O livro de Stephen Chambers traz uma contribuição impressionante e relevante para a história dos Estados Unidos (EUA) e sua relação com a América Latina, especificamente com Cuba. A historiografia das relações econômicas e diplomáticas dos EUA com a América Latina durante o século XX é vasta e diversa; mas não foi senão recentemente que os historiadores começaram a prestar mais atenção ao estudo das atividades comerciais e do comércio exterior dos EUA dentro dos territórios hispano-americanos, e como tais práticas influenciaram aquelas relações no período 1790-1830. Esses historiadores trouxeram novas perspectivas sobre como o comércio de reexportação com a América Espanhola proporcionou a negociantes, banqueiros e investidores grandes lucros e importantes remessas de capital que foram usados nos primórdios da industrialização dos EUA.1
O livro de Chambers faz parte deste grupo inovador de trabalhos históricos transnacionais, uma vez que ele apresenta interpretações originais sobre como essas primeiras atividades comerciais em Cuba moldaram a política externa dos EUA e promoveram o papel do país norte-americano como guardião do Hemisfério Ocidental através da criação e afirmação da Doutrina Monroe.
O livro cobre um período crítico da história mundial atlântica e, em particular, das histórias tanto de Cuba como dos EUA. No início do século XIX, o governo pós-revolucionário do Haiti lutava por um lugar próprio no mundo atlântico, e isso não seria tarefa fácil: os líderes haitianos estavam determinados a defender suas promessas de liberdade universal em seu território, ao mesmo tempo que se comprometia a não subverter a escravidão nas colônias estrangeiras. Enquanto isso as autoridades espanholas em Cuba buscavam promover a ilha espanhola como a nova joia do açúcar caribenho e vislumbrava um novo caminho de modernidade e desenvolvimento econômico para a ilha, “com uma escravidão intensiva no seu núcleo”. (p. 23)
Embora exista um bom número de trabalhos interessantes que exploram o impacto do Haiti sobre a política dos EUA, e sobre as relações diplomáticas iniciais dos EUA com a nascente república negra, as relações entre Cuba e os EUA durante esse período inicial são menos estudadas.2 Em seu livro Chambers explora o impacto dos investimentos americanos na ilha de Cuba no início do século XIX. Ele apresenta um quadro completo e detalhado de um contexto transnacional importante, num período que foi grandemente ignorado pela historiografia. Enquanto historiadores anteriores tenderam a focar principalmente nas relações entre os EUA e Cuba durante o final do século XIX e início do XX, e nos limites da guerra hispano-americana, Chambers estudou um período anterior e prova, convincentemente, que a presença de negociantes, investidores e agricultores americanos em Cuba nos anos iniciais do século XIX — quando a ilha ainda era território espanhol — foi relevante e influenciou dramaticamente tanto a economia como a política externa dos EUA.
Com uma introdução densa, nove capítulos oportunos e uma conclusão concisa e cortante, Chambers mostra a dinâmica complexa que ligava negociantes, grandes agricultores, diplomatas e políticos dos EUA a autoridades e funcionários consulares espanhóis, negociantes e grandes agricultores cubanos, além de muitos outros indivíduos, incluindo milhares de escravos africanos submetidos aos velozmente crescentes negócios em Cuba. No livro de Chambers fica claro que relações privilegiadas dos comerciantes e diplomatas estadunidenses com agentes do governo, tanto em Cuba como nos EUA, permitiram uma rápida acumulação de capital e de poder por parte dessa nova elite econômica americana. Conexões estratégicas com funcionários consulares, advogados e políticos na jovem República Americana, mas também na ilha de Cuba, proporcionaram vantagens especiais de mercado, acesso facilitado a portos estrangeiros e segurança contra a competição e o prejuízo, o que representou vantagens importantes. De fato, um argumento chave deste livro é que a expansão do comércio EUA-Cuba resultou de efeito calculado da incorporação do Estado americano às redes da elite comercial transnacional.
Cuba permanece uma região chave no estudo de Chambers não apenas devido a sua localização estratégica e proximidade dos EUA, mas porque Cuba, como o Brasil, se tornaria um centro crucial do tráfico negreiro oitocentista nas Américas, o que permitiu a prosperidade da agricultura comercial e dos negócios. A escravidão cubana e sua relação com os plantadores e investidores estadunidenses são elementos chave na narrativa de Chambers. Um dos argumentos centrais do livro é que, embora a lei nos EUA banisse seus cidadãos de participarem no tráfico de escravos a partir de 1 de janeiro de 1808, o tráfico ilegal e a escravidão em Cuba foram, de fato, o que tornou possível o desenvolvimento dos EUA nos primeiros anos cruciais da república. Chambers declara, provocativamente:
Embora os historiadores tenham algumas vezes considerado a escravidão pré-capitalista, não houve, de fato, nada tão moderno ou necessário à integração dos mercados globais oitocentistas do que a expansão da escravidão e do tráfico de escravos. (p. 8)
Comerciantes e homens de negócio, diplomatas e políticos estadunidenses estavam todos igualmente mui conscientes disso e promoveram, estrategicamente, políticas externas pró-escravistas anti-britânicas que trabalharam em harmonia com a expansão da escravidão.
