Na rodoviária de Salvador, na Bahia, a antropóloga entrou no ônibus, percorreu dez horas por estradas sinuosas até a região da Chapada Diamantina e chegou a Brogodó. Ao longo de uma década, entre 2006 e 2015, ela voltou ali. De início, chegou de mansinho, passou umas semanas, sentiu o clima. Depois, foi encontrar financiamento para mais pesquisa e voltou para passar mais tempo, dedicando-se a entrevistas e grupos focais, observação participante mais apurada, perguntas mais argutas. E, a partir desse longo relacionamento, Melanie Medeiros, professora da State University of New York, produziu monografia de graduação, dissertação de mestrado e tese de doutorado, resultando no presente livro, publicado em 2018.
Brogodó, um nome fictício, é uma cidadela de 11.000 habitantes (conforme o Censo de 2010). Por séculos, foi uma região dedicada à mineração, mas, nas últimas décadas, passou ao ecoturismo. A população local era, na sua maioria, negra. Mais forasteiros do que nativos eram donos dos estabelecimentos. Alta concentração de renda, baixa escolaridade geral, baixa oferta de emprego, poucos serviços públicos de qualidade. Brogodó foi se mostrando para Medeiros como um eloquente microcosmo da estratificação socioeconômica do país, com desigualdades acentuadas em termos de raça, classe e gênero. Por isso, inclusive, ela opta por uma constante e consistente abordagem interseccional – raça, classe, gênero – ao longo de todo o livro.
Ainda assim, mais mulheres estavam empregadas, sobretudo nas pousadas e hotéis locais, do que homens. E isso fazia toda a diferença, por exemplo, nos relacionamentos conjugais, notou a pesquisadora. Os casamentos eram, em geral, informais (“as if marriages”) e as mulheres diziam que o “casamento no papel” ou o “casamento na igreja”, embora marcadores de status, era coisa do passado, salvo nas classes mais altas. Além disso, Brogodó seguia o incremento mundial de divórcios. No Brasil, de 2004 a 2014, a dissolução matrimonial aumentou 161,4%. Na cidade, ao final da estadia da autora, quase metade das mulheres já tinha se separado (40%); destas, 33% tinham casado de novo; e, destas últimas, 44% tinham se separado (p. 11). Dado este cenário e em diálogo com antropólogos estrangeiros e nacionais,1 a intenção de Melanie Medeiros foi conhecer as circunstâncias que cercavam o conflito marital e a dissolução do casamento, considerando como as pessoas e as famílias percebiam seus relacionamentos, casas e parentescos (p. 12). E, estar em Brogodó lhe ofereceu um recorte pouco abordado na bibliografia até o momento, qual seja, as mulheres negras precariamente assalariadas e de origem fortemente rural.
Depois da introdução, que apresenta o cenário da região e a metodologia de pesquisa, os estudos clássicos e contemporâneos sobre parentesco e casamento, seguem cinco capítulos que discutem os dados empíricos e uma conclusão. Em todos eles aparecem as mulheres de modo muito nítido, com suas histórias de vida, suas falas e reflexões, os contextos e dramas vividos no trabalho, casamento e família. São descrições muito densas, que contribuem para viajarmos com a autora até Brodogó e por lá permanecermos por um largo tempo.
No primeiro capítulo, fica claro como o ecoturismo representou um divisor de águas: ofereceu trabalho, renda e independência financeira às mulheres locais. Ao deixar o limite doméstico, é possível construir um novo papel. Karolina, uma das interlocutoras que a autora conheceu, ao falar do tempo de outrora, resumiu, “desemprego é ficar sem chão”. Já Roberta contou ter “aguentado” por sete anos um marido desempregado, agressivo e adicto do crack e depois se organizou para se separar. Barbara explicou, “Agora a gente sai, a gente trabalha, a gente faz o que quer, a gente toma decisão” (p. 31). Ter uma renda própria, sobretudo trabalhando nas pousadas do ecoturismo, permitia independência nos gastos e menos dependência de mesadas ou decisões do marido, quando este servia como o único provedor da casa. E Olivia concluiu, “Hoje a mulher também vai pra luta” (p. 31). Ao mesmo tempo em que o salário feminino desafiava a identidade e a autoridade masculinas em casa, ele também empoderava a mulher com autonomia e autoestima dentro e fora dali. Algumas destas mulheres reforçavam que acreditar na sua própria capacidade, montar sua casa e cuidar de seus filhos eram mais importantes do que os ganhos financeiros. Este cálculo parecia valer a pena mesmo que significasse três ou quatro jornadas de trabalho diário, mesmo estando num contexto em que o trabalho das mulheres negras era mais extenuante, mais longo e mais sub-remunerado. A precariedade laboral seguia pelas demarcações raciais.
