A atual ascensão da extrema-direita mostra contornos verdadeiramente globais. Com maior ou menor intensidade, ocorre em todos os continentes e ganha corpo em países de trajetórias históricas as mais distintas. Dada a natureza dos problemas que ele coloca às democracias mundo afora, o fenômeno tem tornado lugar-comum a comparação da presente conjuntura com o período de gestação do fascismo e do nazismo na Europa. A profunda recessão econômica, já esperada como decorrência da pandemia de coronavírus, que grassa o mundo no momento mesmo em que escrevo estas linhas, faz com a Crise de 1929 uma comparação cada vez mais atraente.
Seguindo esse paralelismo, se tomarmos um recorte historiográfico bastante recorrente, estaríamos entrando agora no período compreendido entre 1930 e 1945, que marcou a definitiva consolidação do nazi-fascismo e seus funestos desdobramentos na Segunda Guerra Mundial. Pois bem, Shifting the Meaning of Democracy – Race, Politics, and Culture in the United States and Brazil, da historiadora estadunidense Jessica Lynn Graham, se concentra exatamente nesses quinze anos decisivos, fazendo da boa e velha abordagem comparativa entre Estados Unidos e Brasil um canal capaz de conduzir a uma densa análise do complexo significado da “questão racial” para a democracia.
Nos EUA, era tempo de Franklin D. Roosevelt, de New Deal e da famigerada Política da Boa Vizinhança, estratégia diplomática cujo objetivo maior era abandonar uma postura de relativo isolacionismo e agressividade explícita. Tratava-se de avançar sobre a América Latina de modo a colocá-la sob predominante esfera de influência geopolítica dos EUA e, assim, assegurar a posição deste último como potência continental hegemônica.
Contra esse pano de fundo, a engenhosidade do livro de Jessica L. Graham fica patente se pensarmos seu enredo nos seguintes termos: como os EUA, país-sede de um regime segregacionista antinegro tão renomado e vigoroso que sua legislação serviria de inspiração aos nazistas (pp. 110-111), pôde convencer o Brasil, país com a maior população negra no hemisfério, de que eles, os EUA, eram uma nação fundamentalmente democrática? E mais: como essa missão virtualmente impossível viria a ser levada a cabo com resoluta colaboração do próprio Brasil?
Graham constrói sua resposta a estas perguntas a partir da noção de “democracia racial”, termo em torno do qual o livro se articula, explica seu título e informa o objetivo central da obra, qual seja, demonstrar que ela, a ideia democracia racial, não é apanágio do Brasil, mas que “pertence aos Estados Unidos também” (p. 3).
A formulação não é trivial. Pelo contrário, soa bastante arrojada. Por outro lado, não é algo que Graham tire da cartola. Ela faz questão de salientar o quão seu trabalho se filia a uma longa tradição intelectual que há muito segue colocando em xeque o encarniçado mito da democracia racial brasileira, tanto em sua versão de fato social como em sua função de presunção analítica. Um traço distintivo desta tradição é abordar o problema focando no substantivo, isto é, a “democracia”, ao invés de no adjetivo, o “racial” (pp. 23-25).
Isso entendido, ficará a nosso cargo avançar hipóteses para as perguntas que o tempo presente coloca sobre a relação entre a “questão racial” e a “democracia” e, por extensão, o terreno institucional cada vez mais amplo que forças políticas autoritárias têm ganho na últimos anos, não apenas no Brasil e nos EUA, mas também alhures.
O quadrante das ideologias políticas: do racialmente excludente ao racialmente inclusivo. No marco da Política da Boa Vizinhança, projetos de natureza cultural eram um importante elemento da política externa estadunidense para a América Latina. A partir da entrada dos EUA na Segunda Guerra, em 1941, tais projetos passariam a ser vistos como verdadeiras missões – no sentido militar do termo – em defesa da segurança nacional. Neste contexto, o Brasil aparecia como um país estratégico.
A presença no Brasil de um grande contingente populacional de imigrantes oriundos dos três países que compunham o Eixo – Alemanha, Itália e Japão – era considerada um forte fator de tensão. “Autoridades americanas caracterizavam estas populações como concentradas, segregadas e/ou não-assimiladas, levantando sérias questões relacionadas à lealdade e à infiltração do inimigo entre os Aliados” (p. 173).
