Este é um livro sobre Páscoa Vieira, uma africana denunciada à Inquisição em 1693 por bigamia. O gesto deu origem a uma investigação que durou sete anos e revela a vida de uma mulher ao mesmo tempo ordinária e excepcional. Páscoa nasceu e viveu em Massangano, uma pequena vila fortaleza situada a 200 km de Luanda, no Reino de Angola, trabalhando como escrava nos campos e nas casas de uma rica família de luso-africanos. Casou-se aos 16 anos com Aleixo, também escravo, com quem teve dois filhos, mortos ainda pequenos. O casal não se dava bem e Páscoa fugia com frequência. Como castigo, seu senhor a vendeu para um conhecido, um notário público (tabelião) residente em Salvador, capital do então Estado do Brasil. Foi assim que Páscoa atravessou o Atlântico pela primeira vez, por volta de 1686, aos 26 anos. Um ano depois, casou-se com Pedro, um africano procedente da Costa da Mina, seu companheiro de escravidão. Tiveram dois filhos.
Eles viveram muito bem por sete anos, até Páscoa ser reconhecida por um parente de seu senhor que acabava de chegar de Angola. O recém-chegado contou que ela já era casada e que seu primeiro marido ainda estava vivo. Por medo da Inquisição e necessidade de manter seu ofício e posição social, o senhor denunciou a escrava por bigamia e separou o casal, vendendo Pedro. Mesmo assim os dois conseguiram ficar juntos até 1700, quando Páscoa foi forçada pela Inquisição a atravessar novamente o Atlântico, desta vez rumo ao norte, para ser julgada em Lisboa. Antes disso, foi alforriada, pois seu senhor não mais queria ter qualquer responsabilidade sobre ela, nem estar ligado ao seu destino.
Páscoa enfrentou a Inquisição sozinha, contando com sua habilidade e inteligência. Foi considerada culpada e condenada a três anos de exílio em Castro Marim, no sul de Portugal. Conseguiu abreviar a pena depois de dois anos, mas não se sabe se chegou a voltar para o Brasil. Como desaparece da documentação, o resto de sua vida fica encoberto por sombras.
Ao escolher seguir o andamento do processo como fio condutor de sua análise, Charlotte de CastelnauL’Estoile desenvolve uma dupla reflexão: sobre o trabalho do historiador e sobre o modo como as fontes, sua matéria prima, foram produzidas. O documento possui 114 fólios, escritos entre 1693 e 1703, que registram uma investigação secreta, feita com cuidado e diligência, em três continentes. Ao mesmo tempo exercício de micro- -história e de história global, o livro discute as possibilidades e os limites das fontes disponíveis para a análise da escravidão moderna e de suas relações com a formação do mundo colonial. Ao colocar o processo inquisitorial no centro da cena, oferece uma nova abordagem de uma documentação que tem sido tradicionalmente utilizada para examinar temas mais próximos ao gesto persecutório que lhe deu origem. Para além de uma história social da escravidão colonial, este livro junta-se a outros na historiografia recente que também conseguem resgatar trajetórias individuais dos escravizados. Não se trata apenas de lhes dar corpo e alma, mas de mostrar como gente de carne e osso, com experiências particulares, têm ideias, projetos e ações que também fazem parte da história do que chamamos “escravidão”.
A narrativa é deliciosa. Entrelaçando a análise das peripécias da vida de Páscoa com as do processo e relacionando-as aos vários temas que estão em suas entrelinhas, a autora dialoga abertamente com o leitor. Faz perguntas, cria suspense, mantém o ritmo. É uma leitura que se tem dificuldade de interromper. Isso não significa concessões: a economia das notas revela um texto escrito para o grande público, mas que contém comentários rigorosos que permitem ao especialista reconhecer uma bem fundamentada intervenção nos principais debates historiográficos contemporâneos sobre a história, a escravidão e a colonização.
Os temas analisados fazem parte de processos históricos complexos e interconectados. Não poderia ser de outra forma, já que se trata da história da escravidão em terras coloniais, em Angola e no Brasil, no final do século XVII. Aqui também o livro traz novidades. Páscoa não entrou no tráfico atlântico de escravos como a maioria dos centro-africanos deportados para o Brasil. Apesar disso, sua experiência permite esmiuçar as diferenças e as conexões entre a escravidão na África e aquela “americana”. As relações entre as duas margens do Atlântico que estavam sob domínio de Portugal ganham, assim, concretude. E um olhar feminino. Mais que escravos, em geral, o que se encontra aqui é a história de uma escrava: uma mulher submetida ao domínio de senhores homens, que lhe impõem relações ambíguas, em que se mesclam interesses econômicos e pessoais (incluindo os sexuais), e envolvem força, consentimento e até certa aceitação utilitária. É por isso que, para além da análise sistêmica, é tão importante abordar a história da escravidão em suas dimensões pessoais.
