetos, e não sujeitos do conhecimento científico.4
O segundo capítulo, também de Alatas, é dedicado a Karl Marx (1818- 1883). Trata-se de um panorama de sua obra e de suas principais contribuições, seguido de uma interessante crítica pós-colonial aos seus pressupostos – assim como já fizeram Crystal Bartolovich, Neil Lazarus e Kevin Anderson.5 Ao questionar em que medida a perspectiva marxiana pode ser considerada eurocêntrica, Alatas localiza duas brechas no arcabouço analítico de Marx. A primeira é a “crença” do autor alemão na ideia de uma singularidade do feudalismo europeu para o desenvolvimento do modo de produção capitalista, reflexão presente, sobretudo, nos Grundrisse, de 1858. O efeito disso é que as sociedades não ocidentais, às vezes, são representadas como entraves ao desenvolvimento do capitalismo. A segunda trata das diferentes posições de Marx sobre a experiência colonial ao longo de sua trajetória: enquanto em 1853 ele manifesta otimismo quanto à “dupla missão do colonialismo” na Índia,6 em 1881 ele passa a denunciar o “vandalismo” inglês na extinção da propriedade comunitária da terra, política que acabou empurrando o povo autóctone não para a dianteira da história, mas para trás (p. 60). Para Alatas, embora seja problemático o entendimento de Marx sobre a natureza e o funcionamento das “sociedades asiáticas”, informada por alguns preconceitos históricos, uma perspectiva crítica sobre sua obra nos conduz não a “cancelá-lo”, mas a resgatá-lo de si mesmo, de suas pré-suposições eurocentradas, e apurar o que segue útil e atemporal de seu pensamento.
O terceiro capítulo, dedicado a Harriet Martineau (1802–1876), escrito por Vineeta Sinha, apresenta e analisa a vida e a obra dessa intelectual da Inglaterra vitoriana que, a despeito dos constrangimentos de sua época, logrou sucesso na escrita profissional. Contudo, mesmo fazendo parte de um círculo intelectual vibrante e tendo publicado, ainda em vida, uma obra vasta, ela ficou à margem das principais teorias sociais de seu tempo, padecendo de um esquecimento acadêmico que é a base do androcentrismo (p. 108). O capítulo constitui o esforço de reconhecer o valor sociológico de Martineau, aproximando suas contribuições às de Marx, Tocqueville, Comte e Durkheim. Com Marx, a justaposição é feita com os escritos de Martineau de 1832, 1833 e 1834, Illustrations of Political Economy, obra de sucesso popular na qual ela usa da ficção para explicar a um público leigo o funcionamento dos processos estruturais de produção, distribuição, troca e consumo de mercadorias. A aproximação com Alexis de Tocqueville é feita a partir das reflexões etnográficas de Martineau, reunidas em Society in America, de 1837. Resultado de uma estadia de dois anos nos EUA, a autora abordou a sociedade estadunidense da primeira metade do século XIX, questionando os limites da democracia no país e mostrando como mulheres, escravizados/as e pobres ficavam de fora do campo da política formal (p. 100). Para trazer Martineau ao debate com Comte e Durkheim, Sinha salienta suas contribuições metodológicas para delinear e sistematizar as “ciências sociais e morais” (p. 85), que deveriam basear-se no modelo das ciências naturais. Martineau foi uma entusiasta do positivismo, escreveu sobre os fundamentos metodológicos da ciência e foi a tradutora do Curso de Filosofia Positiva, de Comte, para o inglês, em 1853 (p. 82). Sua obra How to Observe Morals and Manners, de 1838, é comparada com um dos clássicos do cânone sociológico, As regras do método sociológico, de Durkheim, de 1895. O texto da teórica britânica antecede a obra do sociólogo francês em cerca de seis décadas, no qual ela elabora os princípios do empirismo, do positivismo e da objetividade das ciências sociais e morais, propondo métodos (como a observação participante) para um conhecimento mais devido dos problemas sociais. Porém, o reconhecimento das contribuições de Martineau não a exime de críticas quanto ao seu eurocentrismo. Ela admirava a indústria britânica e percebia o capitalismo como motor de progresso para todas as sociedades, caracterizando a economia do livre mercado como os únicos vetores possíveis dos processos de modernização. Soma-se ao seu entusiasmo pelo capitalismo industrial britânico sua defesa da colonização na Índia. Assim, o eurocentrismo de Martineau pode ser problematizado a partir de sua perspectiva acerca do capitalismo como um fenômeno universal, inevitável e progressivo, sendo o colonialismo visto como um dos braços da missão civilizadora da Grã-Bretanha em seus territórios ultramarinos.
