O massacre dos libertos: sobre república e raça no Brasil | Matheus Gato

À luz da “sociologia histórica do racismo”, a obra de Matheus Gato narra e analisa um trágico confronto envolvendo libertos, policiais e republicanos, em São Luís do Maranhão, dois dias após o golpe militar que derrubou a Monarquia. Aos gritos de morras à República, um grande número de homens negros (alguns sobrestimaram em 3000 deles) cruzou as ruas da cidade desde a manhã daquele dia.

Intrépidos e fervorosos, eles passaram pelo mercado municipal, alguns discursaram próximo ao quartel do 5º Batalhão e partiram para a igreja do Desterro. Dali foi iniciada a passeata rumo ao largo do Carmo: seriam os últimos passos de alguns manifestantes, antes de serem alvejados por uma tropa de militares. Caíram sem vida, em número nunca revelado, próximos à Câmara Municipal e à redação do jornal republicano O Globo.

Contemporâneos, cronistas e memorialistas, de imediato e posteriormente, reduziram aquela tragédia a uma intervenção policial mal sucedida ou a um acontecimento sem importância histórica. Afinal, maior seria a Proclamação da República, uma vitória do progresso, um desejo do povo. E o tal “massacre de 17 de novembro”, enfim, melhor seria esquecê-lo, sepultá-lo.

Como vários acontecimentos ocorridos no Brasil, encabeçados e/ou encorpados por “gente do povo”, este movimento foi parcial ou totalmente eclipsado da memória e da História por outros liderados majoritariamente por vitoriosos homens brancos, senhores do poder e de posses. O 15 de Novembro de 1889 não fugiu ao costume, e republicanos contemporâneos orgulhavam-se da vitória sobre o “atraso” monárquico nos jornais, revistas, biografias, autobiografias e opúsculos.1

Há décadas a historiografia acadêmica vem nos brindando com belos títulos acerca do 15 de Novembro. Transformaram em fontes os relatos de contemporâneos, e construíram ferramentas teóricas e metodológicas próprias da história-problema.2 Suas investigações, contudo, abordaram mui limitadamente a recepção destes acontecimentos entre as pessoas comuns, principalmente no que tange à população negra escravizada, liberta ou livre. Os espaços não eram reservados a atores sociais sem poder ou títulos. A análise historiográfica voltava suas lentes prioritariamente para as estrelas principais: homens brancos participantes diretamente do golpe de Estado que implantou a República.

Aportes teóricos e metodológicos, pelo menos nos últimos quarenta anos, permitiram que historiadores da escravidão e do pós-abolição observassem a pluralidade de temas relevantes em torno das pessoas negras.3 Suas famílias, ofícios, tecnologias desenvolvidas, formas de resistência, religiosidade, revoltas, fugas, entre tantos outros temas, mostraram que a história dos “de cima” estava perdendo seu espaço hegemônico para uma história dos “de baixo”. Com as ferramentas da história social e da sociologia, O massacre dos libertos faz parte desse amadurecimento historiográfico.

A investigação de Matheus Gato atravessa romances, memórias, periódicos (anúncios, publicações a pedidos, matérias) e dados censitários. Os receios quanto ao controle social dos ex-escravos, as certezas das teses científicas sobre as raças humanas e o desejo de forçá-los ao trabalho com diminuto gasto na produção circulavam entre intelectuais, médicos, advogados e agricultores. Com o 17 de Novembro, os negros se posicionaram frente à progressiva demarcação dos limites à liberdade e à igualdade entre as raças que estavam sendo construídos pela privilegiada elite branca maranhense no pós-abolição.

Embora pouco saibamos dos manifestantes, Matheus Gato centralizou suas pesquisas nas expectativas daqueles homens negros, sem excluir da trama os que exerciam seus poderes nas assembleias, na agricultura, nos quarteis e na imprensa. Destaca-se ainda o diálogo do autor com uma parte da historiografia recente, que pôs a racialização no cerne da interlocução teórica.4 Para ele, a racialização é uma forma de “edificação da raça, tornada um dos princípios dominantes de hierarquização de pessoas na sociedade brasileira moderna, organizada pelo trabalho e pelas instituições republicanas” (p. xviii). O racismo, enfim, tem uma história devastadora de perseguição a vidas negras no pós-abolição que carece de ser buscada.