A Doutrina Monroe — ele argumenta — foi criada para proteger o tráfico ilegal de escravos e os regimes escravocratas que ele criou. (p. 12)
Escrever a história dos cidadãos estadunidenses participantes ativa e ilegalmente do tráfico de escravos cubano no século XIX — uma história que o autor caracteriza como “não contada” — não foi, certamente, uma tarefa fácil. O próprio Chambers reconhece que é extremamente difícil seguir a pista da documentação a respeito do impacto do tráfico negreiro sobre o desenvolvimento dos EUA por causa da falta de fontes e registros. Para escrever este livro, Chambers consultou um impressionante número de arquivos e outros repositórios nos EUA, no Reino Unido, na Espanha, em Cuba; e penetrou em áreas desses arquivos que a maioria dos pesquisadores sequer conhecia, muito menos leu com atenção. Ele fez uso de uma larga variedade de fontes, que incluíam documentos e correspondência privados da elite comercial da Nova Inglaterra, proclamações políticas e tratados comerciais, crônicas e diários, jornais e literatura, processos oficiais, papéis consulares, documentos diplomáticos públicos, registros de tribunais e notariais. O trabalho de arquivo investido neste livro é bem impressionante e se torna muito proveitoso para pesquisadores do início da república estadunidense, de Cuba e do tráfico de escravos no mundo atlântico.
No God but Gain investiga as histórias em torno de cidadãos americanos de elite que, nos albores da república, incorporaram o aparato da política externa a seus interesses privados. Chambers focaliza, particularmente, os “filhos” dos Pais Fundadores dos EUA, aqueles que pertenciam à geração pós-revolucionária de líderes americanos. O autor os caracteriza como a “geração de 1815”, em referência
ao ano decisivo de 1815, quando os membros de sua geração testemunharam a escala e a amplitude do que os Estados Unidos podiam se tornar após a guerra de 1812. (p. 15)
É interessante que Chambers não escolheu 1815 como um ano decisivo apenas porque marcava uma paz definitiva para os EUA, mas porque os anos imediatamente posteriores testemunharam a dramática expansão do tráfico de escravos tanto em escala como em lucros. Para o autor, está claro que a expansão territorial e econômica dos EUA e seu desenvolvimento posterior deram as mãos com a expansão do regime escravocrata. (p. 79)
Segundo Chambers, a geração de 1815 teve um papel crucial na maneira segundo a qual tanto o tráfico legal e o ilegal influenciaram o desenvolvimento dos EUA. Para ajudar-nos a entender a natureza variada e complexa dos papeis que estes indivíduos desempenharam, o autor divide seu livro em diferentes capítulos que correspondem a diversos personagens: contrabandistas, advogados, cônsules, oportunistas, traficantes de escravos, assassinos, comerciantes e estadistas, presidentes, especuladores e algozes — todos partícipes de uma intrincada rede que moldou as relações comerciais EUA-Cuba, práticas legais, atividades ilícitas e os planos de política pública que deram lugar ao “império informal”. Império informal é precisamente o termo que Chambers usa em todo o livro para caracterizar os EUA: um império “firmado não no controle militar ou político, mas no poder econômico indireto”. (p. 24)
O livro é também organizado cronologicamente, mostrando mudanças que moldaram a dinâmica que vinculava os interesses privados às decisões diplomáticas por parte dos líderes políticos estadunidenses. Os três primeiros capítulos (Smugglers, Lawyers e Consuls/Contrabandistas, Advogados e Cônsules) oferecem uma clara evidência de que os fundamentos desse império informal estavam assentados sobre o território incerto e transnacional de Cuba, onde indivíduos americanos, espanhóis e cubanos ganharam poder através da ilegalidade e da violência, manipulação de registros, encobrimento de provas criminais, contrabando. O terceiro capítulo (Consuls) é particularmente interessante porque expõe as estratégias que os capitães de navios e os cônsules divisaram para controlar as redes comerciais entre os EUA, Cuba e os portos do Báltico durante as primeiras décadas do século XIX. Este capítulo não apenas mostra quão relevantes os produtos da escravidão cubana eram nos distantes portos russos, mas traz também evidências detalhadas e significativas sobre como as decisões da diplomacia dos EUA eram feitas para proteger os interesses comerciais e as conexões que terminavam por consolidar o poder e a influência dos cidadãos estadunidenses. Chambers situa a concepção da Doutrina Monroe ao longo destes primeiros estágios em que o governo americano adotou o famoso “princípio da não transferência”, segundo o qual os EUA viam como uma ameaça potencial “qualquer transferência de território nas Américas de uma potência europeia para outra.” (p. 48)
Os capítulos seguintes do livro (Opportunists, Slavemongers, Assassins, e Merchant State-men/ Oportunistas, Traficantes de escravos, Assassinos e Estadistas mercadores) fornecem um variado número de casos que demonstram a expansão e a consolidação dos investimentos americanos em Cuba durante a primeira metade do século XIX. Chambers explica a natureza das conexões que existiam entre os investidores americanos e a elite cubana crioula (especialmente grandes agricultores), também mostrando como às vezes essas relações criaram tensões e conflitos com as autoridades espanholas e membros de uma outra elite comercial cubana.
