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Pindorama pré-cabralina – Resenha de Lenine Flamarion Oliveira da Silva – M’byá guaraní (SMEDC/PPGAFIN-Uneb) sobre “A terra dos mil povos: História indígena do Brasil contada por um índio”, de Kaká Werá Jecupé

Kaká Werá Jecupé | Imagem: Arquivo pessoal

ResumoA terra dos mil povos: História indígena do Brasil contada por um índio”, escrito por Kaká Werá Jecupé e publicado em 2020 pela editora Peirópolis, busca explorar e valorizar os saberes ancestrais transmitidos pela oralidade dos povos originários do Brasil, que foram apagados ou esquecidos pela ação colonizadora. A obra é composta por reflexões sobre o que é ser um índio, sua relação com a terra e a natureza, a invenção do tempo e a trajetória histórica dos povos indígenas no Brasil. Também apresenta a importância dos líderes indígenas do Brasil contemporâneo, que lutam por direitos e preservação de suas culturas.

Palavras-chave: Povos Indígenas, História Indígena, Direitos Indígenas.

Pindorama before Cabral – Lenine Flamarion Oliveira da Silva’s review of A terra dos mil povos: História indígena do Brasil contada por um índio, by Kaká Werá Jecupé.”

AbstractA terra dos mil povos: História indígena do Brasil contada por um índio written by Kaká Werá Jecupé and published in 2020 by Peirópolis, aims to explore and value the ancestral knowledge transmitted through the oral tradition of the indigenous peoples of Brazil, which were erased or forgotten by colonization. The book is composed of reflections on what it means to be an indigenous person, their relationship with the land and nature, the invention of time, and the historical trajectory of indigenous peoples in Brazil. It also highlights the importance of contemporary indigenous leaders who fight for their rights and the preservation of their cultures.

Keywords: Indigenous Peoples, Indigenous History, Indigenous Rights.


A terra dos mil povos: História indígena do Brasil contada por um índio, escrito por Kaká Werá Jecupé, publicado em 2020 pela editora Peirópolis tem como objetivo perceber e refletir sobre saberes milenares transmitidos pela oralidade dos povos originários brasileiros. O autor é indígena pertencente ao povo Tapuia, também conhecido como txukarraMãe – “guerreiro sem arma”. Nascido em São Paulo, em 1964, “Kaká é um apelido, um escudo” (p. 13). Batizado Carlos Alberto dos Santos, é colunista, ativista social, escritor, ambientalista e conferencista. Há mais de 20 anos dirige o Instituto Arapoty, organização que trabalha com jovens de Itapecerica da Serra (Grande São Paulo), com o intuito de difundir os valores das culturas indígenas. Leciona, desde 1998, na Universidade Holística Internacional da Paz (Unipaz) e na Fundação Peirópolis.

Ao longo de duas décadas, lançou seis livros: A Terra dos Mil Povos – História Indígena do Brasil Contada por um Índio (1998); Tupã Tenondé (2001); O mito tupi-guarani da criação; Wé Roiru’a Ma – Todas as Vezes que Dissemos Adeus (2002); As Fabulosas Fábulas de Iauaretê (2007); O Trovão e o Vento: Um Caminho de Evolução pelo Xamanismo Tupi-Guarani (2016); A Águia e o Colibri – Carlos Castañeda e Ancestralidade Tupi-Guarani e por último, Trilhas com Coração (2019). Suas obras visam expor e discutir os saberes, as memórias dos povos originários, em especial, os Tupi Guarani, sem deixar de contestar a visão eurocêntrica imposta pelos pesquisadores das ciências sociais.

A obra resenhada é o primeiro trabalho do autor. Surgiu de um contexto de militância, em idas e vindas dentro do Brasil e outros países das Américas e do velho continente. O conhecimento compilado foi adquirido desde a década de 1980 aos últimos anos do milênio passado. Esse recorte de tempo é marcado pela luta do reconhecimento e inserção dos direitos dos povos indígenas, na Constituição Federal de 1988 e a unificação destes povos. Contudo, Werá Jecupé sentiu a necessidade de empunhar mais uma arma nessa batalha: a caneta e o papel. Seu intuito foi o de materializar e compartilhar tal conhecimento, explorado neste livro em seis partes.