Não era de todo infundada a suspeita de que o chamado “imperialismo intelectual” (p. 197), sobretudo o alemão, poderia encontrar ressonância nessas comunidades. Graham nos lembra que o Brasil teve o maior partido nazista dentre 83 países do mundo afora, excetuando, claro, a Alemanha (p. 112).1 A Ação Integralista Brasileira (AIB), por sua vez, presente em todo o território nacional e cujo número de adeptos foi estimado entre seiscentos mil e um milhão (em 1936), foi “de longe o caso mais significativo de fascismo na América Latina” (p.112).
A questão racial era cara a ambos. Do lado nazista, nas palavras de Dietrich, o movimento se “tropicalizava” e, para além do característico antissemitismo, apontava sua eugenia contra negros e indígenas como “raças inferiores” preferenciais. Do lado fascista, a despeito dos esforços para cativar a população negra e do certo grau de solidariedade ideológica com a Frente Negra Brasileira (FNB), Graham salienta que a AIB “não se desviava da ideia de que os brancos estavam no topo da hierarquia racial; os integralistas imaginavam a branquitude como o elemento dominante em uma nova e consolidada raça brasileira” e, assim, “construíam uma forma distintiva de democracia racial fascista” (p.113; 118).
Pela lógica estadunidense, defender o hemisfério – e, por extensão, os EUA – contra o “imperialismo intelectual” nazista e fascista implicaria em representar uma posição na qual sua versão de democracia liberal coincidisse com uma postura antirracista. Pra isso, óbvio, os EUA estavam mal equipados. O passado e o presente daquele país mostravam de maneira patente que negros e indígenas não estavam, lá, em posição melhor do que aquela onde os queria a retórica nazifascista. Era difícil separar o joio do trigo. A conta não fechava.
No outro quadrante da esfera geopolítica, porém, a equação soava mais redonda, e dali emergia o “perigo” mais temido à época: “Os comunistas entrelaçavam suas ideias sobre raça e democracia, argumentando que apenas uma democracia genuína – que, segundo eles, exclusivamente o sistema soviético produzia – poderia instituir a igualdade racial” (p. 29).
Pois bem, neste breve mosaico de posições vê-se como Graham escreve seu livro de modo que as quatro grandes ideologias políticas do século XX – comunismo, fascismo, nazismo e liberalismo – sejam examinadas à luz do modo pelo qual mobilizaram a noção de raça para moldar, em cada contexto nacional, suas concepções de democracia. É seu modo de apresentar a obra como uma ampliação do repertório de evidências históricas que corroboram uma tese da teoria política, qual seja, a de que a partir da Segunda Guerra Mundial “democracia se torna uma coisa ambígua, com significados diferentes – até aparentemente opostos” (p. 5; 74).
Ao avançar nesta direção, Graham faz questão de registrar duas ressalvas. A segunda, e menos ostensiva, é o alerta de que “não deveríamos categorizar comunismo e democracia como termos mutualmente excludentes” (p. 32 – itálicos no original). A primeira, reiterada com ênfase, chama atenção para o fato de que se o escopo de seu estudo inclui o fascismo e o nazismo, isto de modo algum representa um endosso de qualquer pretensão democrática destes regimes (p. 5). Pelo contrário, o livro desautoriza o vínculo fácil entre capitalismo liberal e democracia. Nesse sentido, ele é sobretudo um veemente desagravo à presunção de imanência democrática do liberalismo.
Eis, portanto, um esboço do enquadramento empírico-analítico que Graham constrói para que possamos entender como e por que a ideia de democracia racial viria operar seus milagres. Era sintomático, e Graham o demonstrará de maneira iniludível, que tanto no Brasil como nos EUA o começo da década de 1930 marque o gradativo surgimento de uma retórica nacionalista mais inclusiva no que concernia à “questão racial”. O processo de desmarginalização da cultura negra viria a ser pedra de toque nesta fundamental transição que, usando os termos da autora, foi a passagem discursiva de um “nacionalismo racialmente excludente” para um “nacionalismo racialmente inclusivo” (p. 10).
O quadrante da raça e nacionalismo: peles brancas, músicas negras. Dadas as circunstâncias, negligenciar a questão racial não era propriamente uma opção para os EUA. Assim, em 1941, eles criaram o Escritório de Assuntos Interamericanos (EAIA), “a primeira agência estadunidense de propaganda estabelecida especificamente para conter a influência do Eixo” (p. 195).
