Insubmissas lágrimas de mulheres | Conceição Evaristo
São alarmantes as estatísticas que contabilizam mulheres negras agredidas e mortas por seus parceiros e travestis, pessoas trans e lésbicas vitimadas por suas opções sexuais e ou escolhas de gênero.1 A travesti Dandara dos Santos, torturada e assassinada por mais de quatro homens que filmaram toda a ação e a postaram em redes sociais é exemplo do sentimento de impunidade e a desumanidade desse tipo de crime. 2 A mulher, negra, lésbica, Luana dos Reis, que faleceu após ser espancada por três policiais homens em São Paulo, depois de se recusar a abrir as pernas no ato de uma revista, diz da conivência estatal com tais crimes. 3
É nesse Brasil que se publica a segunda edição do livro Insubmissas lágrimas de mulheres, primeira coletânea de contos de Conceição Evaristo. A autora nasceu em 1946, em Belo Horizonte, Minas Gerais, é doutora em Literatura Comparada, pela Universidade Federal Fluminense, e consagrou-se no cenário literário de países pós-coloniais (Brasil, EUA entre outros) como uma escritora dedicada a escolhas estéticas que apontam armas para pensar a mulher e/ou o corpo feminino nessas estruturas histórico-sociais de opressão e violência. Vale o que diz Simone Teodoro Sobrinho, que contos são, para Conceição Evaristo, um gênero literário de primeira intimidade.4 De fato, ela estreou sua carreira literária com a publicação de contos nos Cadernos Negros, na década de 1990.
Insubmissas lágrimas de mulheres (ILM) imprime desde o título um campo semântico de força feminina a partir da premissa da ressignificação da dor. As palavras lágrimas e mulher, que num acionamento clichê pode ser lido como melancolia e fragilidade, são, nesse caso, agregadoras de força positiva e de resistência. A autora traz ao título a palavra insubmissas em ação de giro de chave que abre novas possibilidades de leituras para o feminino. O livro pode ser tomado como um bloco de força, pelas temáticas levantadas, e como um suspiro dos tempos, pela escolha de uma voz altiva de uma narradora oral.
As personagens são apresentadas como mulheres vivas, que contam suas próprias experiências para uma voz narrativa que traduz para leitoras e leitores o que ouviu e/ou percebeu de suas andanças por aqueles corpos femininos. Essas manobras estéticas escolhidas por Evaristo sugerem um ato de escrever como ação de amor por si/mulher negra.
Belo Horizonte, cidade natal da escritora, tem sido ponto de partida no cenário artístico brasileiro de significativos trabalhos que têm pensado e elaborado esteticamente reflexões sobre o estar-vivo do corpo de mulher negra. A literatura de Conceição Evaristo é exemplo disso. Do mesmo modo, temos a peça Vaga Carne (2016), da dramaturga, atriz e diretora Grace Passô, também de Belo Horizonte, texto que apresenta uma voz como personagem principal e o corpo de uma mulher negra como o cenário. Conjunto de ideias e imagens que marcam proximidade com a estrutura narrativa de Conceição em ILM, livro em que cada conto é uma voz que diz ter ouvido aquela história ali narrada de uma mulher.
A escritora divide sua coletânea em treze narrativas que se dão em diferentes núcleos familiares. Cada caso funciona como uma célula de agressão e violência, de destruição e recomeço. É da família que parte a maioria das violências narradas nos contos. Agressão doméstica, violência sexual de menor, estupro “corretivo” e injúria racial são temas que permeiam as histórias apresentadas e que contam as relações familiares das personagens. É nessa conjuntura que o livro apresenta mulheres bravas e a favor de si. Crentes de suas próprias valias. Personagens que enfrentam a sociedade. De modo didático, Evaristo ensina que uma mulher a favor de si pode ser uma mulher contra a família. Família, na perspectiva de um grupo de pessoas submetidas à jurisdição de um patriarca. E as narrativas da autora reescrevem: um patriarca é um pai. E ressaltam: um pai é um homem. E alertam: o pai pode ser o agressor.
Assim, a cada narrativa uma mulher agredida vai riscando sua dor e o conto vai funcionar, esteticamente, como um rasgão conceitual na ideia de família. Ao ler cada história é como se abríssemos e deixássemos viver uma mulher, uma lésbica, uma filha violentada, um casal interracial, um desejo negro de liberdade. Nesse livro, Evaristo desautoriza a “ordem e o progresso” de um padrão/brasão de família, apresentando vozes de mulheres que constituem outras famílias, outras vivências e realidades. A escritora elabora uma literatura em defesa da vida de seus próximos. Nesse jogo, escrever é amar a si.
Para a leitura de ILM é preciso compreender que Evaristo produz literatura a partir de um procedimento estético deliberado de aproximação entre o viver e o escrever. A escritora busca nas formas da oralidade um campo de encruzilhada que melhor dê conta desse ato de roçar voz/letra, corpo/fala, vida/literatura. Sua literatura não separa arte de realidade, ela escreve a partir de experimentações do processo. Ação que Evaristo denomina “escrevivência”. No mesmo ano de lançamento dessa segunda edição de ILM foi publicado o livro Escrevivências: identidade gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (2016, Idea), que amplia e consagra a estética de “escreviver” elaborada pela escritora mineira no conjunto de sua obra, ou seja, a literatura como escrita de vida. Escrever como ação de traçar mapas para caminhos de si mesma – mulher e negra.
