Em linguagem ágil, narrativa vertiginosa, Juremir Machado da Silva, em 38 capítulos, leva o leitor às páginas de jornais que interpretavam os significados dados por autores de notícias acerca do dia da abolição definitiva da escravidão no Brasil, e também eventos variados que ajudariam a compreender o 13 de maio de 1888. Contudo, os capítulos, cuja organização não compreendi o sentido, falam de tudo um pouco em termos de notícias da defesa ou ataque ao regime escravista. Como o livro não tem uma hipótese a ser trabalhada, uma questão a ser respondida, então, o leitor se depara com um circuito aberto de idas e vindas a jornais do século XIX: notícias sobre escravidão e situações ocorridas em anos posteriores, como o golpe militar-empresarial de 1964, e a ditadura então instalada, constituem boa parte do estilo narrativo da obra. Comentários para lá de genéricos e senso comum completam o quadro, como o da abertura do capítulo dezesseis:
Cada país tem sua percepção do que o caracteriza melhor. Os brasileiros gostam de se ver como pertencentes ao país da alegria, da descontração, da musicalidade, da gentileza, da cordialidade, do contato fácil entre as pessoas e de gosto pela vida informal na qual as fronteiras de classe se dissolvem o tempo todo. (p. 223)
O autor não compõe o livro com trechos de notícias arrumandos numa linha de causa e consequência, nem de um estudo da teia de palavras, expressões, verbos que estruturavam os argumentos de otimismo ou pessimismo acerca dos rumos que a nação tomaria, diante de fato internacionalmente noticiado, de tão impactante que havia sido para as elites. Não há mergulho em jornais ou colunas específicas, fazendo qualquer tipo de investimento na economia das trocas linguísticas de seus autores e outras fontes de pesquisa, porque, também, estas não foram usadas. Os verbos, as maneiras de estruturar argumentos sobre insurreições, prisões, julgamentos, fugas e outros episódios cotidianos envolvendo escravos, além de debates do âmbito jurídico e literário acerca da escravidão como instituição oficial do Estado apontam a necessidade de qualquer investigador perscrutar o perfil de quem escreve o quê e para quem. Os trabalhos pioneiros de Robert Park, jornalista antes de ingressar na vida universitária como antropólogo, renderiam boas discussões do material apresentado por Juremir Machado da Silva, principalmente a geografia moral dos lugares narrados pelas notícias de jornais, fundamental quando há presença flagrante de moralidades racistas.1 Do contrário, bastaria ao historiador estudar um único periódico e, numa sociologia de quinta categoria, generalizar suas características para dizer que todos os outros periódicos, escritos por homens brancos, escravistas, endinheirados, falavam da mesma coisa da mesma maneira, ou seja, eram sementes do conservadorismo brasileiro, fora quando um pardo ou branco desviante se metessem no meio para contradizer os estabelecidos. Operando o autor como fez, os eventos e os jornais não têm respeitadas suas características narrativas específicas, e seus autores pouco ganham em densidade social. Os fatos envolvendo as ações de escravos, como as fugas, são ficções nas narrativas sobre algo que teria ocorrido, mas que ao autor somente interessam como parte do big-bang do conservadorismo brasileiro.2
Assim, os jornais, em termos genéricos, são descritos e analisados brevemente pelo autor como fontes de pesquisa auto-suficientes, quando são parte de maneiras de externar visões de mundo e formas de existência, a famosa “cultura´3. Outras fontes completam análises de temas que tenham sua força nas publicações jornalísticas. Há livros que tratam da imprensa por rigorosos caminhos metodológicos que poderiam auxiliar Juremir Machado da Silva.4
Caberia, então, para se ter certa segurança quando pesquisamos jornais, saber o perfil dos seus leitores, algo bastante complexo, e não ignorar os perfis e as trajetórias de seus editores e autores. Como dimensionar as interpretações das notícias sobre quaisquer temáticas, inclusive de grande impacto para aspectos os mais diversos da vida no Império do Brasil como a abolição da escravidão? Se o autor não fez este exercício de expor ao leitor quem eram os agentes sociais que escreviam tão heroicamente contra a escravidão, e muito menos avalia seus textos em termos estético-literários, como entender comentários depreciativos acerca das caraterísticas da escrita de um romancista do século XX, Josué Montello (p. 383)? As promessas de respostas para questões genéricas (p. 12) sobre a sustentação social de um jornal não são encontradas nos curtos e rasos capítulos do livro. Criticando uma série de possibilidades historiográficas em frases soltas, como se fosse um resumo da maneira pela qual escreveu o livro, o autor enuncia, tal qual um messias do jornalismo historiográfico, que não seguirá nenhum destes caminhos de certa forma postos como esquisitos, digamos. Em nome do exercício de análise jornalística com sotaque historiográfico, produziu seu livro.
Nestas mesmas páginas iniciais do livro, os jornais são apontados como espécie de suprassumo das fontes documentais, que
continuam, no silêncio dos arquivos, a gritar “extra-extra” e a iluminar, na obscuridade das encadernações, aquilo que, com a passagem de anos, se torna imprescindível compreender (p. 13).
Não tenho, na minha humilde prática de investigação, nada além de indagar as fontes, colocando questões que a partir delas serão reformuladas e respondidas, e outras tantas construídas. As fontes, sejam mais conhecidas ou underground, não vão me dizer nada por elas mesmas. Mas, para Machado da Silva, elas dizem, porque só esperam por ele.