A implantação da República no Maranhão trouxe muita desconfiança e receio em relação aos homens brancos com poder e posses, assim como a pessoas negras livres e libertas. Questionamentos circulavam de boca em boca naquele período. Afinal, com a implantação das leis republicanas, como os senhores assegurariam a manutenção de posses e privilégios, e como os libertos garantiriam a liberdade decretada pela Lei Áurea? A República implantaria a igualdade entre pretos, brancos, indígenas, imigrantes, ricos, pobres, senhores, libertos nos títulos e parágrafos da Constituição? E, finalmente, ela atenderia a classe senhorial que se sentia “injustiçada” pelo regime anterior? Afinal, a Monarquia não havia indenizado os possuidores de pessoas negras ao abolir a escravidão.

Estes questionamentos não vinham do nada: os negros corriqueiramente eram associados à condição de libertos pelo 13 de Maio, através de uma campanha de “intensificação dos processos de racialização das classificações sociais” (p. xix). Advogados, políticos e senhores brancos incomodados manifestavam-se em jornais e tribunas das câmaras depreciando a capacidade dos negros para viverem sob liberdade e com igualdade de direitos. O impacto dessas falas na construção da cidadania republicana foi extremamente prejudicial aos libertos maranhenses e marcou as “relações entre brancos e negros” no pós-abolição. Os negros observaram essa campanha e, ausentes no governo, passaram a fazer política nas ruas, informando aos vitoriosos republicanos que resistiriam.

A cidadania é um conceito congelado nos artigos e parágrafos da Constituição. Sua universalidade, como sabemos, é uma utopia, por mais que prometa atender uma comunidade nacional. Ainda havia um longo caminho para a ampliação legal de direitos políticos às mulheres, pessoas analfabetas, mendigos e militares no século XX. Mais distante estavam os resultados reivindicados por movimentos sociais organizados que, na atualidade, vêm obrigando o Estado brasileiro a reconhecer e a sanar as desigualdades sociais provocadas por diferenças raciais, étnicas e de gênero.

O “Massacre de 17 de Novembro” é um marco neste conflituoso processo histórico de luta por direitos e expõe a clivagem racial entre brancos e negros no acesso à cidadania no pós-abolição. Como afirma Matheus Gato, nos últimos anos da escravidão, aqueles maranhenses negros perceberam o crescimento do conjunto de “práticas, sentimentos, atitudes e valores que fizeram da raça uma fronteira econômica, política e imaginária entre os grupos sociais na formação do Brasil moderno” (p. xviii).

Num saudável debate historiográfico com autores(as) de eventos similares ao 17 de Novembro, Matheus Gato observa que “desses incidentes conflituosos, aparentemente esparsos”, sobressai a desconfiança em relação aos republicanos. Afinal, que República seria aquela para pessoas negras um ano e seis meses após o encerramento de quase trezentos e cinquenta anos de escravidão?

O autor poderia deixar-se seduzir por uma interpretação imediatista reafirmando, como fizeram contemporâneos ao 17 de Novembro, que os negros envolvidos no levante defendiam a Monarquia por ter sido ela o sistema que garantiu a “Lei Áurea”. Mas ele percebeu que essa “associação simbólica entre a Monarquia e a ação política para derrubar a escravidão” era arriscada (p.26). Pôs um pé atrás e continuou sua pesquisa.