A acusação contra Páscoa serve ainda de ponto de partida para que a autora explore um tema de sua especialidade, pouco tratado pela historiografia: o das relações entre escravidão e cristianização. Os inquisidores e seus prepostos não tinham um interesse moral no caso, mas trabalharam diligentemente para caracterizar o crime cometido por Páscoa. A bigamia atentava contra um dos principais sacramentos da igreja católica e, por isso, um tal escândalo devia ser implacavelmente reprimido, mesmo se praticado por uma simples escrava doméstica. Entender essas peculiaridades e o modo como evangelização, escravidão e colonização se entrelaçavam é um desafio enfrentado ao longo de todo o livro.
Os personagens e eventos da investigação inquisitorial oferecem ainda a oportunidade de analisar mais especificamente as políticas de doutrinação católica na África Central e o modo como padres e missionários cuidavam de seus fiéis nos sertões de Angola. Claro que o debate sobre o casamento dos escravos merece atenção especial, pois permite compreender como homens e mulheres comerciados como mercadorias eram considerados cristãos e deviam seguir as normas do catolicismo. Os inquisidores estavam preocupados com a validade do primeiro casamento de Páscoa, feito por um missionário capuchinho num povoado próximo a Massangano, tanto quanto com a posição do Arcebispado da Bahia que permitiu que Páscoa e Pedro voltassem a viver como marido e mulher. O modo como o missionário e a câmara eclesiástica agiam em relação a seus paroquianos contrasta com os significados do casamento para Páscoa, Aleixo e Pedro. Em Massangano, Páscoa não gostava de seu primeiro marido e recorreu a diversas estratégias para driblar sua condição de casada. Na Bahia, ela e Pedro conseguiram obter licença do senhor para se casarem formalmente e lutaram juntos para que ela pudesse escapar das garras do Santo Ofício. O debate sobre o catolicismo africano e as imposições tridentinas se mistura, assim, mais uma vez, a uma dimensão pessoal, que inclui o ponto de vista dos escravos (e não apenas dos teóricos, dos padres e religiosos e dos senhores).
Como se pode constatar, Castelnau-L’Estoile vai além da simples reafirmação da humanidade dos escravos e de seu protagonismo (agency) – princípio tão caro à historiografia das últimas décadas. Seu livro dialoga diretamente com a produção sobre as dimensões da escravidão no Brasil colonial, com algumas contribuições importantes para o debate. Destaco duas delas, aqui.
Desde o pioneiro Rosa Egipcíaca até os mais recentes estudos sobre Domingos Álvares e Luiza Pinta,1 os processos inquisitoriais serviram para mostrar como os africanos haviam enfrentado a escravidão nas Américas, abrindo espaço no âmbito das instituições católicas ou reconstruindo suas devoções e práticas religiosas com base no arsenal político-cultural que traziam ao atravessarem o Atlântico. Ainda que as origens africanas dos personagens analisados estivessem sempre presentes, a tendência foi quase sempre focalizar suas experiências no Brasil. O processo que registra a vida de Páscoa, com seus dois maridos, um de cada lado do oceano, permite que a abordagem não seja apenas americana ou “atlântica”, como se usa dizer hoje em dia, mas que o mundo africano dos que foram forçados a ser escravos nas Américas apareça mais. A escravidão de Páscoa não começou com o tráfico negreiro, mas em Massangano, anos antes de seu “embarque” para o Brasil. Também revela que a África não era apenas um lugar de “origem”, mas onde havia parentes de quem se podia ter notícias de quando em vez e, mesmo com muitas dificuldades, a quem era possível recorrer se necessário. Assim, para além de aspectos étnicos, políticos ou religiosos, as conexões entre África e Brasil tornam-se mais complexas, densas e contínuas do que os historiadores têm geralmente imaginado.
Além disso, em meio a tantas pesquisas sobre a escravidão no século XIX, uma análise ancorada no contexto colonial merece ser realçada. Não se trata de mera cronologia, mas de entender como instituições coloniais e imperiais lidaram com a escravidão e a resiliência dos escravizados – e vice-versa. Ao tratar ao mesmo tempo dos mecanismos de produção de sua principal fonte, de questões teológicas e institucionais, e de dar vida à história de Páscoa, Castelnau-L’Estoile consegue integrar o ponto de vista dos escravizados e, especialmente, de uma escravizada ao debate sobre as dimensões sociais, políticas e religiosas do Antigo Regime português. Ajuda, assim, a renovar a história política do império colonial português, tanto quanto a história social da escravidão na Época Moderna.
Nota
1 Luiz Mott, Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993; James H. Sweet, Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World, Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2011; e Alexandre Almeida Marcussi, “Cativeiro e cura. Experiências religiosas da escravidão atlântica nos calundus de Luzia Pinta, séculos XVII-XVIII” (Tese de Doutorado, USP, 2015)
Resenhista
Silvia Hunold Lara – Universidade Estadual de Campinas. https://orcid.org/0000-0002-3093-1442
Referências desta Resenha
CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Páscoa et ses deux maris. Une esclave entre Angola, Brésil et Portugal au XVIIe siècle. Paris: PUF, 2019. Resenha de: LARA, Silvia Hunold. Uma mulher, dois maridos e novas dimensões da escravidão atlântica. Afro-Ásia, n. 61, p. 419-423, 2020. Acessar publicação original [DR/JF]
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