Numa relação de morde e assopra com a importância do protagonismo dos escravos nas lutas cotidianas que erodiam a escravidão como instituição e levaram à sua abolição oficial, Machado da Silva enaltece, também, os homens que publicavam as notícias de jornal antiescravistas. No início do livro, “o negro escravo produziu sua libertação” (p. 17). Se os escravos foram os grandes responsáveis pela abolição oficial, por parte do Estado, que os oprimia, como entender o autor, mais adiante, afirmar que “a abolição foi um produto, de certo modo, da imprensa. Uma obra do impresso. O resultado de um campo de lutas”. Ora, escravos, no Brasil, até onde se sabe, não escreviam sobre si em jornais.
Então, seria o autor também um conservantista, na medida em que atribui à elite jornalística o final da escravidão, uma espécie de vanguarda sem a qual os escravos estariam aguardando o final feliz de suas ações, até hoje? Ou teria ele caído na armadilha do escravo-coisa, reinante até os anos 1970, em que sua situação era de tal monta violenta que não sobravam energias ao seu depauperado cérebro para comandar seu corpo para quaisquer tipos de reação que não fossem a obediência ou a desobediência de consequências péssimas para sua existência? Flávio Gomes pintou e bordou esse cenário em detalhes, mostrando a genealogia desta perspectiva e as condições de possibilidade para a guinada historiográfica, com os escravos passando a serem agentes de suas próprias vidas.5 Robert Slenes, na apresentação de outro estudo do mesmo autor, questiona o escopo de análises radicais acerca do domínio das estruturas econômicas nos rumos da vida social, no caso da escravidão sob a égide interpretativa do escravismo colonial.6
Diante da ausência de uma questão, e, também, de qualquer caracterização mínima que fosse de “imaginário social”, presente no subtítulo do livro, uma proposta de jornalismo historiográfico não cumprida e anacronismos estilísticos, pensei, ao final de minha leitura, que Raízes do conservadorismo brasileiro talvez possa ser encarado como um livro fruto de notas de estudo, conversas do autor com interlocutores em ambientes acadêmicos e não acadêmicos, minimamente organizadas em capítulos nada científicos (mas, estranhamente, namorando com vários de seus aspectos), numa espiral temporal narrativa. Politicamente compromissado com denúncias bem-intencionadas, e descompromissado com quase nenhum rigor científico, através de uma escrita que se quer agradável e revolucionária. Contudo, o autor revela indecisão quanto ao peso da narrativa dos jornais para o final da escravidão, e das diversas ações dos escravos neste mesmo sentido, conforme um tsunami historiográfico vem demonstrando. Seus argumentos podem fazer o leitor desavisado cair na esparrela do indivíduo versus sociedade, natureza versus cultura, e tantos outros dualismos que marcaram e ainda marcam a historiografia e as ciências sociais. Este livro é um exemplar das consequências de não se encarar as disjunções entre explicações com peso nas estruturas estruturantes e as que forçam a mão na agência, na ação individualmente compreendida como fruto de leituras da vida social.7 Lendo as credenciais profissionais, honoríficas e também acadêmicas usadas pela prestigiosa editora na apresentação de seu autor -produto, ao final da orelha do livro, fica em mim a decepção daquelas operações metodológicas e teóricas não estarem presentes no mesmo.
Notas
1 Robert Park, “News and the power of the press”, The American Journal of Sociology, vol.1, no. 47 (1941), pp.1-11‑ Robert Park, “Chapter IV – The natural history of the newspaper´, in Robert E. Park, Ernest:. Burgess e Roderick D. Mackenzie (orgs.), The City (Chicago e London: The University of Chicago Press, 1967), pp. 80-98.
2 Uso aqui o conceito de “ficção” no sentido de James Clifford e George Marcus (orgs.), Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography, Berkeley, Los Angeles e Londres: University of California Press, 1986.
3 Roy Wagner, A invenção da cultura, São Paulo: Cosac Naif, 2010.
4 Luis Nicolau Parés, A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, Campinas: Editora da UNICAMP, 2006; Flávio dos Santos Gomes, Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; Eduardo Silva, As queixas do povo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Flora Süssekind, Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1987; Lilia Moritz Schwarcz, Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
5 Gomes, Histórias de quilombolas, pp. 15-42.
6 Robert W. Slenes, “Escravismo por um fio?”, in Flávio dos Santos Gomes, A Hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil – séculos XVII-XIX (São Paulo: Editora UNESP, Editora Polis, 2005), pp. 15-24.
7 Pierre Bourdieu, Esquisse d’une théorie de la pratique précédé de trois études d’ethnologie kabyle, Genebra: Droz, 1972‑ Pierre Bourdieu, Raisons pratiques: sur la théorie de l’action, Paris: Seuil, 1994‑ Sharyl Ortner, “Uma atualização da teoria prática´, in Miriam Grossi, Peter Fry e Cornélia Eckert (orgs.), Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas (Blumenau: Nova Letra, 2007), pp. 19-44.
Resenhista
Luiz Alberto Couceiro – Universidade Federal do Maranhão. E-mail: luizalbertocouceiro@gmail.com
Referências desta Resenha
SILVA, Juremir Machado da. Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. Resenha de: COUCEIRO, Luiz Alberto. Conservando o conservadorismo: entre a agência escrava e a estrutura jornalística. Afro-Ásia, n.57, p. 253-257, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]
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