A Monarquia, em primeiro lugar, foi simbolicamente associada à “ação política para derrubar a escravidão somente na década de 1880” (p. 26). Ou seja, não houve um histórico de longa data que vinculasse a princesa Isabel e o imperador à liberdade dos escravizados.5 Um número ainda não contabilizado de pessoas negras não teve seus direitos respeitados no Brasil imperial, promessas de liberdade foram “apagadas”, alforrias condicionais revogadas, africanos livres escravizados e o medo de reescravização tornou-se uma constante.6 Para pessoas negras livres ou libertas, a precariedade da liberdade latejou em suas mentes por todo o século XIX, e o imperador e sua filha fizeram muito pouco para acalmar seus espíritos.7 Enfim, para o autor de O Massacre dos libertos, a “idolatria áulica” e o medo do cativeiro não eram suficientes para levar as pessoas “às ruas e organizarem um protesto” em defesa da Monarquia recém-derrubada.

Para desatar esse nó, Matheus Gato apresenta as particularidades do Maranhão em um país de imensos contrastes econômicos e sociais, após séculos de trabalho de escravizados. No que tange aos senhores de terras, estes não contaram com imigrantes europeus ou asiáticos, nem lucraram com o principal produto exportador à época, o café, razões pelas quais os senhores maranhenses exigiram do governo imperial a indenização pela libertação dos escravos. Matheus Gato, no entanto, observa na mobilização dos senhores uma estratégia para auferir ganhos econômicos através de uma forjada “crise da escravidão” (p. 83).

Para validar suas reivindicações, lançaram mão de discursos racistas contra os negros, um grupo social que, segundo eles, precisava ser “civilizado e disciplinado para o trabalho através da coerção física”. Seriam indivíduos despreparados para o “bom uso da liberdade” (p. 88). Além disso, aqueles senhores conferiram visibilidade ao movimento republicano, que referendou a “liberdade dos brancos” no Maranhão. E a oposição à Monarquia chocava-se com os interesses dos libertos em 1888.

Um segundo passo do autor foi investigar a luta dos negros maranhenses pelos “significados de liberdade”. Se antes de 1888 uma linha separava “cidadãos e escravos”, permitindo a “ascensão controlada de pardos e mulatos livres”, o desmantelamento da sociedade imperial, organizada segundo “distinções estamentais”, fez emergir a “modernização política da sociedade brasileira”, na qual a condição escrava não tinha mais efeito jurídico. Em resumo, a partir da abolição, as “reivindicações por liberdade e igualdade passam a prescindir de referências à origem, ao nascimento e à cor” do indivíduo (p. 39).

Matheus Gato entendeu que, no Maranhão, os ex-senhores de pessoas negras escravizadas exigiam a “liberdade dos brancos” em contrapartida à “liberdade dos pretos”, que devia ser configurada como uma “cidadania de segunda classe” sob a “presunção de um despreparo cultural para o bom uso da liberdade” (p. 88). A imprensa maranhense publicava textos para legitimar a desigualdade social entre as raças, imputando limites à “liberdade dos pretos”. Em resumo, a “experiência da subordinação racial e a clivagem de direitos, bem como a legitimidade para violência física e simbólica dela decorrente, mediou as escolhas políticas e a expressão pública dos interesses da gente negra no pós-abolição” (p. 27).

Não duvido que, se frequentássemos as ruas de São Luís naqueles dias, perceberíamos uma massa de recém- -libertos e negros livres preocupada com os ataques racistas que sofriam cotidianamente. A imprensa os taxava de preguiçosos, intelectualmente limitados, perigosos e incapazes de assumirem qualquer empreendimento ou emprego mais complexo. Os negros deviam estar indignados com tudo isso e receosos de verem o 13 de Maio anulado pela República.