O quarto capítulo, dedicado a Max Weber (1864-1920), de Alatas, também traz uma releitura do clássico alemão. Tal como Marx é lido através da crítica ao eurocentrismo, Weber é lido tendo em conta o seu orientalismo. Para tanto, Alatas parte de três hipóteses weberianas: foi no Ocidente que o capitalismo moderno pôde se desenvolver em sua forma mais elaborada; apenas no Ocidente havia os pré-requisitos para a ascensão do capitalismo; e uma religião ocidental (o protestantismo) desempenhou papel único e inigualável no desenvolvimento de uma mentalidade capitalista. Alatas mostra, com isso, como Weber não conseguiu fugir de uma posição orientalista, que atravessou a sua época, segundo a qual o Ocidente aparece sempre à frente na linha da história, representando o progresso, ao passo que ao Oriente resta o espólio do atraso. Porém, Alatas argumenta que o orientalismo weberiano deve ser interpretado em dois vetores. Um deles se refere ao orientalismo nas obras do próprio Weber; o outro, a como o orientalismo foi atribuído a ele por seus intérpretes (p. 126). Alatas diz que é preciso cuidado com acusações anacrônicas. Weber não afirmou categoricamente que o capitalismo não poderia existir para além do Ocidente; sua tese é que a atitude de ganho e lucro comercial, baseada no cálculo racional (“espírito capitalista”), pôde emergir no Ocidente em razão dos atributos do ascetismo mundano de doutrinas protestantes dos séculos XVI e XVII, como o calvinismo.
O quinto capítulo, também de autoria de Alatas, é dedicado a José Rizal (1861-1896), importante pensador e nacionalista filipino do final do período colonial. Oftalmologista de profissão, Rizal foi um escritor que dedicou a vida a denunciar as bases e os efeitos do domínio colonial sobre as populações nativas. Intelectual e militante comparável a Simón Bolívar (1783-1830) e José Martí (1853-1895) na América Latina, a teoria social de Rizal nasce da experiência colonial e bifurca-se em quatro frentes: análises a respeito dos problemas de uma sociedade sob julgo colonial (p. 144); críticas à edificação colonial espanhola da história filipina, assim como da imagem orientalista do filipino construída por narrativas metropolitanas, que retratam um ser tipicamente indolente e preguiçoso (p. 162);
O sexto capítulo, dedicado a Émile Durkheim (1858-1917), é de autoria de Vineeta Sinha, que utiliza como prisma de leitura um hiato na obra do sociólogo francês: sua negligência com a questão colonial. Uma das causas desse desinteresse se deve à forma normativa como Durkheim abordou a transição da “sociedade tradicional” para a “sociedade moderna”, processo avaliado como benéfico, necessário e desejável. A pergunta que fica em relação à obra de Durkheim gira em torno dos desafios de uma leitura crítica alternativa, e não anacrônica, de suas contribuições. Talvez mais importante do que nos perguntar se e por quê Durkheim deve ser trabalhado, hoje, nos cursos de Ciências Sociais, é como ele deve ser lido, haja vista que seus escritos, conceitos e propostas metodológicas continuam a influenciar gerações de estudantes de Ciências Sociais. Como a Sociologia contemporânea pode se debruçar sobre a obra durkheimiana? É possível uma análise não convencional de seus aportes analíticos?
