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O Brasil e Cuba, 1889/1902- 1929: o debate intelectual sobre as relações raciais | Pedro Alexander Cubas Hernández

Em 28 de novembro de 1939, no anfiteatro Enrique José Varona da Universidade de Havana, Fernando Ortiz encerrava um ciclo de conferências que tinha sido organizado pelo grêmio estudantil Iota Eta. O título da última palestra não poderia ser mais revelador: “Os fatores humanos da cubanidade”. Nela, Ortiz sintetizava que o cubano não podia ser definido pelo fator étnico, mas sim “pela peculiar qualidade de uma cultura, a [cultura] de Cuba”.1

Desta maneira, Ortiz invertia os termos pelos quais tanto o problema quanto a ênfase neste tinham sido tradicionalmente apresentados, interrompendo um discurso nacionalista que datava do final do século XIX e no qual o próprio Ortiz havia participado. Nesta direção, a obra que hoje resenhamos examina o processo constitutivo dessa narrativa na qual, tanto para o Brasil quanto para Cuba, a raça foi assumida como elemento central na formação da cubanidade e da brasilidade, definindo um itinerário intelectual que centrou seus interesses na temática negra.

A fronteira temporal escolhida por Cubas Hernández engloba o que assumimos com o termo Primeira República nos dois países. Embora para o Brasil essa fronteira tenha significado a transição do Império para a República, para Cuba ela constituiu o início do Estado-nação pós-colonial. Em ambos os casos estamos diante de um processo de oligarquização política que marcou, em boa medida, os discursos da intelectualidade dos dois países e, ao mesmo tempo, a ação pública de um Estado incomodado diante da sobrevivência sui generis de uma população afrodescendente. Estas são as décadas críticas para a elaboração de uma narrativa nacionalista, na qual o fim da escravidão e a herança africana ocupavam um aspecto nodal. Tanto a historiografia contemporânea brasileira quanto a cubana contam com diferentes investigações sobre a temática racial, ainda que para o segundo caso os estudos que se concentram no debate intelectual sejam bem mais escassos.

O livro agora resenhado foi concebido originalmente com uma tese de doutorado, defendida pelo autor em 2011 e publicada em 2018 pela editora Clacso em sua coleção Becas de Investigación. Não estamos diante da típica “história das ideias”, muito menos de uma clássica “história do pensamento”. Pela ênfase de suas análises e o sistema de referências que o sustenta, o livro se posiciona na transição para uma história intelectual. Em uma história de tal natureza, o predomínio das fontes bibliográficas em relação direta com seu objeto de estudo salta aos olhos. No entanto, presenciamos ao não menos significativo acompanhamento do tema através da imprensa e, em menor medida, de fontes documentais, as quais contribuem para o esteio argumentativo do autor.

Portanto, não é o binômio raça-nação em si mesmo que distingue a contribuição de Cubas Hernández, mas o enfoque comparativo que emprega para contrapor os discursos nacionalistas que se articularam em torno da questão racial. Para a historiografia cubana contemporânea — ainda focada na singularidade da ilha e não em estabelecer os elementos que a conectam com as sociedades que compartilharam um passado escravista ou sua condição pós-colonial — a ênfase que atravessa o livro dentro dos marcos de uma história intelectual é original. Da mesma forma, revela os vasos comunicantes e de retroalimentação que existiram, assim como a semelhança nas “soluções” que deram ao problema. Neste sentido, o autor nos apresenta uma elite intelectual envolvida nos processos de modernização, que se evidenciaram na passagem do século XIX para o XX, para a qual a composição étnica do Brasil e de Cuba constituía um obstáculo de primeira ordem.

Tanto para Cuba quanto para o Brasil, o início do século XX envolveu uma reflexão em torno das origens de suas formações nacionais com o fim de demonstrar a fraqueza e a heterogeneidade social que as distinguiam. Para os contemporâneos, a fragilidade do Estado-nação não se devia simplesmente à diversidade regional e aos interesses monárquicos agora solapados debaixo do manto republicano, ou à presença sempre supervisora dos Estados Unidos; a fragilidade consistia, em ambos os casos, em lidar com a capacidade das elites para aglutinar esses elementos dispersos que constituíam o cubano e o brasileiro, e por sua vez delimitar o raio de ação dos setores subalternos, agora também marginalizados no novo espaço político.