Embora tenha me convencido desse argumento, percebemos poucos registros dos manifestantes no livro. Obviamente, uma parte destes foi morta por fuzilamento, e não há registros de processo criminal com depoimentos dos detidos. Não à toa, Matheus Gato relata que aqueles discursos racistas “talvez” possam ter despertado a “repulsa a formas racializadas de subjugação” por parte dos negros libertos e livres (p. 28). Independentemente do “talvez”, que fontes manuscritas poderiam, quem sabe, substituir por evidências mais robustas, me dou por convencido pelas afirmações do autor. Nas palavras de Antonio Sérgio Guimarães, não era de se estranhar que “a proclamação da República, feita pelos militares positivistas com o apoio dos fazendeiros, fosse vista com apreensão, não como um aprofundamento revolucionário da liberdade, mas como uma restauração conservadora da ordem”. 8

No que tange à ação dos negros nas ruas de São Luís naquele 17 de novembro, Matheus Gato observa que a imprensa maranhense vinha sugerindo possíveis tramas tecidas pela aliança entre os abolicionistas e a Guarda Negra.9 No caso desta, há fontes de época demonstrando a movimentação de homens negros nas ruas de São Luís semelhante à dos negros na Corte no Rio de Janeiro, inclusive com a presença de marinheiros capoeiras. Embora o movimento abolicionista fosse realidade no Maranhão, a sua penetração entre os negros também carece de mais evidências.

O livro descreve minuciosamente as etapas do movimento que tomou as ruas de São Luís, com cenas dramáticas que não se resumiram ao 17 de Novembro. A truculência policial foi assustadora, vitimando diversas pessoas negras nos dias que se seguiram à instauração do regime republicano. Os republicanos, logo após o massacre, tentaram e conseguiram amainar a situação, demonstrando que não desejavam reescravizar os libertos, derrubando, inclusive, um símbolo do martírio dos negros que era o pelourinho do largo do Carmo. Fora uma iniciativa para abrandar os espíritos, extinguindo um artefato que “recordava os dias da escravidão” e “os dias sombrios da Monarquia”, como salientou um jornal local (p. 132).

Matheus Gato intitula de “A Fraternidade Racial” o último capítulo do seu livro. Passados aqueles agitados dias e pacificados os espíritos, chegara a hora de se perguntar: afinal, qual seria o futuro de pessoas brancas e negras juridicamente livres, sob a República e após séculos de escravidão? Bastaria derrubar o pelourinho e proferir discursos de união para fraternizar as partes? Para Antonio Sérgio Guimarães, o discurso de uma fraternidade mestiça entre as raças foi instrumento ideológico importante para garantir a integridade de direitos de cidadania aos brancos. Figuras diversas eleitas para o governo, empossadas no judiciário, dominantes na produção e exploração de mão de obra, e com algum destaque entre os membros do pensamento social brasileiro das primeiras décadas republicanas, fizeram largo uso deste instrumento ideológico e mantiveram os negros no patamar de uma cidadania de segunda classe.10 Como afirmou Matheus Gato, “fusão e fraternidade devem ser os valores políticos, culturais e sociais do novo contrato social. Entretanto, essa direção não implica em abdicar das hierarquias entre os grupos sociais” (p. 136).

No caso maranhense, restava a Matheus Gato explicar como essa ideologia alcançaria e convenceria os negros do 17 de Novembro a seguirem a sinuosa e traiçoeira direção rumo ao “futuro” (p. 135). José Murilo de Carvalho já havia realizado este exercício quando procurou entender a formação das almas no novo regime. Como os republicanos convenceriam os “populares” a embarcarem nas naus republicanas? Ele encontrou na produção de símbolos, mitos, alegorias e rituais a elaboração de um imaginário social necessário à legitimação de “qualquer regime político”. É por meio desse imaginário que se atinge “as aspirações, os medos e as esperanças de um povo”.11

Matheus Gato nos brinda com uma instigante análise da bandeira do Maranhão, símbolo de inspiração norte- -americana, que atuou na formação deste imaginário social. As nove listras horizontais do pavilhão seriam as cores representantes das “três diferentes raças” da população maranhense, sendo quatro brancas, três encarnadas e duas pretas. Acertadamente, o autor compreendeu que, para além do mito das três raças, fundidas na miscigenação, ali estava “a aposta no estatuto desigual entre brancos, indígenas e negros”, uma forma de condensar, “no seu simbolismo, alguns dos limites e aspirações que marcaram o ideário da modernidade no Brasil”. Enfim, a “utopia da fraternidade racial”, latente na quantidade desigual de faixas para cada raça, era “o símbolo maior daquela bandeira” (pp. 135-136).