Consoante, mas também cedendo às pressões exercidas pelo movimento negro, um membro da comunidade afro-americana passaria a compor o conselho consultivo da agência nos EUA. Graham está reconstruindo estes acontecimentos quando, com absoluta naturalidade, sem nenhum hiato, uma passagem soa como breve pausa … e aqui se relata que uma mulher, Pearl Vincent Morton, fora a pessoa indicada pelas entidades negras para o cargo de conselheira; não obstante, o posto acabou assumido por Rayford Logan, professor da Howard, uma histórica universidade negra (p.197).
São muitas as antipausas deste gênero, desembaraçadamente entrelaçadas ao longo de todo o livro. E assim, mesmo quando está tratando de episódios nos quais o protagonismo institucional não coube às mulheres negras, ou melhor, exatamente por isso, por terem sido relegadas à margem, o papel constitutivo delas passa a compor um elemento decisivo, delineador e, por assim dizer, incontornável da história contada. Enfim, sua presença/ausência se torna audível.
Não obstante, esse expediente específico é frequentemente escusado, pois o escopo daquilo que para Graham provoca mudanças na democracia abarca, por exemplo, a perspectiva crítica sobre o New Deal expressa no renomado trabalho investigativo das ativistas afro-americanas Ella Baker e Marvel Cooke sobre as deploráveis condições de trabalho enfrentadas por mulheres negras em Nova York; ou a menção ao papel fundamental de Tia Ciata e Tia Perciliana na emergência do samba carioca (p. 151). Voltaremos a essas tias. Antes disso, vejamos primeiro como se davam as atividades do EAIA.
Mesmo ocupando uma função não-remunerada e sem encontrar nem financiamento suficiente, nem entusiasmo de seus pares para com seus projetos, Logan submeteu ao EAIA um estudo no qual a ideia de democracia racial ganharia a feição de, nas palavras de Graham, “um plano detalhado e orientado à ação”, isto é, à “procura de soluções para a pobreza na qual a maioria dos negros latino- -americanos vive” (p. 199). Era uma inequívoca amostra do que ela chama realismo racial: a luta “por mudanças tangíveis que trariam maior igualdade, articulando a democracia racial como uma meta, não como um fato” (p. 8). Logan jamais recebeu uma resposta acerca de seu relatório. O componente econômico de ações racialmente inclusivas a serem promovidas pela agência estava fadado a permanecer ignorado. Da perspectiva do EAIA, na guerra contra o “imperialismo intelectual”, bastava lançar mão do simbólico.
Naquele mesmo ano de 1941, chegava aos EUA um (muito bem pago) funcionário do governo brasileiro, que se tornaria um ilustre nome do panteão literário brasileiro: Orígenes Lessa. Ele fazia parte do corpo de cinco funcionários do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) que trabalhava na sede do EAIA em Manhattan. Basicamente, a função da equipe era garantir correção e integridade na disseminação da ideologia nacionalista do Estado Novo nos Estados Unidos. Isto implicava, de um lado, o “saneamento ideológico” da imagem Brasil, que deveria ser expurgada de tudo que pudesse indicar qualquer sinal de atividades comunistas no país. De outro, promovia vigorosa replicação de uma ideia cuja forma exemplar pode ser extraída de um livro infantil – publicado pelo Departamento Nacional de Propaganda (DNP) – intitulado O Brasil é bom (1938). A obra, Graham sintetiza, “elogiava a ditadura por acabar com as ‘divisões de classe’ e argumentava que o Estado Novo o Brasil não tolerava nenhuma ‘divisão racial, já que só o mérito garante o privilégio da ascensão social’” (p. 94).
Racismo? Não, não era “coisa nossa”. Aqui temos um exemplo paradigmático de negacionismo racial. Nas palavras da autora: “era a variante da democracia racial contrária ao realismo; seus porta-vozes colidiam com os realistas e negavam a existência de um problema de preconceito racial”. Graham ressalta que “o realismo era mais comum nos Estados Unidos e a negação mais comum no Brasil, mas as categorias tinham proponentes em ambos os países” (p. 8).
