Alê Santos é um escritor e roteirista que, apesar de ter dado passos importantes em sua carreira, teve notoriedade por meio das redes sociais. Tal fato, certamente, não é demérito algum, mas a constatação de um movimento, bastante comum nos últimos anos: a ascensão proporcionada pela internet. Por meio de uma thread2, sobre o genocídio promovido pelo Rei Leopoldo no Congo, enquanto o país era ainda uma colônia belga, o autor ganhou enorme visibilidade chegando a um milhão de visualizações somente com esse tópico, cifra essa que foi superada várias vezes na medida em que ia melhorando a pesquisa e as informações compartilhadas.
O livro Rastros de Resistência: histórias de luta e liberdade do povo negro – finalista do prêmio Jabuti de 2020 – foi desenvolvido a partir de várias threads nas quais o autor levava, para os seus seguidores, informações sobre líderes negros, episódios de resistência e de tragédias sofridas por africanos e seus descendentes. Após se tornar uma figura pública, Alê Santos já colaborou com as revistas Superinteressante e Vice Brasil e com o jornal The Intercept Brasil, além de ser cofundador da Savage Fiction – empresa de consultoria de entretenimento estratégico – e também manter o Infiltrado na Cast – podcast3 hospedado no Spotify4 que divulga, “temas polêmicos e relevantes da atualidade através da perspectiva negra-brasileira”, entre eles, o afrofuturismo. 5
Assim, é de suma importância levar esses elementos em consideração para compreender a proposta de sua obra a qual busca, de certa forma, transmitir as ideias e as sensações que ele havia alcançado por meio das redes sociais, inclusive com sua linguagem de fácil acesso, o uso de cores, as diversas imagens, os capítulos nomeados como títulos chamativos, próprios das redes sociais, e com Códigos QR6 distribuídos por toda a obra direcionando o leitor para vídeos, documentários e videoclipes como forma de complementar os textos e as imagens do livro. Em uma coluna do jornal Diário Oficial do Estado de Pernambuco, o autor conta que “outro elemento entrou no meu trabalho durante essa segunda thread (sobre Saartjie Baartman, a Vênus Negra) a narrativa visual, passei a selecionar imagens e memes que possam contribuir para projetar minhas emoções no texto, complementando o entendimento de cada tuíte” 7.
Rastros de Resistência conta com 20 histórias curtas – uma por capítulo – que abordam casos de racismo, heróis e heroínas africanos ou em diáspora, tragédias individuais ou de todo um povo e casos curiosos que envolveram homens e mulheres negros. O livro não precisa ser lido de maneira linear e tampouco está organizado de forma cronológica, o que permite que a leitura seja feita buscando histórias específicas. O prelúdio e a introdução da obra são de grande valor na medida em que apresentam concepções que orientam as histórias contadas nas páginas seguintes. É nesse início que Alê Santos destaca a importância das tradições orais para os africanos, a tentativa, por parte dos europeus escravagistas, de apagar a cultura africana e a construção do racismo no imaginário popular por meio do racismo científico.
O autor recorre à Carl Jung para explicar a importância de heróis e heroínas na constituição do indivíduo e no enfrentamento de “situações adversas e a lidar com o mundo utilizando os artifícios da fé, da cultura e da cosmovisão” (p. 31) e à Isildinha Baptista Nogueira para explicar como a falta de referências que represente um povo pode adoecer toda uma sociedade. Assim, narrativas heroicas atuam na dimensão psíquica, na resistência e no combate ao racismo. O adoecimento durante a escravidão, defende Santos, não teria sido apenas físico e a posterior construção de estereótipos negativos para os negros foi reforçada pela ausência de representações positivas de africanos nos meios de comunicação de massa.
No decorrer do livro, o leitor toma conhecimento da história de Benedito MeiaLégua, líder quilombola que viveu até o final do século XIX, de Zacimba; princesa angolana que invadia navios negreiros e formou um quilombo no Espírito Santo; de Tereza de Benguela, rainha do quilombo do Piolho; de Chico da Matilde, que lutou pela abolição da escravidão no Ceará, quatro anos antes da Lei Áurea; de Benkos Biohó, líder quilombola que viveu na Colômbia entre os séculos XVI e XVII; de Galanga, conhecido no Brasil como Chico Rei, o responsável pela libertação de vários escravizados; de Inácio da Catingueira, cantador e duelista que viveu no final do século XIX; de Maria Remédios Del Valle, que lutou na guerra de independência da Argentina; de Nanny, rainha axânti que foi levada como escrava para a Jamaica e libertou vários negros e de Shaka Zulu, líder dos zulu, grupo que lutou contra a dominação britânica no século XIX.
