Oswaldo Corrêa Gonçalves, arquiteto cidadão | Gino Caldatto Barbosa
Gino Caldatto Babosa | Foto: Matheus Tagé
Para a apresentação deste minucioso trabalho sobre a vida e a obra de Oswaldo Correa Gonçalves, meu caro colega e amigo, realizado pelos jovens Ruy Eduardo Debbs Franco e Gino Caldatto Barbosa, penso em esboçar uma lembrança pessoal, pois conheci o arquiteto praticamente desde que cursei a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Para isso, reuni as mais importantes imagens que guardei de Oswaldo, e que podem ser resumidas em quatro retratos parciais de sua e de minha vida. Aliás, embora ambos tenhamos nos modificado ao longo desses sessenta anos, essas imagens demonstram que, curiosamente, permanecemos idênticos: afinal, não sou capaz de lembrar de visões e atitudes desde a minha mais longínqua infância? O mesmo pode ser dito de nosso biografado. Pretendo, por fim, apresentar a síntese dessas imagens.
Oswaldo Correa Gonçalves foi um dos mais ativos e operosos arquitetos da primeira fase da instalação do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, em São Paulo, logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Essa fase foi fundamental para a consolidação e desenvolvimento dessa profissão que, apesar de sua antiguidade, só nesse segundo pós-guerra se firmou como um fenômeno necessário de nossa civilização, deixando de ser a atuação de uns poucos – dedicados também a algumas e poucas construções – para se tornar uma atividade de muitas pessoas dedicadas a todas as atividades que envolvam o convívio de populações. Oswaldo foi reconhecido por seus pares, tardiamente, como um dos mais ilustres protagonistas dessa fase.
Oswaldo Corrêa Gonçalves no escritório de organização da I Bienal Internacional de Arquitetura, junho de 1973
Foto divulgação
Entrei para a FAU em 1952. Aproximadamente em 1953, nós alunos começamos a frequentar o IAB – já na sua sede própria, onde se encontra até hoje –, incentivados pelos nossos professores Artigas e Abelardo de Souza, nas reuniões sociais que aconteciam no almoço e depois do expediente, nas quais se encontravam profissionais para comentar acontecimentos relevantes da cidade e da atuação dos arquitetos mais conhecidos. Assim, em uma noite, provocado pelos circunstantes, Oswaldo gentilmente concordou em contar, mais uma vez, o episódio, ocorrido em um congresso recente de arquitetos pan-americanos, relacionado ao entusiasmo de Frank Lloyd Wright pela sua gravata – ocasião em que o nosso arquiteto, tirando-a, a ofereceu ao então “monstro sagrado da arquitetura americana e mundial”. A imagem que então me pintavam de Oswaldo era a de que ele não passava de um jovem rico e “boa praça”, mas não mais do que isso. Daí seu apelido “Oswaldo sobre as ondas”, que fazia alusão a um dos primeiros edifícios da Baixada, no Guarujá, o qual tinha sido projetado por Fonseca Rodrigues em parceria com Oswaldo – insinuando-se, porém, que o projeto era na realidade de Fonseca Rodrigues, e que Oswaldo operava como mero coadjuvante, por suas relações nos meios empresariais. De fato, Oswaldo tinha penetração na sociedade paulistana – esta, muito provinciana, concentrava todos os arquitetos do Estado. Mais tarde, Oswaldo foi convidado a dar aulas na FAU, mas seu entusiasmo por Niemeyer não melhorou sua imagem – muito pelo contrário. Os arquitetos de maior prestigio na escola eram os admiradores do arquiteto Wright e, como concessão, do Artigas em sua fase “wrightiana”.
Mas seria esse retrato correto? Oswaldo, quando estudante da Escola Politécnica, revelou grande apreço por três personalidades que o acompanharam por toda a sua vida: o professor Anhaia Mello e seu assistente Vilanova Artigas, bem como seu contemporâneo Luís Saia. Um outro traço que registro é sua participação em congressos de arquitetura brasileiros e internacionais. Assim, ele viajou com delegações para Belo Horizonte, onde conheceu as obras da Pampulha, sobre a qual escreveu falando da grande qualidade arquitetônica da capela de São Francisco, recém-terminada, e que esperava consagração. Mas enquanto os católicos franceses, empenhados em uma requalificação da arte religiosa, valorizaram a pequena capela, os bispos brasileiros a denunciavam como perigosa obra subversiva. Ela só foi consagrada em 1960, por insistência direta do presidente da República.