Os anos de 1808 a 1820 não foram fáceis para a monarquia espanhola, que enfrentou a invasão napoleônica da Península Ibérica e as guerras de independência em seus territórios americanos. Contudo, Cuba e seu regime escravista mantiveram-se cuidadosamente protegidos pelos funcionários espanhóis e o tráfico de escravos continuou sem maiores turbulências. Chambers afirma que, mesmo no ápice das guerras atlânticas em curso, “Cuba permaneceu o olho calmo da tempestade.” (p. 74) A ilha espanhola era, certamente, uma região chave no hemisfério ocidental, controlada por um regime que não proibia nem condenava a escravidão, e os agentes comerciais e investidores americanos aproveitaram essas condições favoráveis e continuaram a promover o regime escravocrata e seus negócios em Cuba.
Os capítulos finais (Presidents, Speculators e Executioners/Presidentes, Especuladores e Algozes) se concentram nas maneiras mais específicas com que o envolvimento econômico americano em Cuba influenciou a política externa estadunidense e como indivíduos estadunidenses se arranjavam face aos desafios do emergente mercado internacional de capitais e das dificuldades dentro das fronteiras da ilha de Cuba. Chambers demonstra que as políticas econômicas do livre comércio com frequência trabalhavam atreladas com a expansão e a intensificação da escravidão cubana; de fato, a destruição das restrições comerciais, trazida pelos ventos da emancipação, frequentemente reforçavam a economia escravista. Nesta última seção do livro, Chambers também apresenta seu provocador argumento a respeito da famosa declaração de 1823 do presidente James Monroe, “América para os americanos.” Segundo o autor, a bem conhecida Doutrina Monroe — que visava banir os europeus das Américas — foi originalmente concebida para prevenir a intervenção britânica no ilegal tráfico negreiro americano em curso em Cuba. “Na medida em que Cuba crescia para se tornar o segundo maior parceiro comercial dos EUA”, Chambers comenta,
membros da elite da geração de 1815 flexionaram os músculos do aparato estatal da nascente República para proteger o crescimento do império informal. (p. 130)
Este livro oferece um grande número de curtas histórias de indivíduos que, apesar de difícil conexão entre si, resulta num fascinante quadro das redes complexas e superpostas que conectavam Cuba e os EUA durante a primeira metade do século XIX. Por mais cativantes que essas histórias sejam, elas, contudo, oferecem uma visão parcial desse passado comum aos EUA e Cuba; essas histórias mais descrevem as vidas, ações, decisões e deliberações dos agricultores, agentes, comerciantes, cônsules e políticos estadunidenses. Conhecemos muito menos sobre os cubanos, tanto os que concordaram como os que enfrentaram ou foram vítimas da presença de expatriados estadunidenses em Cuba e do surgimento de um império informal. Realmente, ainda não temos um quadro completo do impacto que esses cidadãos americanos tiveram sobre a sociedade e a política cubanas, nem sobre o cotidiano de milhares de escravos forçados a participar do sistema, e como isso afetou o desenvolvimento econômico da própria ilha e suas conexões no mundo atlântico. Essa parte da história permanece não contada, mas o estimulante livro de Chambers certamente encorajará futuros estudiosos a escrevê-la
Notas
1 Ver, por examplo, Jacques Barbier e Allan J. Kuethe (orgs.), The North American Role in the Spanish Imperial Economy, 1760-1819, (Manchester: Manchester University Press, 1984); Peggy Liss, Atlantic Empires: The Network of Trade and Revolution, 1713- 1826, Baltimore: John Hopkins University Press, 1983; Rosemari Zagarri, “The Significance of the ‘Global Turn’ for the Early American Republic: Globalization in the Age of Nation-Building”, Journal of The Early American Republic, n. 31 (2011), pp. 1-37.
2 Ver, por exemplo, Doris Garraway (org.), Tree of Liberty: Cultural Legacies of the Haitian Revolution in the Atlantic World, (Charlottesville: University of Virginia Press, 2008); David P. Geggus e Norman Fiering (orgs.), The World of the Haitian Revolution (Bloomington: Indiana University Press, 2009); Ashli White, Haiti and the Making of the Early Republic, Baltimore: John Hopkins University Press, 2010.
Resenhista
Cristina Soriano – Villanova University. E-mail: cristina.soriano@villanova.edu
Referências desta Resenha
CHAMBERS, Stephen. No God but Gain: The Untold Story of Cuban Slavery, the Monroe Doctrine & the Making of the United States. Nova York: Verso, 2015. Resenha de: SORIANO, Cristina. Conexões Estados Unidos – Cuba e os primórdios do império informal. Afro-Ásia, n. 55, p. 303-308, 2017. Acessar publicação original [DR/JF]
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