Episódios dramáticos, de racismo e de exploração, também compõem o livro: No capítulo 9 temos acesso à história de Oto Benga, pigmeu que foi capturado em 1904 e levado para um zoológico nos EUA e dividiu uma jaula com um chimpanzé em nome de teorias científicas racistas; de maneira semelhante, no capítulo 12, somos apresentados ao caso de Sarah Baartman, a Vênus Negra, que foi levada, junto a outras mulheres, para uma exposição pelo Reino Unido em 1810, na qual foi enjaulada, abusada e “estudada” sob os fundamentos da biologia racial; No 11º capítulo, Alê Santos conta o caso de milhões de mortos no Congo sob atuação do rei Leopoldo II da Bélgica. Além do genocídio, diversas práticas de mutilação, decapitação, tortura e de trabalho escravo fizeram parte de uma das maiores tragédias da história.
Traição e resistência aparecem nos capítulos 14 e 18, respectivamente. O primeiro deles se refere ao episódio conhecido como Massacre de Porongos – a chacina dos lanceiros negros –, um dos capítulos finais da Revolução Farroupilha. Apesar de terem lutado ao lado dos revolucionários do Sul, os negros além de não receberem a liberdade, ainda foram colocados como oferenda no tratado de paz entre os rebeldes e o governo. Desarmados, pelo menos seiscentos negros foram assassinados. O segundo caso se relaciona com o tráfico de pessoas entre a África e a América, quando 75 africanos escravizados da etnia igbo tomaram o controle da embarcação em que eram transportados a mando de seu comprador. Sabendo da impossibilidade de retornar a África e com a certeza da escravidão no destino, optaram pelo suicídio coletivo.
Alê Santos narra também histórias sobre importantes reinos africanos, como é o caso de Whydah no capítulo 2. O autor explica a forma com que as potências imperiais assediavam as lideranças a fim de que colaborassem com o tráfico de escravizados. Os reis, por sua vez, em busca de proteção e apoio, militar e econômico, foram peças chaves no lucrativo comércio intercontinental de africanos. No capítulo 7, o autor destaca a complexidade, militar e política, do Império Axânti, com destaque para o rei Osei Tutu que chegou ao poder através da descendência matrilinear e foi o responsável por unificar as cidades, os rituais e os costumes no intento de fortalecer o reino que, após a unificação, foi derrotado para os britânicos no século XIX. O Reino Axum é apresentado no capítulo 13, com seu desenvolvimento fortemente ligado ao cristianismo, influenciando o movimento negro da Jamaica e também dos Estados Unidos no século XX, pregava o retorno dos africanos para sua terra.
Não há dúvidas quanto à importância de obras afrocentradas, como é o caso de Rastros de Resistência, e do esforço de Alê Santos em levar conhecimento que, no geral, não se encontra nos livros didáticos. O autor reforça a necessidade de que os negros sejam vistos em suas múltiplas formas e não apenas com imagens preestabelecidas pela branquitude, dessa maneira, por meio dos personagens escolhidos, é possível vislumbrar a potência de representar as pessoas negras como indivíduos complexos. Além disso, fica evidente, nas primeiras páginas de sua obra, a defesa de que o conhecimento produzido por pessoas negras é tão válido quanto àqueles estabelecidos como cânones nos centros de poder e de conhecimento, sendo que a constante disputa por espaços na produção de conhecimento é absolutamente necessária para que não haja, como destacou Sueli Carneiro, o epistemicídio8.
Outro aspecto importante na escrita de Alê Santos é a concepção de que os negros não precisam ser representados apenas na perspectiva positiva. De acordo com o pensador Clovis Moura, é preciso visualizar os negros no conjunto do processo histórico, seja em participações positivas ou negativas, reconhecendo-os como agentes participativos da construção da sociedade9. Identificar os atos de heroísmo, muitas vezes negado pela branquitude, é tão imporante quanto registrar os momentos falhos. A permissão para errar aparece na escolha em abordar o reino Whydah e a sua relação com a escravidão capitalista; o episódio do suicídio dos igbo e a derrota dos Axânti para os europeus. Esses exemplos fogem à essencialização do indivíduo e de uma dicotomia simplista que, geralmente, é a representação negra feita por mãos brancas nos meios de comunicação e de entretenimento.