Mas a inspiração para terminar o casamento derivava menos do incremento das finanças domésticas do que das aspirações pelo amor romântico e por um outro tipo de casamento. A autora mostrou, no segundo capítulo, como essas jovens moradoras de Brogodó identificavam nas protagonistas e tramas das telenovelas da Rede Globo, principalmente, os valores da corte, fidelidade, dedicação e do respeito. “No início tudo são flores, depois vêm os espinhos” (p. 1), muitas mulheres disseram a Medeiros, numa clara identificação de romantismo no início dos seus relacionamentos, mas não durante ou ao seu final. Havia o desejo por carinho e delicadeza no trato diário, liberdade de expressão e circulação, fidelidade marital e dedicação de tempo em casa (em vez de gastar dinheiro na rua), similares, segundo a autora, aos padrões conjugais de mulheres brancas de classe média e alta (p. 74). Na prática, aquelas moças reconheciam que, embora desejado, o amor romântico era inalcançável, servindo mais como orientação do que concretização. Num bom casamento, resumiam, respeito era mais importante do que amor, uma convivência sem conflitos e sem violência era mais importante que uma paixão ardente. Queriam, em suma, o que Medeiros chamou de um “casamento com companheirismo” (“companionate marriage”) (p. 73-77).
Embora a autora e suas amigas de Brodogó reconhecessem que as novelas retratavam um contexto de classes média e alta, com forte apreço pelo individualismo, consumismo e autonomia feminina dentro e fora de casa, elas acreditavam que um casamento local poderia compreender respeito. Ou, por contraste, não compreender desrespeito: sem violência física, traição e evasão das responsabilidades financeiras pela casa. O terceiro capítulo mostrou claramente como as mulheres não queriam mais o “casamento de antigamente”, com as armadilhas patriarcais enfrentadas, segundo elas, por suas avós. “Antes, as mulheres tinham que aguentar muita coisa” (p. 80), disse Debora, uma das interlocutoras da pesquisadora. E completou, “Eu prefiro um marido desempregado em casa do que infiel” ou agressivo (p. 92). A partir dos valores da fidelidade e da integridade física, Medeiros cunhou outra ideia, a expectativa pelo “respeito romântico” (“romantic respect”) (pp. 84-90).
De modo instigante, a autora reconheceu que as mulheres da cidade demandavam fidelidade como um marco de respeito, mas também como um indicativo de branquitude e de um eu (self) moderno. Segundo ela (acompanhada por outras autoras), no Brasil, a sexualidade da mulher branca tende a ser mais respeitada dentro dos limites do casamento, enquanto a sexualidade da mulher negra é percebida com mais disponível fora do casamento. As jovens entrevistadas precisavam transpor esses valores de espaço, raça, sexualidade e moralidade se almejassem o “respeito romântico” e o “casamento com companheirismo”. Assim, embora as novelas pudessem ter um papel de lazer e de informação, em vez de desafiar normas tradicionais e patriarcais que inspiravam as relações íntimas na região, essas mesmas novelas, segundo Medeiros, pareciam naturalizar as hierarquias sociais de gênero, sexualidade, raça e classe. As telenovelas poderiam até contribuir para a independência feminina e a flexibilidade de papeis de gênero, mas terminavam por valorizar ideais individualistas e “embranquecidos”.
Assim, “à luz das aspirações não satisfeitas de respeito romântico, amor e casamento por companheirismo, e apoiadas por redes de envolvimento e parentesco, as mulheres em Brogodó optaram por encerrar seus casamentos em vez de perder o amor próprio e a respeitabilidade” (p. 99). Mas isso não evitava que as mulheres quisessem necessariamente casar de novo, apenas reforçava como a autonomia delas era cada vez mais valorizada, como a subjetividade individual brigava por cada vez mais espaço. Essas mulheres estavam todo o tempo equilibrando o passado e o presente, diante de imagens diferentes de casamento, colocadas entre o risco de se separarem e perderem o respeito público (por não mais contarem com a presença supostamente protetora de um marido) e ficarem solteiras e empregadas, ganhando independência financeira, segurança física e saúde psicológica.