A presença de emissários do governo ditatorial de Getúlio Vargas nos EUA corrobora a tese de Graham de que, a despeito da evidente assimetria de poder, houve certo grau de reciprocidade na influência cultural entre Brasil e EUA no que diz respeito ao enquadramento discursivo da questão racial em seus respectivos nacionalismos. O próprio EAIA, segundo fontes primárias por ela citadas, apontava que o DIP “cooperava inteiramente com nosso esforço de publicidade” no Brasil. Na prática, censores do Estado Novo exerciam poder nas duas pontas: por seu crivo passava o que seria difundido nas filiais da agência no Brasil, e, ao mesmo tempo, desfrutavam também de controle significativo sobre o que se dizia a respeito do país na matriz, por trabalharem diretamente na produção do noticiário sobre o Brasil nos EUA (p. 200), que por sua vez faziam a mesma coisa. A bem dizer, o que Graham revela é uma verdadeira relação de comensalidade.
À época que essa imagem estadonovista do Brasil era propagandeada por lá, nos EUA, aquele país efetuava uma gradual desmarginalização da produção cultural negra, num processo capitaneado pelo jazz. Dando sequência a desenvolvimentos iniciados ainda na década de 20, com o movimento denominado Harlem Renaissanse (Renascimento do Harlem), a inserção da música negra no circuito da indústria cultural se harmonizava com o surgimento de um vocabulário nacionalista mais inclusivo e uma política cultural mais “pluralista” do ponto de vista racial (pp. 18-19).
Pra dar uma ideia do giro, Graham reproduz o comentário de um oficial estadunidense que criticara o envio de uma banda de jazz para a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, em 1922. Ele alegava que isso provocaria um “evidente dano” à imagem dos EUA, além do ato ser qualquer coisa menos “amigável” diante da nação anfitriã (p. 19). Pois bem, duas décadas depois, em 1941, o EAIA promoveria uma turnê do famoso coral Yale Glee Club pela América do Sul. A passagem pelo Brasil, que contou com apresentações em São Paulo e Rio de Janeiro, foi um enorme sucesso. No repertório do grupo, o gênero de música popular mais bem representado era o Negro spiritual, raiz da tradição musical negra dos EUA. Era um dos momentos preferidos do público, que reagia entusiasticamente, pedia bis. Todos os 63 membros do grupo eram homens brancos (p. 209).
Neste mesmo ano, sempre e ainda em 1941, estava em cartaz nos EUA That Night in Rio, musical estrelado por Carmem Miranda. O samba que sua voz levava a Hollywood vinha também desde os anos trinta passando por um processo de desmarginalização. Pra isso, porém, o samba precisou primeiro de abrigo e proteção (contra a perseguição policial) em terreiros como os de Tia Ciata e de Tia Perciliana (pp. 151-153). Daí, pôde florescer. Não seria exagero dizer que Carmem Miranda foi a prototípica personificação da centralidade da cultura negra como emblemática da imagem externa do Brasil nos EUA, desde que, tal qual a estadunidense aqui, fosse representada por pessoas brancas.
A exemplo do negro spiritual e do jazz do Harlem (e de New Orleans) em seu caminho rumo ao Rio de Janeiro, o samba percorrera um longo caminho da Pedra do Sal até Hollywood. Seu processo de desmarginalização e institucionalização como um dos símbolos da nacionalidade brasileira deixaria como marca indelével a deliberada marginalização daqueles que o criaram. Marginalização a um só tempo econômica e simbólica: Carmem Miranda se tornou não apenas a “atriz mais bem paga do mundo”, mas também, como versão de pele branca de algo negro, o samba “em sua versão refinada” – nos termos usados por um artigo do New York Times (p. 219; 221).
A injunção era, portanto, a mesma: transnacionalmente, o intercâmbio cultural conduzido como estratégia diplomática fará da produção artística negra um espaço de aproximação entre EUA e Brasil. Neste arranjo, o fato de a arte negra ter sido representada sistemática e exclusivamente por pessoas brancas ensejava se oferecer (pasmem?!) como expressão de antirracismo e, assim, dar concretude ao senso de harmonia racial que deveria emanar da imagem nacional de ambos os países.