Apesar dos vários acertos, para olhares mais exigentes, a obra pode não ser tão bem aproveitada em razão de alguns pontos e, nesse sentido, as imagens utilizadas no livro merecem ser melhor abordadas. Embora todas estejam creditadas ao final da obra e serem realmente boas – isoladamente –, muitas delas não aparecem ao longo do texto. Há a impressão de que elas foram colocadas apenas com o propósito de ilustrar, sem que possuam qualquer tipo de análise ou discussão. Apenas a título de exemplo – porque, afinal, isso se repete ao longo de toda obra –, logo no prelúdio (p.9), o leitor é apresentado à lenda de Kwaku Ananse e a sua importância por ter devolvido a felicidade ao mundo ao resgatar as histórias que estavam sob domínio de Nyame, o deus dos céus. Nesse ponto, o leitor se depara com a imagem, pintada por Debret (p. 8), de um escravizado com colar de ferro no pescoço e na página seguinte, uma fotografia com vários negros trazidos da África para o Brasil (p. 10). Enquanto conhece esse interessante mito, não há uma construção de relação entre ele e as imagens apresentadas, pois as imagens não só não se relacionam com o texto como também, sob muitos aspectos, pode provocar um sentimento conflitante com ele.
Certamente, o “leitor comum”, a quem provavelmente se destina a obra , não se incomodará com isso, mas o mesmo, provavelmente, não vai acontecer com historiadores. Nesse mesmo sentido, ao observarmos as fontes de Alê Santos, percebemos que a pesquisa foi feita e que a bibliografia aparece honestamente ao final da obra, porém as referências não são feitas no decorrer do texto e, mesmo não se tratando de um historiador, diversas afirmações que são feitas durante o livro seriam melhor subsidiadas com a referência direta. Da forma que a obra foi pensada, seria difícil utilizá-la como referência em um texto historiográfico, restando ao interessado buscar nas referências bibliográficas as informações contidas no texto de Rastros de Resistência.
Tratando-se de uma proposta afrocentrada, três coisas podem ainda ser consideradas: a primeira delas é a utilização da palavra “escravos” durante toda a obra, mesmo essa terminologia sugerindo que a escravidão é inerente à pessoa, o que sabemos que não é, nem no caso dos africanos, nem em caso algum. É bem provável que em uma nova edição a palavra seja substituída por “escravizado”, adequando-se assim ao conjunto de melhores termos para se referir aos africanos que foram retirados do continente para trabalhos forçados.
A segunda questão acontece quando o autor procura legitimar a grandeza e a importância dos povos africanos, comparando-os com conhecidos casos fora da África, quando, na verdade, eles valem por si só. Tal fato fica evidente em “os nativos praticavam agricultura de forma extensiva e o comércio interno era tão desenvolvido que o mercado popular em Whydah chegava a ser maior que o de muitas cidades atuais, como Amsterdã” (p. 42, grifo nosso) e, mais adiante, ao se referir aos igbo, Alê Santos afirma que eles “são um dos grandes grupos étnicos da África. Cerâmicas encontradas apontam suas origens para mais de 2 mil anos a.C. Seu calendário, matemática e sistema de governo eram sofisticados, se aproximando de uma república democrática moderna” (p. 116, grifo nosso).
Por fim, o terceiro ponto que merece destaque: Alê Santos pontua bem como pensadores europeus refletiam o pensamento de sua época e reproduziam discursos de inferiorização de negros e outros povos não europeus, fatos que contribuíram para que a ciência tenha sido um dos braços no processo de construção do imaginário racista após o Iluminismo. O autor cita Kant (p. 25) e Hegel (p. 35), mas, curiosamente, se baseia em Jung (p. 30) para definir a importância de heróis e heroínas para o imaginário de um grupo. O psicanalista suíço, em algumas passagens, demonstrou, de forma nem sempre sutil, que alguns povos eram considerados “primitivos”. Assim, é importante saber se o racismo de Jung compõe sua teoria psicológica ou se são apenas “comentário isolados”. Frantz Fanon, um dos nomes mais importantes no estudo sobre o impacto do racismo na vida de homens e mulheres negros, desconfia da visão binária de Jung10. O racismo de Jung foi abordado11 até mesmo pela própria comunidade de pesquisadores junguianos e merece ser considerado.