O sétimo capítulo, sob responsabilidade de Alatas, trata de Said Nursi (1877-1960), teólogo muçulmano que advogava em prol de um diálogo entre ciência, lógica, história e religião. Embora lido como reformador do Islamismo, Alatas argumenta que falta às tradições intelectuais ocidentais e orientais, de um lado, uma atenção às suas contribuições conceituais e analíticas e, de outro, ao seu projeto de desenvolvimento de uma teologia social. Em relação à primeira, Alatas sugere uma análise contemporânea do modo como o pensador turco tratou questões de classe, etnia e religião. Em relação à segunda, Alatas diz ser necessário comparar e contrastar Nursi com outros pensadores muçulmanos, como Jamal al-Din al-Afghani, Syed Shaykh al-Hady e Ali Shariati, e ao mesmo tempo estender essas aproximações à tradição católica da Teologia da Libertação na América Latina, tendo em vista as afinidades de ambas as propostas para pensar a relação entre religiosidade e laicidade, bem como as importâncias dadas às virtudes terrenas – amor, respeito, compaixão, cooperação e solidariedade entre povos.
Pandita Ramabai (1858-1922) é analisada no oitavo capítulo, escrito por Sinha, que pontua duas contribuições da teórica indiana. Em primeiro lugar, a partir de uma análise de trajetória, Sinha revela uma obra centrada na preocupação com o status das mulheres em uma sociedade patriarcal submetida, por um lado, ao rígido sistema de castas hindu e, por outro, ao violento colonialismo britânico. A socióloga singapurense propõe uma leitura pós-colonial da pensadora indiana, abordando os diferentes tipos de engajamento de Ramabai com relação à opressão enfrentada pelas mulheres hindus na transição do século XIX para o XX. Embora Ramabai tenha estabelecido bases para o movimento de libertação das mulheres em seu país, ela adotou uma agenda reformista/liberal que acabou corroborando projetos “civilizadores” e missionários do discurso colonial. Em segundo lugar, Sinha aproxima Ramabai de Martineau e Tocqueville, trazendo à tona The Peoples of the United States, obra na qual a teórica constrói um relato para o público indiano sobre o sistema de governo, as condições sociais e econômicas, as esferas da educação, do comércio e da indústria, a relação entre política e religião e o status das mulheres nos EUA. Trata-se de uma narrativa vanguardista, que reflete uma perspectiva pós-orientalista sobre a sociedade estadunidense (p. 259), a partir da qual a paisagem sociopolítica, cultural, econômica e religiosa é lida através de um olhar feminino, feminista, indiano e anticolonial.
O nono capítulo trata da intelectual britânica Florence Nightingale (1820- 1910). Aqui, Sinha explora as três formas pelas quais o androcentrismo se faz presente na historiografia das Ciências Sociais ocidentais: na negação ou oclusão da presença das mulheres como pensadoras e teóricas; no reconhecimento errático ou problemático de suas contribuições para a disciplina; e na sub-representação de suas atuações, diminuindo seus papeis enquanto produtoras de conhecimento válido sobre seus respectivos momentos históricos. Apesar de sua importância na história da enfermagem e da saúde pública, Nightingale foi vítima desse processo, ficando de fora de manuais, livros didáticos, currículos e cursos. Mesmo assim, suas contribuições foram sub-repticiamente incorporadas, sem o devido reconhecimento, ao saber científico acumulado sobre a estrutura e a dinâmica da sociedade britânica do século XIX – como em sua análise causal da fome e pobreza no período vitoriano, ou em seu uso da estatística e de outros procedimentos científico para diagnosticar problemas sociais e propor reformas apropriadas.
