Justamente, em uma tarde qualquer de abril, “começou na Bahia […] a glória de Pedro Archanjo”, personagem de Tenda dos Milagres, livro de Jorge Amado.1 Nesse romance, o mundo da cozinha baiana está presente. Nos dizeres de Paloma Amado, Pedro Archanjo era “um obá de Xangô, Ojuobá cheio de conhecimento e sabedoria”, que conhecia “o povo mestiço da Bahia […] seus hábitos, sua cultura”, portanto, através dele se podia ter “a noção exata da delicadeza e da força, da simplicidade e da sofisticação dessa culinária”.2 Até porque Jorge Amado construiu seu romance inspirado em personagens reais. Pedro Archanjo se espelhava em Manuel Querino. Jorge Amado disse então: “enquanto escrevi este livro, muitas vezes recordei […] Manuel Querino”.3 São temas do livro aqui resenhado, tanto a pessoa, Manuel Querino, como sua obra, A arte culinária na Bahia. 4
Examinemos primeiro o livro de Querino. Ele começa com uma advertência sobre os alimentos puramente africanos e algumas noções do sistema alimentar na Bahia, da sobremesa baiana e do preparo de licores. Nos dizeres de Querino, “a Bahia encerra a superioridade, a excelência, a primazia, na arte culinária do país, pois que o elemento africano, com a condimentação requintada de exóticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas resultando daí um produto nacional”.5 Ele entendia a necessidade de ressaltar a cozinha baiana como uma herança de grupos africanos, daí a ideia de “esboçar o trabalho que ora empreendo”.6
O livro de Carlos Alberto Dória e Jeferson Bacelar contém, além de dois prefácios, cada um escrito por um dos autores, sete capítulos e uma conclusão: “Os livros de receitas”; “As cozinhas regionais: o caso baiano”; “A Bahia em que Manuel Querino viveu”; “A trajetória de vida de Manuel Querino”; “A modernidade e a tradição em Manuel Querino”; “Notas sobre os formadores da culinária baiana”; “A arte culinária na Bahia de Manuel Querino – sobre as edições”.
Os autores falam em seus prefácios sobre a importância de repensar a culinária brasileira tendo como ponto de partida a “formação das várias cozinhas populares que contém e que não coincidem com as fronteiras regionais, tal e qual é costume ler o território brasileiro”, e que “a distinção entre uma cozinha de elite, em tudo afrancesada e internacionalizada, e várias cozinhas populares de caráter local é porta de entrada para a renovação metodológica que se faz necessária” (pp. 7-8). Somos chamados a repensar a temática a partir das cozinhas populares e, mais específico ainda, de uma cozinha de “cultura negra” (p. 8). Um dos pontos altos do livro resenhado é quando Dória defende em seu prefácio ser necessário “desconstruir um discurso de cunho nacionalista e regionalista”, ou seja, “olhar para a diversidade de sujeitos que compõem o conjunto social” (pp. 10-11) e tiveram papel fundamental na formação das práticas alimentares entre nós. E no caso da Bahia, são os povos de origem africana.
No primeiro capítulo, “Os livros de receita”, estes são vistos pelos autores como “malas de viagens” no tempo (p. 24). São reflexões sobre a época em que foram escritos e assim devem ser lidos. São, sobretudo, importantes repositórios de saberes, inclusive de grupos sociais. Mas, “como interrogar uma receita étnica, como são usualmente lidas aquelas coligidas por Manuel Querino?”, perguntam (p. 25). A partir dos ingredientes e dos processos de seu preparo seria possível definir o que seria uma comida étnica? Seria tarefa bem difícil, segundo os pesquisadores. Pois essa interpretação muitas vezes considera apenas a origem dos insumos como diferenciador étnico (tal como o dendê ou o quiabo enquanto cultura alimentar africana), o que não seria definidor de comida étnica, da mesma forma que indagam se as técnicas não seriam suportes de origem alimentar étnica. Até porque as receitas mesmas sofrem “processos de reconfiguração”, desde sua “origem”. Sendo assim, a análise não deve se concentrar apenas nas matérias-primas (ingredientes), nem nas técnicas de preparação e cozimento ou, ainda, na receita em si.