Na primeira, intitulada “O que é índio”, o autor expõe origem do termo índio, ao qual surge com a chegada dos invasores europeus, no final do século XV e início do XVI, e que para os povos aqui existentes, no recorte de tempo apontado, era uma denominação desconhecida. Os povos originários se autodenominavam através de suas respectivas vivências, pois, para eles viver é algo sagrado e o nome adotado por cada etnia materializa-se em um escudo protetivo. Entre esses povos não há uma divisão entre o mundo material e o espiritual. Tudo que nos cerca, afirma o autor, tem um espírito, um sentido.

Na segunda – “A terra dos mil povos”, Jecupé aborda que os Tupi, Guarani, Tupinambá, Tapuias, Xavante, Kamayurá entre outros, foram os habitantes originários, e desses surgiram outros. Prossegue levantando o questionamento com o termo apropriado para designar cada grupo, se são raças, tribos, nações ou clãs, mas independente do termo, estes povos são provenientes de “uma árvore comum” como os Tupy, Jê, Karib e Aruak. Também é explicado que a cultura desses povos é alicerçada na memória, nas práticas ritualísticas e nas suas filosofias de vida, que remetem às suas respectivas origens, e são carregados de valores, ensinamentos, fundamentais para a compreensão do surgimento de cada etnia.

Na terceira parte – “A invenção do tempo”, o autor relata a passagem de outros povos de terras “além-mar” para nossa região costeira com objetivos bem diversificados como comercializar e efetuar estudos, os quais ainda são um mistério para os pesquisadores atuais, não figurando nas páginas da história oficial. Povos como Egípcios, Cananeus, Tártaros, Babilônios, Fenícios e Hebreus passaram por aqui há mais de cinco mil anos deixando suas marcas por várias regiões do litoral brasileiro. Além desses povos, existem registros de contatos entre os grandes impérios que surgiram no continente americano, como os Astecas, Maias, e sobretudo os Incas, com os povos situados na Amazônia, influenciando-os em vários aspectos. Jecupé declara que quando os portugueses aqui aportaram com a finalidade de explorar essas terras, os Tupy e suas ramificações exerciam uma dominação no litoral, escravizando outras etnias, criando assim, uma rivalidade, à qual os colonizadores souberam explorar muito bem a seu favor.

Na quarta parte – “ Pequena síntese cronológica da história indígena brasileira”, Werá Jecupé (p. 74) destaca que o “tempo” é considerado uma “divindade sagrada” pelos povos originários, “responsável pela conservação dos ciclos: as estações”. Os portugueses, quando aqui chegaram, impuseram a sua forma de medição linear do tempo e, respectivamente, sua visão da história europeizante (a História dos vencedores), deixando de fora a história construída há milhares de anos, por milhões de habitantes que aqui viviam. A partir dessa forma imposta de medir o tempo, o escritor data acontecimentos marcantes nos mais de quinhentos anos de contato, partindo da chegada da esquadra de Cabral em 1500 até o ano de 1998, quando foi denunciado na Universidade de Stanford, no estado norte americano da Califórnia, a presença de missões provenientes desse país, as quais  praticavam o roubo dos conhecimentos medicinais milenares dos povos indígenas, para serem entregues as multinacionais de medicamentos e cosméticos  instaladas na Amazônia.

Na quinta e última parte – “ Contribuição dos filhos da terra à humanidade”, o autor pontua as diversas colaborações deixadas pelos povos indígenas para a sociedade brasileira. A catalogação desse legado foi iniciada, nos primeiros anos da década de 1980, por historiadores e antropólogos, a mando de laboratórios farmacêuticos internacionais, que objetivavam lucrar com tal conhecimento. Além do saber medicinal da flora, a agricultura praticada pelas etnias aqui residentes foi fundamental para a sobrevivência dos colonizadores e até hoje a relação entre estes povos com a fauna e a flora é exemplo de equilíbrio e sustentabilidade para a manutenção da espécie humana no planeta. Por fim, explana Kaká Werá Jecupé, as línguas indígenas também contribuíram para a formação cultural brasileira. Elas compõem o cotidiano do povo Brasileiro, em especial a língua tupi que se faz presente na nomeação de espécies da fauna, da flora, e também de acidentes do relevo.

Concluindo o livro, em “Os líderes indígenas do Brasil do Brasil contemporâneo” o escritor alega que a história oficial enaltece os “heróis do pioneirismo” português, deixando de fora os guerreiros e guerreiras indígenas, numa tentativa de silenciar as vozes denunciantes das atrocidades praticadas pelos colonizadores. Contudo, os feitos e as vozes de Cunhambebe  (“a mulher que voa”), Aimberê (“o filho da liberdade”), Sepé Tiarajú  (“o santo guerreiro”), ainda ecoam por estes montes e florestas, desde os primórdios da colonização até os nossos dias.