Ginásio e Escola Normal Maria Auxiliadora, Barretos. Arquiteto Oswaldo Corrêa Gonçalves
Desenho divulgação
Outro aspecto que surpreende é sua defesa do trabalho em equipe, “tão raro entre nós”. Teria ele tomado conhecimento das propostas de Walter Gropius em seu período americano? Também nesse pós-guerra, Oswaldo foi à Europa, deixando fugidias impressões sobre o encantamento que lhe causou a cidade de Veneza, muitos anos mais tarde considerada “patrimônio da humanidade” pela Unesco, como, aliás, o foram também Ouro Preto, Olinda e Brasília. Podemos considerar essas viagens como complementação a sua formação de arquiteto, expediente recomendado pelos melhores mestres da arquitetura.
Mas a postura de trabalhar em equipe e em parceria com outros arquitetos marcou-o para sempre, o que me parece a grande contribuição Politécnica (de São Paulo) para a constituição do exercício e ensino da arquitetura no Brasil.
Voltando a atenção para os politécnicos de sua formação, não podemos deixar de reconhecer seu entusiasmo pelas ideias urbanísticas do professor Anhaia Mello, pois a maior parte dos artigos de Oswaldo dessa época versa sobre urbanismo. O professor Anhaia Mello na realidade era catedrático de grandes composições, mas sua atuação no Instituto de Engenharia se destacou pelo estudo dos problemas da gestão urbana. Em 1934 proferiu magistrais palestras sobre a iniciativa norte-americana de criar o Tennessee Valley Authority, que iria, em seguida, modificar radicalmente o perfil econômico e social desse afluente do rio Mississípi. Anhaia Mello era ligado às experiências da cidade jardim inglesa e, também, ao urbanismo norte-americano que privilegiava a qualidade de vida do morador urbano genericamente considerado, e que já na década de 1920 propunha a “unidade de vizinhança”, com suas facilidades e serviços. Esse urbanismo incorporava todas as conquistas sociais conseguidas pela república americana. Essa tendência se contrapunha, até certo ponto, àquela outra de matiz francês que privilegiava a circulação de pessoas e de mercadorias, defendida pelo professor Prestes Maia. Essas duas tendências corriam paralelas e só foram sintetizadas, no Brasil, por Lúcio Costa, em seu projeto de Brasília, no final da década de 1950. Vilanova Artigas era então um jovem arquiteto, quase da idade de seus alunos, mas já se destacava pela procura de arquitetura como expressão autóctone de excelência. Luís Saia, por sua vez, era ligado a Mário de Andrade e aos arquitetos que participavam da valorização do passado artístico brasileiro, por mais tênue que fosse, por meio do recém-fundado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan, de âmbito federal. Artigas provavelmente foi professor de Oswaldo, pois, assim que se formou, foi chamado pelo professor Anhaia para ser seu assistente. Assisti, muitos anos depois, a defesa de Oswaldo, diante de um deputado federal por Santos, do tombamento da Casa de Câmara e Cadeia, sob o argumento de que se tratava de um edifício da mais alta importância para a cidade. Acho que Luís Saia nunca soube disso. Mas toda essa atividade nos era alheia, uma vez que nós, estudantes na época, estávamos empenhados no ensino da Escola, quando o Conselho Universitário recusara contratar o arquiteto Oscar Niemeyer por primárias razões puramente ideológicas. Havia uma desconfiança de que os “politécnicos” seguidores do professor Camargo queriam retornar ao curso antigo, ou seja, anular a fundação da FAU, contra a orientação do professor Anhaia, que não escolhia os professores por razões mesquinhas, mas por mérito dos melhores.