Querino explicou a escrita de sua obra como resultado de uma viagem que fez pelo Norte e Sul do Brasil, quando entendeu que a Bahia possuía uma culinária peculiar que justificava ganhar um livro próprio. Não seria apenas uma descrição de uma cozinha popular baiana, mas um exercício de valorização, de exaltação de suas origens africanas. Dória e Bacelar enfatizam, no capítulo “As cozinhas regionais: o caso baiano”, que Querino não se furtou a encontrar nas teorias de miscigenação argumentos para explicar que o mesmo acontecia nas panelas. A ênfase dada por Querino a “esses miscigenismos”, isto é, à miscigenação no campo da alimentação, segundo os autores, impossibilitariam uma análise mais profunda dos “processos de transformação material” dessa cozinha baiana que quer ser africana, reduzindo a análise de sua herança alimentar aos ingredientes tidos como étnicos e aos aspectos técnicos de seu preparo. O que, aos olhos dos autores, por si mesmos não seriam suficientes para se definir a identidade africana da culinária baiana.
Os autores também questionam a ideia de nação e consequentemente de cozinhas regionais, pontuando que “a construção de uma ‘cozinha’ é um feito cultural bastante complexo, pois supõe que uma nação possa, em determinado momento, se olhar ‘de fora’, observando o conjunto dos modos de fazer, interagir e simbolizar ligados ao comer e dizer, desse conjunto, que se trata de algo ‘nosso’” (p. 34). Soma-se a isso a pouca visibilidade da cozinha popular. Assim, a obra de Querino buscava “a restauração do negro como personagem social a se considerar no desenho da nação livre” (p. 38).
No quinto capítulo, “A Bahia em que Manuel Querino viveu”, e no sexto, “A trajetória de vida de Manuel Querino”, são apresentadas a Bahia de Manuel Querino e sua trajetória pessoal, mostrando a importância de seu trabalho e de seu legado. A Salvador da época tinha “particularidades rurais” que contrastavam com a modernidade dos elevadores, bondes, hotéis, confeitarias, praças, eletricidade e outros equipamentos urbanos. Nesse cenário, a valorização da culinária ganhou força através de livros de receitas, bem como de cardápios e manuais. Tratava-se em geral de uma cozinha basicamente copiada da culinária francesa. Era característica de numa cidade que, ao passo em que se expandia, mantinha enormes contrastes sociais e cujas autoridades reprimiam até a alimentação popular. Cidade onde o poder público voltava-se com “uma preocupação excessiva para a comida de rua, em particular dos pretos, que era vista como suja e gordurosa” (p. 46).
Foi nessa Bahia que nasceu Manuel Querino, em 28 de julho de 1851, em Santo Amaro da Purificação, área de produção açucareira do Recôncavo baiano. “Filho de negros livres” (p. 50), sem dinheiro ou posses, muito cedo ele foi morar em Salvador na companhia de seu tutor, Manoel Correia Garcia. Na Escola de Belas Artes, formou-se como desenhista. Funcionário público, exerceu cargos na Diretoria de Obras Públicas e na Secretária de Agricultura. “Não estava entre os mais pobres de Salvador” (p. 52). Foi político e ativista importante das causas operárias, aproveitando-se de sua posição de vereador. Também foi membro da Sociedade Protetora dos Desvalidos e da Irmandade do Rosário dos Pretos, onde sua participação foi “confusa”, com entradas e saídas ao longo de sua vida. Importante também dizer da profunda relação de Querino com a religião afro-baiana, como apontam os autores, o que lhe permitiu divulgar em seus escritos informações que ninguém mais conseguia obter. Essa relação, para além do livro A raça africana e seus costumes na Bahia, também se faz visível na sua obra sobre a culinária baiana. Analisando a trajetória de Querino, os autores compreendem não só o percurso de um homem negro, mas as várias faces do intelectual e do homem ordinário, ambos a permitirem a consagração de sua obra.