HQ sobre Sepé Tiarajú publicada pela Câmara dos Deputados | Imagem: Reprodução/Revista Forum

O ecoar dessas vozes do passado se entrelaçam com as do presente. Na contemporaneidade, o autor cita alguns representantes dessa história não contada que foram e continuam sendo fundamentais para (re)existência dos povos indígenas que sobreviveram aos mais de cinco séculos de genocídio: Mário Juruna – o primeiro deputado indígena, Raoni – guerreiro global, Ailton Krenak – cabeça na terra, Álvaro Tucano – articulador da nova confederação, Sônia Guajajara – presença guerreira dos Tenetehara e a Joênia Wapichana.

No geral, este livro configura-se em um excelente trabalho, trazendo uma discussão bem atual com relação a temática indígena. Porém, em um próximo lançamento, o autor poderia fazer alguns pequenos ajustes para que o público leigo, com relação as questões indígenas, pudesse compreender com maior nitidez a finalidade da obra.

Primeiramente, podemos apontar a falta de um sumário para que o leitor se oriente no correr do trabalho. Um outro falta está na exposição do objetivo obra. Em nenhuma parte Werá Jecupé, aborda sua intenção com tal trabalho publicado. Quem cumpre a tarefa é a prefaciadora Janice Thiél, ao afirmar que objetivo principal é perceber e refletir sobre saberes milenares transmitidos pela oralidade dos povos originários brasileiros, apagados ou esquecidos pela ação colonizadora, o qual pudemos observar, no decorrer da leitura, que foi desenvolvido e alcançado com maestria.

Um outro ponto a ser melhorado é com relação a conclusão. O autor finaliza a obra sem abordar suas considerações finais deixando um pequeno vácuo, podendo prejudicar a leitura de quem não tem conhecimentos prévios sobre o assunto. Por último, embora sem muita relevância, destaco a insuficiência do título da obra. Apesar do falar em mil povos, o autor se atém a abordar a trajetória e os mitos de criação de um pequeno recorte das etnias aqui existentes, voltando-se principalmente aos povos tupi – guarani. Pode ter sido apenas uma metáfora, mas o público merecia um pequeno esclarecimento sobre a opção do autor.

Apesar destes pormenores apontados, esta obra figura dentre as melhores já publicadas sobre a temática indígena. Kaká Werá Jecupé inaugura um novo olhar sobre a história dos povos indígenas e do Brasil. Voltado ao público indígena e não indígena, estudiosos e militantes da questão indígena, este grande autor indígena lançou as bases de uma nova tradição estética e literária de se conceber as trajetórias dos povos indígenas, transformando a escrita em mais uma arma de resistência e difusão dos conhecimentos destas etnias do Brasil.


Sumário de Terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio.

Prefácio | Janice Thiél

  • O que é índio
  • A terra dos mil povos
  • A invenção do tempo
  • Pequena síntese cronológica da história indígena brasileira
  • Contribuição dos filhos da terra à humanidade
  • Os líderes indígenas do Brasil do Brasil contemporâneo

Para ampliar a sua revisão da literatura


Resenhista

Lenine Flamarion Oliveira da Silva – Mbyá Guarani é licenciado em História pela Universidade Federal do Acre (UFAC), especialista em educação e interdisciplinaridade pelo Instituto Federal Baiano (IFbaiano), professor do ensino fundamental e médio, na rede municipal de educação da cidade de Central e na Escola Coperativista, sertão baiano, e metrando no Programa de Pó-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras (PPGEAFIN/Uneb – Campus XVI – Irecê). Publicou o artigo, Movimento contracultural acreano: Da utopia ao sonho, do sonho a utopia? (Amazonia Undergroud, 2022). ID LATTES: http://lattes.cnpq.br/4206405575704405; ID ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2982-1681; E-mail: guerrilhacentral@gmail.com.


Para citar esta resenha

JECUPÉ, K. W. Terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio. 2ed. São Paulo: Peirópolis, 2020. 128p. (Ilustrado por Taisa Borges). Na Pindorama pré-cabralina. Crítica Historiográfica. Natal, v.3, n.09, jan./fev.., 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/na-pindorama-pre-cabralina-resenha-de-a-terra-dos-mil-povos-historia-indigena-do-brasil-contada-por-um-indio-de-kaka-wera-jecupe/>. DOI: 10.29327/254374.3.9-10

Itamar Freitas

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Itamar Freitas

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