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Os brancos da lei: liberalismo/escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil | Jurandir Malerba

Não tem sido muito comum se fazer uma resenha de um livro em segunda edição. Os novos tempos acabam por nos impingir a última novidade. Contudo, assumimos esta ousadia por esse livro tratar originalmente de uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF) de excepcional qualidade, de um historiador que se tornou referência nos estudos da história do Brasil. Tal é o caso do livro de Jurandir Malerba, cuja primeira edição remonta a 1994, publicado pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), oriundo da sua dissertação de mestrado defendida no PPGH-UFF, em 1992 – Sob o verniz das ideias: liberalismo, escravidão e valores patriarcais no Código Criminal do Império do Brasil – sob orientação do saudoso professor Hamilton de Matos Monteiro

Mas por que fazê-lo? Exatamente pela importância e pela qualidade da obra que, com o tempo tem sido pouco referenciada nas bibliografias mais recentes sobre o período, mesmo se considerarmos a conjuntura da efeméride dos duzentos anos do processo de Independência do Brasil.

Não é à toa que o “Prefácio” da primeira edição foi feito pelo grande e também saudoso mestre Ciro Flamarion Cardoso, e o da segunda edição, pelo professor Henrique Espada Lima. Em ambas as situações, os prefaciadores apontam a importância e a atualidade da obra para podermos adentrar no mundo do liberalismo, da escravidão e das mentalidades nos primeiros tempos do Império do Brasil.

O tema é extremante original: a construção de um direito criminal a partir de certa modelagem política na qual se inserem a Constituição de 1824, o Código Criminal de 1830, o Código de Processo Criminal de 1832 e o Código Comercial de 1850. O autor inova exatamente ao perceber essa modelagem jurídica como intrínseca à própria realidade histórica do Brasil com o latifúndio, a monocultura e, principalmente, a escravidão, na construção de um país que se apresentava como moderno – liberal – mas articulado a essa realidade concreta. E o faz sem cair nas armadilhas de uma “história genética” que está preocupada em buscar a “origem” do direito colonial – pois percebe uma ruptura em meio a continuidades na geração de um novo país – ou dos que analisam as construções jurídicas como se “pairassem” sobre a sociedade real, concreta, onde a existência de uma “classe dirigente”, escravaria e pobres livres estava na base dos textos legais e dos principais pensadores jurídicos do seu tempo.

O próprio autor nos explica: “O objetivo principal deste trabalho é elaborar um mapeamento dos valores da classe dirigente, tal como expressos e articulados na sua produção jurídica, que constituíam os alicerces da mentalidade escravista” (Malerba, 2022, p. 39).

Seguindo tal pressuposto, inicia com o capítulo “Em nome da lei”, no qual a questão central me parece que é o fato de que os bacharéis, formados nas “luzes lusitanas” e a quem cabia construir a nova ordem jurídica, eram os expoentes de uma classe que se sustentou até 1888 à base do açoite, do controle cotidiano de indígenas e escravizados e descendentes de escravizados, responsáveis por todo o trabalho que movia o país (Malerba, 2022, p. 56). Nesse sentido “São intelectuais, juristas que, ostentando um discurso francamente liberal (…) mal disfarçavam seu compromisso com a ordem escravista que os sustentava” (p. 57).

Para desmontar o falso debate acerca das ideias “fora” ou “no lugar”, o autor utiliza uma sólida reflexão teórica de forma bastante original, na qual autores de forte tradição marxista – dentre eles E.P. Thompson e Pasukanis, Poulantzans e Gramsci, além do próprio Marx – são articulados com os clássicos da historiografia brasileira como Sergio Buarque de Holanda ou Maria Odila Dias, visando refletir acerca de ideologia, mentalidades e “visões de mundo”.

No segundo capítulo, “O precedente da diferença”, Malerba traz uma das mais originais e estruturantes questões ao centrar a sua análise na família, sendo o pater familia a base para o entendimento da justificativa da escravidão, mesmo com um discurso de origem liberal.

Nesse sentido,

O gerenciamento da casa dava poderes quase ilimitados ao senhor, que detinha a monopólio da violência física dentro de seu domínio. O exercício do poder público era uma extensão do privado: sua diferença não era de ordem qualitativa (…) governar o Estado consistia não apenas em regulamentar a ação dos dirigentes ‘da casa’, mas principalmente em garantir-lhes a continuidade de seus monopólios (…) A diferença entre Estado e família é apenas de natureza quantitativa, ou seja, somente uma questão de dimensões diferentes de uma mesma forma (…)” (Malerba, 2022, p. 81 e seguintes).

“As fronteiras da casa grande” é o título escolhido para o terceiro capítulo, no qual ocorre o enraizamento de categorias que fundamentaram a codificação jurídica brasileira, especialmente o Código Penal e o Código de Processo Penal a partir do poder doméstico.

Merece ser reproduzida uma reflexão do autor: “A lógica de tais ideais resume-se no seguinte enunciado: havia uma homologia estrutural entre a casa e o Estado, entre o privado e o público. O senhor da casa era o soberano em seu domínio; ou seu duplo: o soberano da nação a dirigia como a sua família (Malerba, 2022, p. 145)”.