A trajetória de Benoy Kumar Sarkar (1887-1949) é tratada no último capítulo, escrito por Sinha. Professor do Departamento de Economia da Universidade de Calcutá, Sarkar é autor de uma vasta produção intelectual, que abrangeu Ciências Sociais, Economia, História, Filosofia Política e Teoria Literária. Sinha mostra como Sarkar estabeleceu interfaces importantes com intelectuais ocidentais em Villages and Towns, de 1941, no qual o teórico indiano acusa Marx, Weber, Durkheim e Freud de adotarem um “determinismo monístico” em seus aportes sobre a mudança social.8 Outro ponto levantado pela socióloga se refere ao apelo constante que Sarkar fazia para que a “Eur-America” fosse um tema de estudo das Ciências Sociais indianas, e não só espaço de produção de análises sobre o Oriente. O teórico operava com um quadro de referências cosmopolita e “transasiático” (p. 332), reconhecendo características unificadoras no espaço rotulado, hoje, como “Ásia” – apesar de sua diversidade interna.
No entanto, ainda que seja importante ampliar o cânone das Ciências Sociais, é preciso cuidado com essa ampliação, como já alertado por Raewyn Connell e Boaventura de Sousa Santos et al.9 Sinha lembra que, em 1934, Sarkar declarou apoio ao hitlerismo, afirmando que o “movimento” alemão pregaria um “autoempoderamento nacional” (p.323), algo ausente na Índia moderna. Como Martin Heidegger foi relido em vista de sua proximidade com o nazismo, Evans-Pritchard de trabalho prestado a missões coloniais inglesas, ou Gilberto Freyre de sua simpatia com o salazarismo e a ditadura militar no Brasil, é preciso averiguar em que medida as ambivalências de Sarkar estão comprometidas em razão de seu apoio às ideias de engenharia social colocadas em prática por Hitler, a despeito de sua verve independentista e de sua defesa pelo fim da subjugação colonial.
Há outro deslize na obra que deve ser observado, o mesmo que, usualmente, aparece em parte da Sociologia eurocêntrica criticada por Alatas e Sinha: a tendência para dividir a “boa” teoria do pensamento social. Para os/as autores, o pensamento difere da teoria no sentido de que não está sistematicamente articulado, contendo reflexões sobre experiências, opiniões e juízos, mas não as elaborando por meio de definições formais, conceitos e abstrações teóricas. Ainda que asseverem que essa divisão não torna o pensamento social menos importante que a teoria, acabam colocando em uma escala assimétrica de importância os dois tipos de contribuições. Isso tem uma consequência: ratifica uma geopolítica científica historicamente desigual, que apregoa que o Norte Global (ou Ocidente) produz teorias sociológicas com pretensões explicativas universalistas, ao passo que ao resto do mundo concede-se o epíteto de teorias locais semiautônomas, inscritas sob a égide de um “pensamento social” cujo alcance analítico não ultrapassa suas respectivas fronteiras regionais. O maior indício dessa divisão aparece, na obra, na própria seleção e disposição de pensadores/as: Ibn Khaldun, Marx, Weber e Durkheim são claramente teóricos e tratados enquanto tais, mas não fica claro se o mesmo pode ser dito a respeito de Martineau, Ramabai, Nightingale, Rizal e Sarkar.
Apesar do deslize, Sociological Theory Beyond the Canon é um acontecimento na seara de discussões sobre dependência acadêmica, colonialidades do saber e geopolítica do conhecimento nas Ciências Sociais, sobretudo porque extrapola os próprios objetivos a que se propõe, oferecendo três grandes contribuições para o debate.
