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Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

É lugar comum a divulgação da imagem do Brasil e dos brasileiros como amigáveis, respeitosos, hospitaleiros e, acima de tudo, pacíficos. A imagem de uma nação pacífica, detentora de uma natureza edênica, terra do samba, da mulata sensual e do futebol, tornou-se, por assim dizer, cartão postal do país, a qual definiria nosso lugar em um mundo pretensamente civilizado e heteronormativo. Uma propaganda, sem dúvida, que naturaliza o Brasil como uma terra cheia de alegrias e prazeres exóticos.

No entanto, Lilia Moritz Schwarcz nos apresenta outra visão totalmente distinta da veiculada de nós brasilianos. No ensaio intitulado “Sobre o autoritarismo brasileiro”, Schwarcz aponta, logo na introdução, a seguinte indagação: “como é possível definir o Brasil como um território pacífico se tivemos por séculos em nosso solo escravizados e escravizadas, admitindo-se, durante mais de trezentos anos, um sistema que supõe a posse de uma pessoa por outra?” (SCHWARCZ, 2019: 22).

Ademais, como bem coloca a autora, a escravidão é uma herança perversa na história deste território. Afinal de contas, fomos a última nação a abolir tal sistema que naturalizou a desigualdade entre homens e mulheres e, principalmente, a violência sistematizada contra a população negra e seus descendentes no passado, com continuação no presente e sem perspectivas de mudança para o futuro. De um passado escravocrata, com acentuada desigualdade social e, igualmente, de concentração de renda como uma realidade persistente nos dias atuais, Schwarcz nos apresenta as evidências de um histórico extremamente mandonista no Brasil. Basta, para isso, atentar-se aos dados estatísticos e aos indicadores socioeconômicos de organismos estatais e da sociedade civil organizada.

Nas palavras da autora, “naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característico de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder” (SCHWARCZ, 2019: 19).

De fato, foi na “promoção do Estado e de manutenção do poder” que foi construída nossa emancipação política. Um processo, por sinal, sui generis, haja vista termos sido monarquia cercada por vizinhas repúblicas latino-americanas. Em nome da manutenção do poder e, igualmente, da escravidão, foi forjada a metáfora das três raças, cujo papel coube ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que foi criado em 1838, por meio de um concurso sobre como se deveria escrever a História do Brasil. Ironia à parte, o vencedor do concurso que deveria escrever a história nacional foi um estrangeiro, o naturalista alemão Karl von Martius. Este, segundo destaca Schwarcz, “advogou a tese de que o país se definia por sua mistura, sem igual, de gentes e povos” (SCHWARCZ, 2019: 15).

No entanto, para harmonizar, durante o período do Império e com continuidade no período republicano, a imagem de um presente que se dizia idílico, com o violento passado escravocrata, a solução seria apelar para os prodígios da natureza, sobre os quais o romantismo soube tematizar em verso e prosa. Isto coloca em evidência um claro sinal de manipulação da história e da memória, próprio, de acordo com a autora, dos regimes autoritários.

Apesar de relativizar os problemas do passado em prol do engrandecimento da nação, fruto da metáfora da união das três raças, a realidade, vez ou outra, resolve bater à porta. A este respeito, Schwarcz coloca o seguinte questionamento:

(…) como é possível representar o país a partir da ideia de uma suposta coesão, partilhada por todos os cidadãos, quando ainda somos campeões no quesito desigualdade social, racial e de gênero, o que é comprovado por pesquisas que mostram a existência de práticas cotidianas de discriminação contra mulheres, indígenas, negros e negras, bem como pessoas LGBTTQ: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Queers? (SCHWARCZ, 2019: 23).

Diante do exposto, somos o país em que a força policial é uma das mais letais do mundo. Somos o país com uma das mais altas taxas de assassinato de mulheres, agora tipificado como feminicídio. Somos, igualmente, o país que mais mata aqueles que se “desviam” do padrão heteronormativo, a população LGBTTQ. E, não menos importante, somos o país em que se pratica um verdadeiro genocídio contra a população negra. Para tanto, “no ano de 2010, a taxa de homicídios foi da ordem de 28,3 a cada 100 mil jovens brancos, a de jovens negros chegou a 71,7 a cada 100 mil, sendo que em alguns estados a taxa ultrapassa cem por 100 mil jovens negros” (SCHWARCZ, 2019: 33).

A julgar por estes dados, em nada somos uma nação pacífica e tolerante. Ao contrário, somos um país em que tipifica a violência como algo natural contra sua população mais vulnerável (mulher, negra e pobre), a despeito da mitologia das três raças que insiste em perpetuar uma suposta democracia racial, em uma República nada republicana.

Deste modo, ao longo dos oito capítulos que compõem a obra, “Escravidão e racismo”, “Mandonismo”, “Patriarcalismo”, “Corrupção”, “Desigualdade social”, “Violência”, “Raça e gênero” e “Intolerância”, Schwarcz discorre sobre o nosso autoritarismo brasileiro. Autoritarismo este, por sua vez, pautado na violência do passado escravocrata, na desigualdade social e na concentração de renda. Somos, de certa forma, uma nação com grandes contas a serem ajustadas com o nosso passado. A propósito, como bem coloca Schwarcz, há fantasmas do passado que insistem em nos assombrar no presente. Resta, porém, exorcizá-los mediante um pacto republicano, livre das peias do patriarcalismo e do mandonismo, tão presentes entre nós desde os tempos coloniais.

Afinal de contas, “direitos conquistados nunca foram direitos dados, e os novos tempos pedem, de todos nós, vigilância, atitude cidadã e muita esperança também. A sociedade civil brasileira tem dado mostras de que sabe se organizar e lutar por seus direitos” (SCHWARCZ, 2019: 237).

Por fim, fica aqui o convite para a leitura deste importante e instigante livro de Lilia Moritz Schwarcz, tão necessário para se compreender o atual momento brasileiro e também mundial, ambos permeados de autoritarismo.


Referência

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


Resenhista

Flávio Henrique Dias Saldanha – Graduado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mestre e Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).


Referências desta Resenha

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: SALDANHA, Flávio Henrique Dias. Tempos Históricos, v. 23, n.2, p. 619-621, 2019. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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