Com isso, o autor tenta jogar um pouco de luz sobre outra questão: a presença na Constituição de 1824 do Poder Moderador, que fugia do padrão de uma constituição de bases liberais, que se manteria – convém apontar – até os estertores do Império e a promulgação da primeira Constituição republicana.

O título “À sombra da senzala” diz bem o conteúdo do quarto capítulo do livro: faz uma excelente reflexão acerca da violência escravista na sociedade patriarcal aos olhos dos juristas e a casuística do ideário liberal desses mesmos dirigentes do Império, considerando que a violência física privada na nossa sociedade escravista permitia o direito legal da aplicação de castigos, o que acabou ganhando força de lei!

Em outro ponto bastante polêmico, Malerba faz uma crítica historiográfica extremamente pertinente de que, embora a violência fosse um atributo ontológico da escravidão, na década de 1980 houve uma tendência em relativizá-la na historiografia brasileira, como se na escravidão ocorresse uma relação contratualista entre senhor e escravizados, numa relativa igualdade entre senhor e escravos na negociação cotidiana, que mediaria situações de resistência e acomodação. Senhores e escravos, sob esse parâmetro analítico criticado, estabeleciam uma relação baseada numa espécie de contrato tácito – ou acordo sistêmico (2022, p. 160-161).

Mais ainda, afirma:

(…) Trata-se de duas flagrantes inversões: primeira, os limites da autonomia dos escravos eram dados pelo aparelho repressor do senhor – e não o contrário. Quando este era inócuo, o senhor escravocrata tinha o Estado escravista para defender seus interesses. Segunda, (…). é no mínimo problemático conceber expressões de rebeldia escrava – como manifestações de consciência de classe (…) (Malerba, 2022, p. 166).

É enfático: as construções teóricas dualistas que tentam justificar a existência de um ou algum liberalismo junto à escravidão, não se sustentam (p. 173).

Quando adentramos no capítulo 5, “Julgar e medir”, a preocupação do autor é analisar como nos Códigos ocorre a previsão de dosimetria da pena dos vários tipos penais, especialmente no que tange aos escravizados e aos pobres livres.

A pena capital se aplicaria aos casos das lideranças de insurreição escravas, aos homicidas e em casos de roubo seguido de morte, sendo o primeiro um crime público contra a segurança do Império (!), o segundo, particular, e o terceiro, contra a propriedade (Malerba, 2022, p. 194).

O uso tópico e funcional que os dirigentes imperiais fizeram das doutrinas liberais, em que pesem alguns debates filosóficos dos jurisconsultos quererem demonstrar certa “ilustração” em suas análises, não questionava os elementos fundantes das normativas jurídicas como a escravidão e a grande propriedade monocultora, além do poder patriarcal!

Em termos conclusivos, Jurandir Malerba é categórico:

A escravidão e a prática do favor próprias das relações familiares impediram as pretensões dos dirigentes da nação de implantar nos trópicos as doutrinas do liberalismo, que não passou mesmo de ideologia (…). O direito criminal permaneceu no Brasil escravista enquanto vigorou no Brasil esse regime de trabalho (…) (2022, p. 224-225).

Finalmente, embora não menos importante, fica no ar uma grande questão para outros trabalhos: O Brasil se preocupou em criar uma Constituição, um direito criminal, um Código Comercial e uma Lei de Terras. Mas, somente pela Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, tivemos o primeiro Código Civil!

Merece um comentário o rigor do autor em vasculhar e analisar basicamente toda literatura jurídica brasileira do século XIX, com a compulsão de uma bibliografia marcada pela excelência e ecletismo teórico-metodológico.

Quero registrar a. minha feliz surpresa pela atualidade da obra relida quase trinta anos depois e perceber que ainda é fundamental para todos aqueles que estudam a formação do Brasil Imperial, especialmente considerando uma análise de historiador sobre o direito.

Finalmente, devido ao seu conteúdo, Os brancos da lei me fez lembrar as reflexões do grande historiador e filósofo suíço Jean Starobinski acerca da importância da obra de Jean Jacques Rousseau – bem como de outros grandes pensadores como Marx – pelas questões que esse pensador levanta, pois ainda são fundamentais, embora as soluções apresentadas estejam datadas e referentes ao tempo do seu autor.1 Ou, quem sabe, as reflexões de Norbert Elias (1995) acerca de Mozart e sua obra, visto que esta ultrapassa o tempo cronológico, embora Mozart estivesse preso ao seu tempo.

Tal é o caso do livro de Jurandir Malerba, Os brancos da lei, porque muitas das questões levantadas pelo autor ainda se mostram bastante atuais em termos de conhecimento e reflexão histórica, embora algumas das suas proposições talvez possam ser questionadas.


Referências

ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

Os brancos da lei: liberalismo, escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil 2. ed.Teresina: Cancioneiro, 2022.

STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo São Paulo: Companhia das Letras, 1971.

STAROBINSKI, Jean. Os emblemas da razão São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


Resenhista

Cezar Honorato – Instituto de História/Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói (RJ), Brasil. E-mail: cezarhonorato@gmail.com  ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4212-7395


Referências desta Resenha

MALERBA, Jurandir. Os brancos da lei: liberalismo, escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil. 2. ed. Teresina: Cancioneiro, 2022. Resenha de: HONORATO, Cezar. Liberalismo, escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil. Tempo. Niterói, v. 29, n. 1, jan./abr. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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