No capítulo seguinte, “A modernidade e a tradição em Manuel Querino”, é analisada a participação do baiano nas discussões sobre a presença do negro na formação da sociedade brasileira. Ele defendia que os hábitos e costumes africanos foram fundamentais na formação da sociedade brasileira. Ao descrever os jantares, ressaltava os hábitos à mesa de grupos populares. Por outro lado, as mesas abastadas tinham como “fetiche” uma cozinha internacional, que refletia a modernidade na periferia e cujo ponto alto seria um menu escrito em francês. Aqui um parêntese: esse fetiche fora próprio de outros estados brasileiros também, especialmente quanto à culinária francesa, entre meados do século XIX e primeira metade do século XX.
No capítulo “Notas sobre os formadores da culinária baiana” são discutidas questões que envolvem os discursos de formação da culinária baiana. Dória e Bacelar salientam que “ainda se sabe muito pouco sobre a história da comida baiana”, em grande medida devido ao processo colonizador que “esmagou” tal cultura alimentar (p. 87). Eles dizem ser fundamental que os sistemas alimentares sejam lidos como são: “dinâmicos e abertos mais ou menos às inovações, onde, por um lado, o colonizador impunha a sua cozinha, inclusive com a transplantação de vários produtos, por outro, apropriava-se do que a natureza podia oferecer, acrescida da tecnologia e gosto das populações indígenas” (p. 103). No que tange aos contributos africanos, chamam a atenção para se pensar a partir dos produtos da culinária africana. Assim, “percebe-se que os produtos que vingaram na culinária baiana tiveram as sementes ou raízes trazidas da África e produzidas aqui mesmo, como já citados: inhame, quiabo, feijão-fradinho e arroz-vermelho” (p. 112). Também fazem um mapeamento dos alimentos consumidos e de consumo africano, como azeite de dendê, pimentas, milhos, feijões, inhame etc.
Em relação à dimensão religiosa dos alimentos, os autores apontam como os africanos “incorporaram à culinária baiana, não a comida de santo em si, privativa dos terreiros. […] Mas, é difícil dizer de onde vieram os pratos conhecidos como de origem africana” (p. 124). Lembram a dificuldade apontada por Nina Rodrigues para salientar as origens dessa cozinha. Para eles, “poucas iguarias de origem africana se mantêm em Salvador, assim não passa de ficção ou no máximo hipótese, falar em culinária africana na Bahia, muito menos identificar o conhecido como apenas de elementos da alimentação nagô. E se não gostarem do que dizemos, vão se queixar a Querino” (p. 132). Mas terminam por afirmar que “existe, sim, na Bahia, uma culinária afro- -baiana do povo-de-santo, restrita aos seus fiéis. Mas, também miscigenada com elementos africanos, europeus e baianos” (p. 133). Discutem ainda a relação entre ladinos, crioulos e mestiços, e destes com a comida. Discutem a relação entre a cozinha do sertão e a da capital, ressaltando como os produtos do sertão não eram bem vistos em Salvador, pois eram tidos como “comidas em sua maioria de gente sem grandes recursos, cozinha sem nenhum status e nobreza. Coisa de Tabaréu, como eram vistos depreciativamente os que vinham do interior da Bahia” (p.139), tidos, enfim, como alimento dos sertanejos apenas. Essa cozinha popular não teria espaço entre as elites, já que nas camadas mais altas as comidas tidas como internacionais eram símbolo de distinção social. Nessa parte os autores também analisam, além da francesa, as influências de outros povos, como os imigrantes italianos, alemães e outros.
No último capítulo, “A Arte culinária na Bahia de Manuel Querino – sobre as edições”, são analisadas as edições da obra de Querino. É uma das partes mais saborosas do livro por ser justamente a que fala das receitas, onde cada receita/prato apresentada por Querino é analisada com maestria, segundo a conjuntura específica à sua compreensão. Aqui os autores discutem também o que dizem os prefácios escritos por intelectuais para as edições da obra de Querino, que ora reconheciam o mérito de Querino, ora eram eivadas de preconceitos. Por fim, na conclusão, os autores reafirmam a importância de se ler a obra de Querino.