Não é fortuito que o tema da saúde acabe por aparecer no livro. No quarto capítulo, Medeiros explica que desrespeito, infidelidade e separação geravam muito sofrimento e os nervos destas mulheres ficavam em polvorosa. Sua entrevistada Karolina, por exemplo, contou de dores de cabeça, gastrite, insônia, falta de apetite. Segundo a autora, há poucos estudos no Brasil sobre os impactos psicológicos do conflito conjugal e do divórcio. Os problemas com os nervos eram potentes para expressar a tristeza e o sofrimento vividos com um marido violento ou desrespeitoso. E os nervos também eram a via para angariar apoio e assistência da família imediata e da vizinhança. “Embora o divórcio fosse um processo necessário para que as mulheres mantivessem sua respeitabilidade se seus maridos fossem infiéis, as mulheres precisavam demonstrar angústia devido ao divórcio para permanecerem respeitáveis. Sua angústia se tornava um rito de passagem – algo pelo que elas deveriam passar para reivindicar identidades morais sem serem julgadas ou criticadas pelos outros” (p. 114). E, assim, o sofrimento psicossocial expressava a necessidade daquela mulher por amparo face à “perda do nome” e à perda de sua honra feminina ao se separar do marido. Os valores do “casamento de antigamente” pareciam teimar em povoar o imaginário local. Mas a “mulher nervosa”, tão descrita pela Antropologia brasileira, parecia ser a forma de contornar esse imaginário e forjar outra identidade para uma mulher solteira, com trabalho, com renda e autonomia. Incorporavam ao corpo psíquico os valores da autoestima, autorrespeito e orgulho feminino, inclusive com a ajuda de medicamentos psicotrópicos.
Por fim, no sexto capítulo, Medeiros descreve como o amparo para conseguirem se separar e viver sem o marido abusivo vinha, sobretudo, das parentas consanguíneas. As avós, mães, irmãs e sobrinhas eram fontes mais confiáveis de apoio material e emocional. Diante do desrespeito do marido, das fofocas espalhadas por outras mulheres de fora da família, da falta de confiança que a comunidade tinha nas mulheres solteiras e separadas, restavam as parentas. Como disse Karolina, “A gente toma conta uma da outra”. Como tantos estudos sobre o Nordeste já mostraram, Medeiros descreveu mais um exemplo de sociedade matrifocal, onde o amor mãe-filha era central. Os laços de sangue eram a família de verdade e aquelas interlocutoras de Brogodó expressavam que nesses laços encontravam o único e possível “amor verdadeiro”.
O livro ensina muito sobre a região da Chapada Diamantina, na Bahia, sobre as relações contemporâneas em termos de raça, gênero e conjugalidade, sobre os desafios de inventar outras formas de ser jovem e negra no interior rural. Concordo com o potencial apontado pela autora de que “as decisões das mulheres de acabar seus casamentos serviram como um metacomentário sobre injustiça e desigualdade, tanto no nível íntimo do relacionamento conjugal como no nível macro das relações sociais” (p. 154). Contudo, teria sido interessante também descrever alguns casais que conseguiram, de fato, concretizar os novos ideais de eu feminino e de casamento respeitoso; valorizar e dialogar mais intensamente com a extensa e respeitada produção brasileira sobre os nervos e o nervoso; dialogar com a Antropologia do divórcio feita no marco dos estudos de parentesco na produção acadêmica brasileira, não somente a do exterior, especialmente os trabalhos de antropólogos da UFF, UFRJ, UFPE e UFRGS.
Além disso, como os laços da antropóloga com Brogodó se consolidaram firmemente ao longo de muitos anos, como sua relação com o Brasil está no nível do familiar e muito próxima, julgo necessário que o livro seja traduzido ou, ao menos, se desdobre em artigos publicados em português nos periódicos científicos nacionais. Dessa forma, por um lado, o belo trabalho de Medeiros será mais amplamente conhecido por aqui e ajudará a pensar as transformações de gênero, raça e conjugalidade que o país e essa região específica vivenciam na atualidade; por outro lado, permitirá que a autora evite repetir a Antropologia “hit and run” de algumas de suas colegas estadunidenses que estiveram no Brasil no século passado, ganharam fama com os dados empíricos aqui coletados e jamais voltaram para a interpelação crítica e a construção coletiva de mais ciência antropológica.
Nota
1 A autora dialoga especialmente com pesquisadoras dos principais núcleos de pesquisa dedicados aos temas de parentesco, gênero e Antropologia no Brasil, como o Núcleo de Família, Gênero e Sexualidade (FAGES/UFPE), Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACi/ UFRGS) e Núcleo de Estudos de Gênero (PAGU/Unicamp).
Resenhista
Soraya Fleischer – Universidade de Brasília. https://orcid.org/0000-0002-7614-1382
Referências desta Resenha
MEDEIROS, Melanie A. Marriage, Divorce and Distress in Northeast Brazil: Black Women’s Perspectives on Love, Respect and Kinship. New Brunswick: Rutgers University Press, 2018. Resenha de: FLEISCHER, Soraya. Amor, respeito e casamento na chapada diamantina. Afro-Ásia, n. 64, p. 768-774, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]
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