Nessa direção, Cuba Hernández dedica dois capítulos do seu livro a examinar a relação entre raça, nação e modernidade. No primeiro, dedicado inteiramente ao Brasil, examina o pensamento de Alberto Torres, Euclides da Cunha, Manoel Bomfim, Silvio Romero e Nina Rodrigues como expoentes de uma mesma geração. Embora suas perspectivas analíticas sejam diferentes, elas se vinculavam pelo interesse em dissecar a realidade nacional na virada do século e apostar, como afirma o autor, em uma ideologia que apoiava (à exceção de Bomfim) o branqueamento.

Por isso não é de estranhar, diante do estado pouco consistente representado pelo corpo social, que Torres afirmasse, com pesar, a inexistência da nacionalidade brasileira. Embora os argumentos que sinaliza fossem similares aos de Miguel de Carrión — que defendeu, em 1921, para Cuba: “carecemos da unidade étnica indispensável para que todas as forças sociais marchem para o mesmo fim” —, os elementos formativos do Estado-nação diferiam nos dois países. Se para o Brasil a independência mais precoce representou uma experiência secular de organização política, o advento republicano, com a lógica fratura da monarquia dos Bragança, levou a uma reflexão em torno da identidade brasileira como âncora do novo modelo de “ordem e progresso”.

Para a maior ilha das Antilhas, a constituição tardia de seu Estado Nacional levou quase um século para pensar sobre si mesmo. Mas a representação de si, a imaginação sobre a cubanidade, partiu da exclusão de não apenas centenas de milhares de escravos, mas também da população eufemisticamente definida como “livre de cor”. Era uma Cuba branca e para os brancos. Nem trinta anos de processo anticolonial, em que negros e brancos forjaram um país na revolta, conseguiu transcender definitivamente a fronteira de cor. No entanto, o espaço republicano permitiu um rearranjo político da população afrodescendente, cujo ativismo social se evidenciou não apenas no acesso à máquina estatal, mas também no fortalecimento de uma intelectualidade negra e de suas redes de socialização, e pela constituição de um partido racial: o Independientes de Color.

A ameaça de uma dispersão “nacional”, que poderia implicar a república para a geração de Alberto Torres, coincide com a debilidade do estado cubano que emergia no concerto das nações com o auxílio dos Estados Unidos. E esse sentimento de fragmentação que compartilhavam Miguel de Carrión, Fernando Ortiz, Enrique José Varona, José Sixto de Sola ou Carlos de Velasco nos permite observar os vasos comunicantes que estabelece o autor: são referências intelectuais cruzadas, cujo paradigma poderia ser as “preocupações etnológicas” que compartilhavam Nina Rodrigues e Fernando Ortiz.

No entanto, há um ambiente histórico para onde confluem as ideias de José Ingenieros, José Enrique Rodó, meditando sobre a identidade latino-americana, da qual a intelectualidade do Brasil e de Cuba se retroalimentava — talvez menos a primeira. Mas sem dúvida o pensamento da nação dentro da chave de uma modernidade anunciada pelo vizinho do norte foi um elemento distintivo para entender a raça como o obstáculo fundamental para este salto qualitativo em direção ao futuro nacional.

Cuba Hernández desvenda esse cenário complexo enquanto examina as principais ideias dessa geração, transitando pelos axiomas políticos de Alberto Torres, a reflexão de Euclides da Cunha sobre a guerra de Canudos (1896-1897), ou as teses de Manuel Bomfim sobre a civilização brasileira. Mas o autor não se limita a delimitar o corpus ideológico de cada um; ele os contrapõe, enuncia seus contrastes evidentes para mostrar suas nuances, a despeito das múltiplas conexões que os unem.

As duas seções mais relevantes desse primeiro capítulo são aquelas em que o autor dedica-se a estabelecer os mecanismos pelos quais se articulou um saber científico em torno da questão racial e a formação de uma literatura nacional imbuída do “biologicismo” oitocentista. Nestas seções o autor alcança maior profundidade analítica, ao delimitar a influência das escolas antropológicas europeias nas concepções científicas da geração de Nina Rodrigues e as diferentes maneiras pelas quais esta influência tomou forma nos trabalhos de campo ou nas interpretações sobre a realidade do Brasil. Tanto assim que Cubas Hernández assinala a coincidência de Euclides da Cunha e Nina Rodrigues em entender o conflito de Canudos como uma evidência da antimodernidade brasileira, descrevendo seus protagonistas como loucos criminosos, bem ao sabor das ideias em voga de Cesare Lombroso.