Riviera de São Lourenço, pré-plano urbanístico, Bertioga. Arquiteto Oswaldo Corrêa Gonçalves
Desenho divulgação
Oswaldo, na década de 1950, projetara uma residência para o casal Abu-Jamra – uma dupla de pesquisadores da Faculdade de Medicina –, que foi muito divulgada pelas revistas especializadas, entre outras coisas por incluir um painel de pastilhas, material novo na época, de autoria do pintor Clovis Graciano. A filha do casal, Nina, foi minha aluna e mais tarde minha particular amiga, e se distinguiu como arquiteta e estudiosa da arquitetura paulista, dedicando-se inclusive ao ensino. Uma vez comentou comigo que foi estudar na FAU USP porque viveu toda sua infância nessa casa. A família conserva até hoje essa residência, a meu ver um dos marcos arquitetônicos da época.
Comecei a relacionar-me com Oswaldo, depois que me formei, nas reuniões oficiais do IAB, pois era próprio do arquiteto uma grande afabilidade e uma atenção respeitosa e gentil para com todas as pessoas. Assim, em 1960, Oswaldo nos convidou a mim, e ao Abrahão Sanovicz, então meu sócio, para uma parceria em projetos de arquitetura. Ambos tínhamos vencido um concurso nacional para um clube em Londrina, em 1959, em parceria com o arquiteto João Walter Toscano, cujos desenhos originais encontram-se hoje no Museu Pompidou; Oswaldo, por sua vez, tinha um posto altamente qualificado, que lhe permitia acompanhar o que acontecia no ensino de arquitetura no mundo. Era pessoa de confiança de Ciccillo Matarazzo, fundador da Bienal Internacional de Artes, para a qual Oswaldo organizava a Seção de Arquitetura. Esta promovia um concurso, também de abrangência internacional, de escolas de arquitetura. Em 1957, Abrahão e eu, em equipe com vários outros colegas, ganhamos o primeiro lugar ex æquo, com outras duas escolas do exterior. Nosso projeto era uma unidade de vizinhança para os técnicos e operários da Usina Presidente Bernardes, da Petrobras, em Cubatão, com orientação do professor Artigas. Ora, essa orientação urbanística era afim à do próprio Oswaldo.
Assim começamos uma parceria em que pesou nossa postura comum de trabalhar em equipe. Desses primeiros projetos somente vingou o do Teatro Municipal de Santos, iniciativa do prefeito Sílvio Fernandes Lopes e do entusiasmo de seu candidato, Luís La Scala. Esta foi a primeira experiência mais concreta não só da seriedade profissional como do comportamento de Oswaldo, que sempre valorizou o trabalho dos seus parceiros e colaboradores. Infelizmente, La Scala, eleito prefeito, morreu no dia da posse. Nossa parceria continuou até o prefeito Fernandes, em seu segundo mandato (1967), desapropriar terreno adequado e o projeto, ampliado com um centro cultural por nós proposto, ser construído.
Em 1971, Oswaldo convidou a mim, ao Abrahão e ao Benno Perelmutter para fundarmos a Faculdade de Arquitetura de Santos. Participamos das discussões iniciais e ficou estabelecido que me encarregaria da disciplina desenho do objeto, pois me parecia que centrar a ênfase em produção em série para um parque industrial primitivo seria irrealista. Abrahão ficou encarregado da programação visual e Benno ficou como assistente de Oswaldo na faixa de arquitetura. Posteriormente, nossa experiência serviu de base para o programa da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília, a pedido de seu diretor, o arquiteto Miguel Pereira. Esse programa foi publicado pela Associação Brasileira de Escolas de Arquitetura.
Unidade Senac, São José do Rio Preto. Arquiteto Oswaldo Corrêa Gonçalves
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Novamente se pode comprovar a isenção e generosidade do Oswaldo por ocasião de um episódio dramático: quando os “arquitetos da guerrilha” foram presos e torturados, Oswaldo e eu fomos convocar Aníbal Clemente (diretor da escola) para depor em favor dos professores da Faus perante os militares. Lembro-me bem das hesitações de Aníbal Clemente, ao argumentar que os arquitetos tinham confessado suas ações e atitudes contra a ditadura como uma postura ilegal. Oswaldo contra-argumentou, com veemência, afirmando que tal confissão não valia nada, pois fora obtida mediante tortura e que “sob tortura qualquer um confessa que matou a própria mãe”. Confrontado com esse raciocínio, Aníbal afinal concordou em acompanhar Oswaldo à audiência exclusiva aos dois. A visita surtiu o efeito desejado, pois os militares já estavam cientes da reação negativa a seu desrespeito aos direitos humanos tanto internamente, quanto no exterior.