Nenhum desses pontos retira o mérito ou a beleza de Rastros de Resistência. A obra integra um importante corpo de materiais que combate estereótipos e contribui para que mais pessoas conheçam e se interessem por temas em torno da África e dos negros em diáspora. Prova disso é que o governo de São Paulo já adquiriu a obra de Alê Santos para distribuir nas escolas de todos o estado. Por ser uma leitura fácil e um livro esteticamente atrativo, é bem provável que faça sucesso entre estudantes dos ensinos fundamental e médio. Cabe aos professores preencher as lacunas, problematizar as imagens e discutir as representações em torno de um grupo de pessoas que ainda está, infelizmente, distante da tão necessária igualdade racial.
Notas
2 Sequência de tuítes conectados a um mesmo tópico. Uma das características do Twitter é limitar cada postagem a 280 caracteres, dessa forma, na impossibilidade de escrever longos textos o usuário dessa rede social precisa usar o recurso das threads.
3 Conteúdo em áudio, disponibilizado através de um arquivo ou streaming
4 Serviço de streaming de música, podcast e vídeo mais popular e usado do mundo. Disponível em https://www.techtudo.com.br/listas/2021/04/spotify-cinco-curiosidades-quevoce-nao-sabia-sobre-o-streaming.ghtml acesso 26 maio 2021.
5 Segundo o autor: Movimento social, político e estético presente no subgênero da ficção científica. Está associado a tecnologias e utopias e aborda realidades ainda não vividas, utilizando a ancestralidade negra brasileira, negra de diáspora, negra africana. SOUZA, Marina Duarte de. STROPASOLAS, Pedro. O afrofuturismo de Ale Santos. Quero reconstruir o imaginário social brasileiro. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2020/11/24/o-afrofuturismo-de-ale-santos-queroreconstruir-o-imaginario-social-brasileiro. Acesso em 26 maio 2021.
6 É um código de barras que pode ser escaneado usando telefones celulares equipados com câmera.
7 SANTOS, Alê. Os bastidores do novo livro de Alê Santos. Disponível em http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/67- bastidores/2218-os-bastidores-do-novo-livro-de-al%C3%AA-santos.html. Acesso em 27 de abr. 2021
8 CARNEIRO, Aparecida Sueli; FISCHMANN, Roseli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
9 A NAÇÃO afro-brasileira: entrevista com Clóvis Moura (1981). Disponível em https://www.geledes.org.br/nacao-afro-brasileira-entrevista-com-clovis-moura/ Acesso em 11 fev. 2021.
10 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008. p. 161.
11 DALAL, Farhad. Jung: a racist. British Journal of Psychotherapy, London, 1988. 4(3), p. 263 – 279.
Referências
A NAÇÃO afro-brasileira: entrevista com Clóvis Moura (1981). Disponível em https://www.geledes.org.br/nacao-afro-brasileira-entrevista-com-clovis-moura/ Acesso em 11 fev. 2021.
CARNEIRO, Aparecida Sueli; FISCHMANN, Roseli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
DALAL, Farhad. Jung: a racist. British Journal of Psychotherapy. London, 1988. 4(3), p. 263 – 279.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008. p. 161.
Serviço de streaming de música, podcast e vídeo mais popular e usado do mundo. Disponível em https://www.techtudo.com.br/listas/2021/04/spotifycinco-curiosidades-que-voce-nao-sabia-sobre-o-streaming.ghtml acesso 26 maio 2021.
SANTOS, Alê. Os bastidores do novo livro de Alê Santos. Disponível em http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5esanteriores/67-bastidores/2218-os-bastidores-do-novo-livro-de-al%C3%AAsantos.html Acesso em 27 de abr. 2021
SOUZA, Marina Duarte de. STROPASOLAS, Pedro. O afrofuturismo de Ale Santos. Quero reconstruir o imaginário social brasileiro. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2020/11/24/o-afrofuturismo-de-ale-santosquero-reconstruir-o-imaginario-social-brasileiro. Acesso em 26 maio 2021.
Resenhista
Kassius Kennedy Clemente Batista – Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB).
Referências desta Resenha
SANTOS, Ale. Rastros de Resistência: histórias de luta e liberdade do povo negro. São Paulo: Panda Books, 2019. Resenha de: BATISTA, Kassius Kennedy Clemente. Fragmentos de uma história usurpada: Rastros de Resistência e o combate da narrativa colonialista. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 34, n. 1, p. 294- 302, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR/JF]
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