No segundo capítulo, dedicado a examinar a problemática racial na Primera Republica cubana, o autor toma como antessala analítica o fracasso do ideário independentista. Partindo dessa premissa, o autor contrapõe os critérios de Tomás Fernández Robaina e Aline Helg com os de Ada Ferrer e Rebecca Scott em torno da discriminação racial no processo anticolonial da ilha e a ocupação norte-americana, possível catalisador da marginalização dos setores subalternos da população negra. Tanto Robaina quanto Helg defendem, por um lado, a ausência do negro no projeto de nação cubana no final do século e o processo de marginalização política que se evidencia no governo de Tomás Estrada Palma. No entanto, Ferrer e Scott preferem sublinhar a relevância dos setores negros no Exército Libertador e sobretudo na sua oficialidade, o que aponta para a ascensão social obtida no interior das fileiras do movimento de independência. Nessa direção, Cubas Hernández, embora apenas o enuncie, assinala que a maioria dos generais negros alcançou suas patentes militares na Guerra Grande,2 apesar da dificuldade dos negros em ascender na hierarquia militar segundo a legislação aprovada em Jimaguayú e La Yaya. Mas argumenta também que esse fenômeno não pode ser explicado unicamente pela discriminação racial, devido a que esses mesmos obstáculos teriam contemplado os brancos pobres. Quer dizer, a ascensão na hierarquia militar, ao menos durante a chamada Guerra Necessária (1895-1898), não só veio subverter a ordem racial imposta, mas também a estrutura classista.

O autor analisa o termo democracia ou ordem racial, usado por Alejandro de la Fuente em seu livro A Nation for All, para descrever a subordinação política da população “de cor” pela elite branca, que se apresenta na “solução” que o Estado republicano ofereceu para o levante dos Independientes de Color em maio de 1912. A década de 1920 constitui uma aparente bifurcação, segundo a forma pela qual o autor estuda a questão racial em ambos os países. Embora para o Brasil o auge da eugenia e da medicina social adquiram peso considerável, no caso cubano a raça, ainda que não deixe de ser um tópico recorrente no discurso científico (ao menos até a primeira metade dessa década), passa ao “âmbito intelectual das letras” (p. ?).

É um debate que, após os acontecimentos de maio de 1912, busca a harmonia racial, lançando um manto de silêncio sobre a combatividade dos afrodescendentes, e promovendo um diálogo cívico, seja a partir das instituições ou associações negras como o Club Atenas de 1919, ou a partir da imprensa. No entanto, perduram desde a acusação científica ou o sensacionalismo jornalístico à acusação perene contra os afrodescendentes como autores de atos de bruxaria vinculados ao desaparecimento de crianças ou de outra natureza.

No caso do Brasil, se num primeiro momento Cubas Hernández estabelece as linhas gerais sobre a questão racial na passagem do século, dedicará o terceiro capítulo às novas disciplinas que analisam a nação brasileira e ditam as diretrizes a seguir para seu melhoramento étnico, não mais a partir do racismo oitocentista mas segundo as concepções científicas que predominaram nesta década e na seguinte, algumas das quais concretizadas através de práticas eugenistas surgidas nos Estados Unidos e na Alemanha, cujos ecos alcançariam a América Latina.

A partir do pensamento social de Belisário Penna, Renato Khel, Monteiro Lobato, Oliveira Viana e Manoel Bomfim, o autor estuda a relação entre saúde e nação, que nos faz recordar o editorial de 1909 da revista cubana Vida Nueva intitulado “La República enferma”, que sintetiza um modelo de conhecimento médico voltado a dissecar o corpo social com o objetivo de realizar seu diagnóstico clínico e erradicá-lo das patologias que sofre. Nesta direção o autor examina a tuberculose em Cuba, que afetou predominantemente a população afrodescendente, e sobre a qual o discurso não apenas focava na questão clínica da doença mas foi extrapolado para a existência dos fatores étnicos de propensão à doença.

Com base nas obras dos autores mencionados, a criação de novas revistas científicas e do associativismo que emerge do pós-Primeira Guerra, Cubas Hernández reconstrói os nexos dessa “segunda geração republicana”. Desde o Saneamento do Brasil, de Belisário Penna, passando pela ideias regeneracionistas de Khel, pela urgência de Lobato em “importar sangue de fora” — recorte semelhante ao que propôs Fernando Ortiz em 1906 —, ou dos critérios contra a corrente de Bonfim, o autor mostra a complexidade do pensamento social brasileiro em torno das relações raciais e nos aponta a centralidade deste pensamento para entender a identidade nacional.