Primeiro, o livro desnuda a forma como disciplinas introdutórias de Sociologia ainda estão submetidas a um tipo de colonialismo epistemológico que sugere, nas entrelinhas das ementas, que a Sociologia seria uma disciplina exclusivamente ocidental. A maior evidência desse colonialismo é que os cursos são ministrados da mesma maneira em universidades europeias, asiáticas, africanas e latino- -americanas, gerando dois problemas: precursores/as não ocidentais, não brancos/as e não homens são deixados/ as de lado do cânone e, consequentemente, dos currículos e das ementas; e a teoria sociológica clássica dominante não é contextualizada, e sim generalizada arbitrariamente, desprendida da realidade empírica dos/as estudantes de diferentes partes do mundo e, logo, falhando em oferecer pontos de referência “locais” para as teorizações.
Em segundo lugar, Alatas e Sinha logram ressignificar e problematizar as noções de eurocentrismo e androcentrismo. Para eles/as, eurocentrismo é um termo que precisa ser entendido para além de seu sentido literal, conotando também uma posição epistemológica, uma maneira de ver e não ver que se encontra historicamente enraizada. Nesses termos, a descolonização de um curso de teoria sociológica clássica ou de introdução à Sociologia, por exemplo, deveria “corrigir” o viés eurocentrado dos currículos, lidando com pensadores/ as não ocidentais ao lado dos autores “consolidados”. Mas, para além dessa correção histórica, também é necessário estabelecer críticas sistemáticas ao androcentrismo no interior da disciplina, de maneira a apresentar as fundadoras da Sociologia a estudantes. Androcentrismo, portanto, se refere à forma como a tradição ocidental reproduziu exclusivamente aportes de estudiosos homens. Harriet Martineau, Florence Nightingale, Pandita Ramabai – às quais podemos somar Harriet Taylor Mill, Olympe de Gouges, Zora Hurstonm Clara Zetkin, Flora Tristan, Mary Wollstonecraft, Alessandra Kollontai, Nísia Floresta, Charlotte Perkins Gilman, Rosa Luxemburgo e tantas outras – são só alguns nomes ausentes de uma longa lista de pensadoras/teóricas sociais pioneiras, porém ocultadas da tradição. O não reconhecimento de contribuições e perspectivas femininas nos arquivos da disciplina sinaliza a marginalização das mulheres na historiografia das Ciências Sociais.
Por último, além de promover pensadores/as e teóricos/as negligenciados/as, a partir de uma experiência de ensino de teoria sociológica em Singapura, é notável o esforço de Syed Farid Alatas e Vineeta Sinha em construir uma outra narrativa da Sociologia clássica, buscando “sociologias alternativas” em diferentes tradições intelectuais, informadas por experiências históricas e práticas situadas, tomadas como fontes potenciais de teorias, conceitos e métodos. Essas narrativas contra-hegemônicas, ou heterotópicas, podem ser um caminho para diminuir a dependência acadêmica no contexto da geopolítica do conhecimento sociológico e, com efeito, impulsionar uma efetiva internacionalização da Sociologia global. Trata-se de pensar a teoria sociológica de forma mais aberta, inclusiva, criativa, autônoma, evitando toda sorte de essencialismo, orientalismo, eurocentrismo e androcentrismo. Isso não significa que os cursos de introdução à Sociologia devam, a partir de agora, incluir Rizal ou Martineau em seus currículos e ementas. Isso seria tão arbitrário e dogmático quanto a própria omissão da qual esses/as autores/as sofrem. O que Alatas e Sinha fazem é mostrar como é possível construir, a partir de tradições locais, um curso e uma ementa de Sociologia que levem em conta uma seleção mais heterogênea e descentrada de teóricos/as. O efeito dessa abertura é, muito mais que ampliar o cânone da disciplina, decolonizá-la, tornando-a cada vez menos euro e androcêntrica.
Notas
1 Ele é sobrinho do filósofo muçulmano Syed Muhammad Naquib Alatas e filho do historiador e cientista social Syed Hussein Alatas. Sua obra reflete uma interlocução crítica com essa tradição intelectual da qual é herdeiro.