Não há como esquecer a história da “bandeira da proclamação” da República, hasteada por José do Patrocínio na Câmara Municipal no Rio de Janeiro. José Murilo de Carvalho nos conta esse episódio através dos entreveros envolvendo as alas positivista e jacobina do Clube Lopes Trovão, de onde partiu a tal bandeira. Ela não se tornou a oficial, até hoje desfraldada pelo país e pelo mundo afora, mas era de inspiração norte-americana e também contagiou republicanos maranhenses e paulistas. Essas três bandeiras trazem outra particularidade em comum: há indicações de que faziam menção à contribuição das pessoas negras à nação (p. 147).

No caso da “bandeira da proclamação”, o quadrilátero no qual figuravam as estrelas era de “cor preta”, confirmada a vivos olhos por José Murilo de Carvalho. Muitos contemporâneos teimavam que o quadrilátero era azul, contrariando a observação de Carvalho, que visitou a bandeira no Museu da Cidade muitas décadas depois. Daí, perguntou-se o historiador e imortal da Academia Brasileira de Letras: aquelas pessoas “conheceriam o significado dado à cor negra pelo Clube Lopes Trovão? Desse conhecimento dependeria saber se mudaram a cor por razões estéticas ou racistas”.12

A história do 17 de Novembro maranhense ainda carece de mais estudos após este belíssimo trabalho de Matheus Gato. As fontes impressas foram exploradas, mas resta investigar a possível existência de fontes manuscritas nos arquivos maranhenses. Textos daqueles contemporâneos – como o romance do escritor negro Raul Astolfo Marques – registraram nomes de lideranças negras envolvidas nos acontecimentos do fatídico dia, que eram trabalhadores da estiva, da fabricação de sacas e operários diversos. Os historiadores sabem da relevância de se buscar as trajetórias desses homens, desde seus antepassados mais longínquos, seus deslocamentos, seus antigos senhores, possíveis mudanças de condição social com as leis emancipacionistas, as transformações nas relações de trabalho após o 13 de Maio e o associativismo negro. A documentação manuscrita de processos criminais, registros de ocorrências policiais, ofícios do chefe de polícia, livros notariais, registros paroquiais, prontuários médicos, livros de atas e matrícula de sindicatos, se pelo menos algumas dessas fontes existirem, serão fundamentais para percebermos o contexto e as trajetórias dos envolvidos no 17 de Novembro, o que poderá contribuir para esclarecimento adicional a respeito do movimento.

Será, por exemplo, que estas fontes ratificam a hipótese de Antonio Sérgio Guimarães de que os negros suspeitavam que a República era antes a tentativa de uma “restauração conservadora da ordem”? Outras questões podem vir à tona acerca da construção de uma cidadania negra no Maranhão, a exemplo da baiana, analisada por Wlamyra Albuquerque.

Não menos importante será trazermos de novo à tona a história da violenta repressão, em todo o país, por parte das forças policiais e militares do Estado aos movimentos populares, principalmente aqueles que envolveram negros. As fontes manuscritas podem trazer outros elementos concernentes às denúncias de tortura, humilhações e amputações de feridos. E isso não foi à toa, como bem afirmou Matheus Gato: “a reação brutal da tropa militar e de atos como as mutilações no hospital da Santa Casa advinham da concepção de que o espaço público e a mobilização civil não deveriam ser ocupados por libertos e outros negros” (p. 128).