Para Cuba, os anos de 1920 são o prelúdio para o colapso do modelo oligárquico dominante na Primera República e, ao mesmo tempo, o surgimento de um novo grupo de intelectuais que manteve uma distância crítica dos artífices do Estado-nação. É um contexto político que antevia a mudança social da década seguinte, mas manteve elementos de continuidade, o que permite assumi-la como um período de transição. Neste sentido adquire relevância o debate em torno da raça, pois, em si mesmo e imbuído do ambiente da época, é o cenário em que se contrapõem argumentos do final do século e de um novo discurso racial no qual o autor destaca o ativismo de intelectuais negros como Gustavo Urrutia ou Nicolás Guillén.

Esse último aspecto é ressaltado pelo autor no último capítulo, no qual analisa em profundidade a coluna que, em 1928, e debaixo do rótulo “Ideais de uma Raça”, criou Gustavo Urrutia no Diario de la Marina. Essa coluna examinou uma série de questões em torno do problema racial que até o momento não tivera visibilidade. A raça cubana que sugere Urrutia, amparado nos pressupostos ideológicos da harmonia racial, conduzia à superação cultural da “população de cor”. Desta maneira, a solução étnica não derivava da emigração dos cubanos negros, nem do embranquecimento de Cuba, mas implicava em construir uma cubanidade que fosse além da afinidade afetiva, uma cubanidade assentada na propriedade econômica da nação.

Mas se o discurso de Urrutia era conciliador, a combatividade do ativismo de Guillén descentralizava o problema racial e o colocaria em sua medida adequada, pois o problema negro era um problema dos brancos. Por isso Cubas Hernández, ao analisar os quatro artigos publicados por Guillén em 1929 em meio à polêmica, enfatiza um texto pouco conhecido deste, no qual o autor de Motivos de son se pergunta: “Periódicos negros de cubanos. Periódicos cubanos de negros?”, e alertava sobre as práticas segregacionistas que havia sofrido não somente em sua cidade natal, Camagüey, mas também em alguns espaços de Havana. Guillén defendia a todo custo que se devia evitar a replicação do Harlem em Cuba pois isto ameaçava a existência da nação cubana.

O protagonismo que adquirem os intelectuais negros nesta década transpõe as fronteiras de gênero. São nesses anos que se celebram os primeiros congressos femininos em Cuba; vozes como a de Consuelo Serra ou Inocencia Silveira põem em evidência o racismo republicano que se encobria na hipocrisia social assinalada por Guillén, citando os valores afirmativos da “população de cor” e sua capacidade para serem “cidadãos conscientes” na Primera República.

Cuba Hernández analisa ainda como a geração de Jorge Mañach e Juan Marinello, apoiados pelo trabalho cultural realizado por Fernando Ortiz, e influenciados por sua visão, transfere a questão racial para o campo da cultura, como estratégia para resolver definitivamente a polêmica em torno da “raça cubana”. Em outra direção, intelectuais brancos como Ramiro Guerra ou Gastón Mora concordaram na existência de outros problemas de maior importância, problemas estes que não estavam subordinados à pigmentação da pele, além de reconhecerem os motivos que provocavam as aspirações desse setor. Dessa maneira o autor reconhece que, apesar dos argumentos em favor da harmonia e da mestiçagem, os elementos que alimentaram a narrativa nacionalista sobre raça, que serviu de base na virada do século, mostravam ainda traços de sobrevivência. Nesta hibridez que conecta os discursos em torno da nação e da raça, O Brasil e Cuba, 1889/1902-1929 torna-se leitura obrigatória.


Notas

* Este artigo foi escrito no marco de um contrato pré-doutoral do Programa Santiago Grisolía (Generalitat Valenciana, Espanha) com a Universidad Jaume I.

1 Fernando Ortiz, “Los factores humanos de la cubanidad”, in Julio Le Riverend (Selección y prólogo), Órbita de Fernando Ortiz (Havana: UNEAC, 1973), p. 152.

2 A Guerra dos Dez Anos (1868-1878). N. T. 


Resenhista

David Domínguez Cabrera – Grupo de Historia Social Comparada Universitat Jaume I. E-mail: ddomingu@uji.es


Referências desta Resenha

CUBAS HERNÁNDEZ, Pedro Alexander. O Brasil e Cuba, 1889/1902- 1929: o debate intelectual sobre as relações raciais. Buenos Aires: CLACSO, 2018. Resenha de: CABRERA, David Domínguez. As cores da nação: Cuba e Brasil no debate intelectual*. Trad. da resenha Carlos da Silva Junior. Afro-Ásia, n. 58, p. 285-291, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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