Ao mesmo tempo, evidentemente, o processo levava a cabo uma deliberada exclusão da população negra tanto dos ganhos simbólicos como dos proventos materiais oriundos da exploração comercial daquilo que eles mesmos produziam. Essa forma particular de expropriação pode ser apresentada como uma paradoxal expressão do que Graham chama de obstrucionismo racial: “era o esforço de obstruir as mensagens racialmente inclusivas. Ao contrário dos defensores das outras categorias, muitos obstrucionistas eram contra qualquer expressão da democracia racial” (p. 8).
Em seus respectivos contextos domésticos, a banda não tocava muito diferente. Graham recorre à vasta bibliografia secundária para, no caso do Brasil, pontuar que mesmo Pixinguinha e Donga “estavam abaixo de muitos dos mais famosos mediadores brancos [como Noel Rosa] em riqueza material e prestígio social” (p. 169). Nos EUA, a indústria cultural da música já distribuía o indefectível rótulo de “Rei”. Nos anos 1920, o “Rei do Jazz” era Paul Whiteman, “um músico e empresário branco com formação clássica que desenvolveu o ‘jazz sinfônico’”. Na era das big bands, a partir da metade dos anos 1930, bandleaders negros, como Duke Ellington e Fletcher Henderson, que haviam estabelecido o estilo sonoro do swing anos antes do gênero virar uma sensação, também ficaram sem coroa. “O bandleader que seria ungido como Rei do Swing foi o clarinetista branco Benny Goodman, que comprara quase todos os seus arranjos de Henderson” (p. 220).
Se transnacionalmente a mediação branca era total e, na prática, resultava em uma forma de obstrucionismo, dentro de cada país ela ideologicamente funcionava como a estratégia que Graham denomina como dissuasão racial, isto é, desencorajava negros de se envolverem em ações que, expondo o preconceito, comprometessem as bases da arquitetura de dominação racial. Pelo contrário, quando operava no campo ainda mais tensionado da política institucional, ela frisa, “para guiá-los na direção desejada, os dissuasores frequentemente tentavam convencer os negros de que apoiar o status quo político era de seu maior interesse” (p. 8).
Graham mobiliza essas quatro categorias analíticas – realismo, negacionismo, obstrucionismo e dissuasão raciais – de maneira hábil e produtiva ao longo de todo o livro, confirmando sua proposição de que elas não “simplificam demais ou colapsam fenômenos complicados e multidimensionais”, mas “estabelecem espaço suficiente para a complexidade e as nuances existentes nelas” (p. 9).
Não obstante, o foco nos negros deixa espaço reduzido para a autora abordar o papel dos indígenas nos processos analisados. Como resultado, o livro reforça uma tendência (freyreana?) de relegar as populações nativas a segundo plano, quando da análise das dinâmicas de constituição dos nacionalismos nos EUA e no Brasil. Numa dimensão mais conceitual, este traço ofusca ainda um importante espectro de problemas que envolvem a ideia de democracia, quando em atrito com noções em que o étnico-racial é inextricavelmente vinculado ao território.
Conclusão: a grande fraude. Tomados em conjunto, ambos os quadrantes do livro de Graham representam uma magistral elaboração historiográfica de (ao menos) duas grandes questões. A primeira aponta para o caráter absolutamente fundante do vínculo entre raça e democracia na tradição de pensamento político ocidental. A raça e os racismos – tal qual as adscrições heteronormativas de gênero e seus decorrentes sexismos – sempre se apresentaram aí como pilares fundamentais, isto é, como noções que nunca deixaram de mediar e regular o pertencimento à comunidade política que assegura a uma pessoa o exercício da cidadania e, assim, dá existência de facto à democracia, a despeito do sistema político que a reivindique.
Por isso os esforços de emancipação negra sempre foram um “problema” ou, formulando nos termos de Graham, “a perspectiva do realismo racial [sempre] foi, por isso, declarada uma ameaça à nação” (p. 262). A rigor, obviamente, no que concerne ao Brasil e aos EUA, é um problema que antecede à ideia mesma de democracia como sistema político oficial: a primeira grande “ameaça à nação” foi a própria abolição da escravidão.