2 Vale indicar uma tradução dessa parte introdutória da obra, feita por Bárbara Vítor e publicada no blog do Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (LABEMUS). https://blogdolabemus.com/2019/06/13/introducao-eurocentrismo-androcentrismo-e-teoria-sociologica-por-syed-farid-alatas-e-vineeta-sinha/
3 Com influência de Edward Said, o livro pensa os “territórios sobrepostos” e as “histórias entrelaçadas”, na medida em que procura preencher as lacunas das narrativas sociológicas dominantes, sobretudo quando analisa as conexões entre a revolução industrial na Grã-Bretanha e o colonialismo em territórios não europeus. Com o exame da constituição dupla da modernização europeia e da manufatura na Índia, Alatas e Sinha se aproximam, também, das análises de Gurminder K. Bhambra e Julian Go, afirmando que qualquer discussão sobre o capitalismo que não leve em conta a experiência colonial, e o racismo embutido em sua lógica, é incompleta. Cf. Edward Said, Cultura e Imperialismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2011; Gurminder K. Bhambra, Rethinking Modernity: Postcolonialism and the Sociological Imaginatio, Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2009; e Julian Go, Postcolonial Thought and Social Theory, Nova York: Oxford University Press, 2016.
4 Ver Raewyn Connell, Southern Theory: The Global Dynamics of Knowledge in Social Science, Cambridge: Polity Press, 2007; e Raewyn Connell, “Cânones e colônias: a trajetória global da Sociologia”, Revista Estudos Históricos, v. 32, n. 67 (2019), pp. 349-367.
5 Leituras pós-coloniais de Marx já foram feitas em outras ocasiões. Ver Crystal Bartolovich e Neil Lazarus (orgs.), Marxism, Modernity, and Postcolonial Studies, Cambridge: Cambridge University Press, 2002; e Kevin Anderson, Marx nas margens: nacionalismos, etnias e sociedades não ocidentais, São Paulo: Boitempo, 2019.
6 De um lado, a aniquilação da velha sociedade asiática e, de outro, o lançamento das bases materiais para a emergência da “sociedade ocidental na Ásia” (p. 59).
7 Este ponto me parece interessante, sobretudo em um contexto de críticas pós e decoloniais que tensionam a forma orientalista que as metrópoles usaram para representar “o colonizado”, imaginado como “avesso ao trabalho”. Trata-se do “mito da preguiça do subalterno”, discussão presente em diversas tradições intelectuais, seja na América Latina e no Caribe, na África ou na Ásia. Cf. Syed Hussein Alatas, The Myth of the Lazy Native: A Study of the Image of the Malays, Filipinos, and Javanese from the 16th to the 20th Century and its Function in the Ideology of Colonial Capitalism, Londres: Frank Cass, 1977; Frederick Cooper, Rebeca Scott e Thomas Holt, Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; e Elisete Zanlorenzi, “O mito da preguiça baiana” (Tese de Doutorado, USP, São Paulo, 1998)
8 Marx é acusado, por Sarkar, de “determinismo econômico”; Durkheim, por sua vez, de um “societarianismo”; Weber, de um “tipologismo falacioso”; ao passo que Freud, de um “determinismo sexológico” (p. 310).
9 Cf. Boaventura de Sousa Santos, João Arriscado Nunes e Maria Paula Meneses, “Introdução: para ampliar o cânone da ciência”, in Boaventura de Sousa Santos (org.), Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais (Porto: Afrontamento, 2004), pp. 19-101.
Resenhista
Lucas Amaral de Oliveira – Universidade Federal da Bahia. https://orcid.org/0000-0002-1272-4722
Referências desta Resenha
ALATAS, Syed Farid; SINHA, Vineeta. Sociological Theory Beyond the Canon. London: Palgrave Macmillan, 2017. Resenha de: OLIVEIRA, Lucas Amaral de. A crítica do cânone e as sociologias alternativas. Afro-Ásia, n. 61, p. 424-437, 2020. Acessar publicação original [DR/JF]
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