Ora, sabemos que a repressão acontecida no Maranhão não foi única sob o novo regime republicano. Outros movimentos como a Revolta dos Marinheiros, de 1910, a famosa Revolta da Chibata, foi reprimida violentamente, com fuzilamento, homicídio, tortura, humilhação e deportação para outras regiões do país. Diferentemente dos oficiais militares envolvidos na Revolta da Armada – que foram anistiados e voltaram às suas atividades após destruírem navios da Marinha, e arriscarem as vidas de tantos civis em plena capital da República –, os marinheiros negros sofreram as agruras do revanchismo e do racismo dos seus antigos chefes militares brancos. Algumas dessas lideranças não tiveram paz mesmo após suas mortes.13

O perdão para uns, a repressão violenta para outros. A diferença de tratamento passa pela cor dos envolvidos. A ideia de um massacre, O massacre dos libertos, tem seu lugar na história do racismo no país. Enquanto “evento e memória”, o 17 de Novembro “traduz a força estruturante da raça na formação do Brasil moderno” (p. 128).


Notas

1 Veja uma análise desta bibliografia em Maria de Lourdes Monaco Janotti, “O diálogo convergente: políticos e historiadores no início da República”, Luso-Brazilian Review, v. 36, n. 2 (1999), pp. 93-102 https://www.jstor.org/stable/3513658.

2 Emília Viotti da Costa, Da monarquia à república, São Paulo: Brasiliense, 1987; José Murilo de Carvalho, Os bestializados, São Paulo: Companhia das Letras, 1997; Maria Tereza Chaves de Mello, A república consentida, Rio de Janeiro: EDUR/FGV, 2007; Renato Lessa, “A invenção da República no Brasil: da aventura à rotina” in Maria Alice Rezende de Carvalho (org.), A República no Catete (Rio de Janeiro, Museu da República, 2001), pp. 11-58.

3 Kim Butler, Freedoms Given, Freedoms Won: Afro-Brazilians in Post-Emancipation São Paulo and Salvador, New Brunswick: Rutgers University Press, 2000; Robério dos Santos Souza, Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863), Campinas: Ed. da UNICAMP, 2016; Flávio dos Santos Gomes e Olívia Cunha (orgs.), Quase cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro: FGV, 2007; Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte, São Paulo: Companhia das Letras, 1990; João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, São Paulo: Companhia das Letras, 1989; Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), São Paulo: Companhia das Letras, 2000; Hebe Mattos e Ana Lugão Rios, Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

4 Wlamyra Albuquerque, O jogo da dissimulação, São Paulo: Companhia das Letras, 2009. A argumentação de Matheus Gato para o caso maranhense em muito dialogou com a abordagem desta historiadora. Veja também Ana Flávia Magalhães Pinto, Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista, Campinas: Editora Unicamp, 2019; e Fernanda Oliveira da Silva, “As lutas políticas nos clubes negros: culturas negras, racialização e cidadania na fronteira Brasil-Uruguai no pós-abolição (1870-1960)”, Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.

5 Um interlocutor nessa argumentação foi Ronaldo P. de Jesus, Visões da monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte, Belo Horizonte: Argumentum, 2009.

6 Chalhoub, Visões da liberdade; Keila Grinberg, Liberata, a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994; e Hebe Maria Mattos, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, foram trabalhos que abriram esse campo, que vem sendo ampliado desde a década de 1990.

7 Sidney Chalhoub, A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

8 Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, “A República de 1889: utopia de branco, medo de preto (a liberdade é negra; a igualdade, branca e a fraternidade, mestiça)”, Contemporânea, n. 2, (2011), pp. 17-36 https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/34. Grifos meus.

9 Foram importantes aqui os trabalhos de Albuquerque, O jogo da dissimulação; e Angela Alonso, Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro, São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

10 Guimarães, “A República de 1889”, p. 31.

11 José Murilo de Carvalho, A formação das almas: o imaginário da República no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 10.

12 Carvalho, A formação das almas, pp. 111-112.

13 Álvaro Pereira do Nascimento, João Cândido, o mestre sala dos mares, Niterói: EDUFF, 2020.


Resenhista

Álvaro Pereira do Nascimento – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. https://orcid.org/0000-0001-7938-9095


Referências desta Resenha

GATO, Matheus. O massacre dos libertos: sobre república e raça no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2020. Resenha de: NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A racialização da cidadania. Afro-Ásia, n. 65, p. 757-767, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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