A “saída” encontrada na teleologia da modernidade, cuja fórmula-síntese é a famosa passagem de “escravo a cidadão” – hoje remodelada como de “cidadão de segunda classe” a cidadão (sem aspas) – vem sendo há mais de um século imaginada e implementada como uma transição plena de equívocos. Boa parte destes decorre de se ignorar um elemento para cuja centralidade o livro de Graham oferece abundantes evidências históricas, qual seja, a noção de branquitude como pedra angular da narrativa teleológica na qual a modernidade – apresentada como a junção de capitalismo e democracia representativa em suas formas liberais – aparece como indelével trajetória histórica em direção à igualdade e à liberdade.
E aqui se acopla a segunda grande questão: a da proeminência de um dos termos da díade reconhecimento-redistribuição como propulsor de transformação social propriamente democrática. Nesse sentido, as quatro categorias analíticas que Graham concebe (realismo racial, negacionismo racial, dissuasão racial e obstrucionismo racial) oferecem um modelo teórico-metodológico para abordar o problema de como substituir formas discursivas e simbólicas de democracia racial por medidas que ataquem o racismo estrutural abarcando-o na maior gama possível de desigualdades sociais que ele (re) produz – econômica, educacional, representação política etc. Daqui, da relação entre racismo e reprodução de desigualdades, “volto” ao tempo presente para avançar a hipótese com a qual encerro esta resenha.
A retórica política dos atuais chefes de Estado dos EUA e do Brasil, cujos nomes, por razões de decoro e higiene, me eximo de mencionar, dá mostras mais ou menos evidentes de que o “nacionalismo racialmente inclusivo”, cujas origens Graham traça, parece estar encontrando, nas “ruínas do neoliberalismo”, seu ponto de exaustão.2
Nenhum desses nacionalismos abre mão da referência à democracia.3 Pelo contrário. A seu modo, cada qual, de maneira mais ou menos inequívoca, a vincula à importância de garantir a prevalência do legítimo emprego da violência contra a inexorável ameaça colocada pelo avanço da (des)igualdade. Com os elementos assim dispostos, o racismo acaba (ou segue sendo?) entendido como uma virtude cívica, na medida em que explic[it]a o tipo e a natureza das exclusões que se supõem necessárias para garantir a integridade e a legitimidade da comunidade política constituinte do próprio “Estado democrático de direito”.
Se assim é – para encerrar com uma frase lapidar que Graham traz para seu livro – não seria nada anacrônico caracterizar essas duas “democracias” liberais com as mesmas palavras que, em meados dos anos 90, Abdias do Nascimento dedicou aos partidos políticos que, quase meio século antes, em 1945 (isto é, no princípio do processo de redemocratização do pós-guerra) haviam declarado apoio à sua recém-fundada Convenção do Negro Brasileiro. Segundo ele, “todos davam no mesmo em sua essencial fraude contra o povo preto” (p. 239).
Notas
1 O braço brasileiro do nazismo alemão funcionou durante dez anos (1928-1938), atuou em dezessete estados da federação e chegou a contar com 2.900 integrantes. Ana Maria Dietrich, Nazismo tropical? o Partido Nazista no Brasil (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2007) pp. 18-19.
2 Basicamente, essas ruínas são constituídas por uma racionalidade “focada exclusivamente em seu esforço para mercantilizar todos os aspectos da existência, desde instituições democráticas até subjetividade”, o que eventualmente desemboca em um “projeto político-moral que visa proteger as hierarquias tradicionais, negando a própria ideia do social”. e, por conseguinte, da factibilidade do bem-comum. Wendy Brown, In the Ruins of Neoliberalism: The Rise of Antidemocratic Politics in the West (The Wellek Library Lectures), Nova York: Columbia University Press, 2019, pp. 11-13.
3 Nesse sentido é oportuno atentar para o fato de que, mesmo o nazismo reivindicou a democracia, no caso, uma “democracia aclamatória”, que se seria superior tanto à da República de Weimar, quanto à dos regimes liberais ocidentais (p. 108).
Resenhista
Fernando Baldraia – Universidade Livre de Berlim. https://orcid.org/0000-0002-0140-757X
Referências desta Resenha
GRAHAM, Jessica Lynn. Shifting the Meaning of Democracy: Race, Politics, and Culture in the United States and Brazil. Los Angeles: University of California Press, 2019. Resenha de: BALDRAIA, Fernando. A grande fraude. Afro-Ásia, n. 61, p. 468-479, 2020. Acessar publicação original [DR/JF]
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