Encerrando esta resenha, duas coisas podem ainda ser ditas: a primeira, o diálogo com a historiografia da alimentação, que acabou em alguma medida faltando no livro. Tanto no que diz respeito aos livros de cozinha, culinária regional e popular, quanto às receitas com seus ingredientes e técnicas e suas leituras no que tange às incorporações e mestiçagens alimentares. Inclusive leituras sobre a relação entre a comida e a escrita das palavras, bem como as possíveis interpretações a partir dos ingredientes, técnicas de preparo e as origens das receitas. É verdade que os autores reproduzem as receitas de Querino e as analisam, mas, creio, ficou faltando ir além. Na historiografia tem sido corrente o debate sobre como a análise das receitas é importante para perceber influências, como nos aponta Laurioux: “O estudo minucioso de receitas é muito útil ao historiador da cozinha, desde que ele separe bem seus diferentes níveis: o título da receita […], os produtos utilizados e por fim os sabores, as cores e os cheiros que deles resultam”. E assim, “os termos que o compõem permitem identificar heranças e evoluções”.7 Aliás, é possível pensar essas influências pelos nomes das receitas, suas técnicas e ingredientes. No Pará, Salles enfatizava que “a palavra como unidade linguística, elemento básico da comunicação cultural, suscetível, cada unidade, de funcionar como macrorreferência, torna-se possível medir por meio dos vocábulos a intensidade da contribuição do negro”.8 Portanto, a língua como “produto social” permite visualizar influências alimentares, insumos e técnicas de preparo dos alimentos. Deixar isso de lado é de certo modo ignorar o protagonismo africano e seus saberes.
Outro aspecto que penso estar fora de lugar é quando, fazendo uso da linguagem coloquial, se afirma o seguinte: “vindos como escravos, óbvio, não ‘carregavam’ a sua cozinha. Tem histórias que nos fazem rir para não chorar, como a de que os africanos traziam a ‘comida’ escondida nos cabelos. Mas, isto é muito simplista diante da dinâmica do tráfico de escravos e da escravidão na Bahia” (p. 111). Judith Carney diz o contrário: “todo grão que resta de uma viagem de escravos podia potencialmente servir de sementeira para cultura”. E, ainda: “As minhas entrevistas com quilombolas nos estados brasileiros do Amapá, Pará e Maranhão, fazem eco daquilo que o botânico francês André Vaillant escreveu em 1938. Enquanto recolhia arroz das comunidades quilombolas ao longo da fronteira do Suriname e da Guiana Francesa, foi-lhe informado que as mulheres escravas tinham trazido arroz da África escondido nos cabelos”.9 Embora seja possível pensar diferente.
Enfim, Manuel Querino é fonte importante de debate e neste sentido a leitura do livro aqui resenhado é relevante para os pesquisadores da temática. Mas, deixo vocês com a intuição de que, onde quer que ele esteja, estará feliz com seu legado.
Notas
1 Jorge Amado, Tenda dos milagres, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 23.
2 Paloma Jorge Amado, A comida baiana de Jorge Amado ou o livro de cozinha de Pedro Archanjo com as merendas de Dona Flor, São Paulo: Panelinha, 2014, p. 30.
5 Querino, A arte da culinária, v. 1, p. 23.
6 Querino, A arte da culinária, v. 1, p. 19.
7 Laurioux, “Cozinhas medievais” in Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (orgs.), História da alimentação (São Paulo: Estação Liberdade, 1998), p. 451.
8 Vicente Salles, Vocabulário crioulo: contribuição do negro ao falar regional amazônico, Belém: IAP, 2003, p. 20.
9 Judith A. Carney, Arroz negro: as origens africanas do cultivo de arroz nas Américas, Bissau: Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas, 2001, pp. 245-246.
Resenhista
Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo – Universidade Federal do Pará. https://orcid.org/0000-0002-1481-9274
Referências desta Resenha
DÓRIA, Carlos Alberto; BACELAR, Jeferson. Manuel Querino: criador da culinária popular baiana. Salvador: P55 Edição, 2020. Resenha de: MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. O legado de Manuel Querino para a história da alimentação. Afro-Ásia, n. 64, p. 760-767, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]
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