A última ação de que participei com Oswaldo, e que gostaria de comentar, deu-se por ocasião de mais uma iniciativa de Ciccillo Matarazzo, ao aventar a 1ª Bienal Internacional de Arquitetura. Fomos procurados, Abrahão e eu, para propor o “tema” da Bienal. Sugerimos então a frase “O ambiente que o homem constrói”. Oswaldo, como era seu costume, quis ouvir a opinião de seu amigo Artigas, à época aposentado compulsoriamente da USP. Artigas aprovou nossa proposta, com uma modificação: “o ambiente que o homem organiza”, conforme Oswaldo nos contou em seguida. O único país que enviou uma representação foi a Rússia (sob o nome de URSS), que realizava uma exposição itinerante naquele momento montada na Argentina. A própria Bienal foi organizada espacialmente pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, outro perseguido da FAU USP pela ditadura. A Bienal homenageou os arquitetos João Vilanova Artigas, o paisagista Burle Marx e o engenheiro Joaquim Cardozo. Por causa do ambiente opressivo, talvez, a Bienal teve um êxito surpreendente, com toda a propaganda – projetada pela equipe de Ricardo Ohtake, Dalton de Lucca e José Graciano – baseada no projeto do edifício da própria Bienal e em sua realização, o que não deixava de ser uma homenagem ao seu autor, Oscar Niemeyer, então exilado em Paris. Mais uma vez pude comprovar o sentido amplo em que Oswaldo entendia a atividade da arquitetura e sua significação social; e, sobretudo, a tenacidade com que realizava as tarefas que lhe eram solicitadas.
Em síntese, ao tempo em que Oswaldo participava com entusiasmo das reuniões da fundação do IAB, ou da criação da FAU USP, naturalmente eu era um ginasiano e estava empinando papagaios, como se costuma dizer. E toda essa parte da vida de nosso arquiteto eu tive de deduzir a partir de nossa vida em comum e dos desabafos pessoais que fez a mim. Posso dizer, entretanto, que Oswaldo Correa Gonçalves foi uma pessoa que contribuiu para a consolidação de uma atividade, impulsionada inicialmente por um pequeno grupo de arquitetos modernos cariocas e depois brasileiros, e desenvolvendo-se fortemente de uma atividade tradicional para uma atividade interdisciplinar, com um inequívoco compromisso com a cidade que se quer e seu futuro comum. Podemos, pois, atribuir ao arquiteto a qualidade civil que o poeta máximo de nossa língua deixou registrada em seu poema:
A disciplina militar prestante
Não se aprende Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando
Senão vendo, tratando e pelejando (1).
Concluo este retrato, apenas esboçado, lembrando que a maior qualidade do arquiteto não se fixa na sua condição de destacado profissional, nem em sua atuação como cidadão, mas em sua lealdade para com as pessoas com as quais conviveu e com os ideais com eles partilhados.
Oswaldo Corrêa Gonçalves (Santos, 1917 – São Paulo, 2005)
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Nota
NE – o presente texto é o prefácio do livro Oswaldo Corrêa Gonçalves: arquiteto cidadão.
1 CAMÕES, Luís de. Os lusíadas, canto X, estrofe 153 <https://bit.ly/33q6X8f>.
Resenhista
Julio Roberto Katinsky – Arquiteto e doutor em arquitetura (FAU USP, 1957 e 1973) e trabalhou como arquiteto e designer. Professor aposentado da mesma escola, onde foi de docente auxiliar a professor-doutor, desde os anos 1960. Aposentou-se em 2002, porém continua prestando serviços à instituição, desenvolvendo pesquisas e ministrando aulas na pós-graduação.
Referências desta Resenha
BARBOSA, Gino Caldatto; FRANCO, Ruy Eduardo Debs. Oswaldo Corrêa Gonçalves, arquiteto cidadão. São Paulo: Edições Sesc SP, 2022. Resenha de: KATINSKY, Julio Roberto. Oswaldo Correa Gonçalves. Um retrato. Resenha Online. São Paulo, n. 241, fev. 2022. Acessar publicação original [DR]