ILM traz histórias de mulheres que lidam com a solidão como espaço necessário para sua (auto) formação. Independentemente das histórias e/ou experiências apresentadas por cada mulher, ao final de cada conto elas estão sozinhas, apenas em companhia da voz. O estar só — em companhia de uma voz — é apresentado como espaço de produção de ausculta de si e de outrem.
Os contos são intitulados com nomes femininos. A autora não apenas assim nomeia cada enredo, mas cada caso é exposto com um nome que serve de orientação à leitura, ao mesmo tempo em que homenageia as personagens envolvidas. Antes dos contos, o livro traz um enunciado, a voz da narradora apresentando ponderações sobre o que vamos ler na sequência. Ali, Evaristo explana com brevidade o seu modus de escreviver, sua “escrevivência”. Não digo que o livro seja uma escrita autobiográfica, digo que é um livro de instauração de si — e compreendemos “si” como signo-ferramenta que fala da instauração autoidentitária de uma mulher. Conceição Evaristo deixa sua letra viver em liberdade.
Nos contos, mesmo antes de todas as letras da narrativa se completarem, os títulos são como anúncios de estranhamentos, nomes de mulheres, nomes farpados – tanto são fortes como ferem. Ferem na linguagem, no estranhamento da ordenação e conexão dos nomes com os sobrenomes: “Aramides Florença”, “Natalina Soledad”, “Shirley Paixão”, “Adelha Santana Limoeiro”, “Maria do Rosário Imaculada dos Santos”, “Isaltina Campo Belo”, “Mary Benedita”, “Mirtes Aparecida da Luz”, “Líbia Moirã”, “Lia Gabriel”, “Rose Dusreis”, “Saura Benevides Amarantino”, “Regina Anastácia”. São nomes farpados, cada um traz/deixa um arranhão sobre o que poderá ser seu enredo. Em “Aramides Florença”, o prefixo aram(e) é risco de dor, e flor do sobrenome é indício do nascimento, semente — o germe pode ser ponderado ainda como asco, posto que essa mãe, quiçá agredida pelo marido, gerou um filho/homem/verme que poderá um dia agredi-la.
Aramides Florença buscava ser o alimento do filho. E, literalmente, era […] A vitória sempre pertencia ao pequeno. Entretanto, nem sempre fora assim, antes havia a figura do pai por perto (p. 10).
“Natalina Soledad”, diz do nascimento de uma solidão, da instauração de si a partir do viver e do abandonar a própria história, renomeando-se. Ou ainda, “Shirley Paixão”, no sobrenome da personagem pode ser acionado, pela narrativa, a realização da paixão como conceito, logo, podemos ir para esse texto perguntando: qual paixão terá cometido essa mulher?
Assim, nos contos, as mulheres tituladas vão se revelando, “Adelha Santana Limoeiro”, a Santa Ana, “a santa velha” (p. 35), a que acompanha o falecimento de quem foi seu marido/o macho. A mulher velha que se pacienta na morte do outro, pela espera e realização de sua liberdade. Limoeiro, “aquela que conhece o limo, a lama, o lodo onde estão os mortos. Santana, Nanã” (p. 36).
Todo conto de ILM é antecedido de uma introdução estrutural. Cada início revela o nome da personagem e fala dos enredos que serão apresentados. Histórias encenadas em família, todos os contos tratam de temas massificados em estatísticas e apontam situações de machismo e racismo. Agressões físicas contra mulheres, traições, crianças sequestradas para adoção, depressão, autoflagelação, suicídio, doenças emocionais e psíquicas, racismo escolar, são situações ilustradas e denunciadas nas narrativas. A cada conto é como se a narradora puxasse a personagem para a saúde, para a vida. Aquele corpo torturado e silenciado pela violência doméstica é ouvido com paciência e cuidado. As personagens desse livro querem viver.
Nessa sua primeira coletânea de contos, Conceição Evaristo reafirma o procedimento comum em sua literatura: a oralidade utilizada como gancho metodológico para a ação de narrar. O espaço das narrativas e os casos femininos estão nas cenas, nos corpos de cada conto e o desenlace é a coragem (de vida e de morte/para a vida e para a morte) de cada personagem. Desse modo, a escritora instaura suas personagens, mulheres negras, no campo do complexo. Na historiografia da literatura brasileira, comumente, vemos personagens que representam mulheres negras serem apresentadas de modo superficial e estereotipadas. Seguindo na contramão desse modelo, ILM conta de mulheres negras em posse titular de sua própria história. São personagens que questionam e/ou provocam incômodo e mau-gosto em lugares de viver racistas e machistas. Dessas personagens ouvimos vozes, sabemos de seus desejos, de suas raivas, dores e amores. As acompanhamos em suas lutas de quebra e (re)construção familiar.
E assim, na obra de Evaristo, os lugares comuns para pensarmos a mulher são subvertidos, por exemplo, no conto “Saura Benevides Amarantino”, em que ouvimos a voz em liberdade de uma mãe que tem, na narrativa reveladora e complexa, o espaço de dizer que não ama uma filha. O machismo constrói imagens femininas que impõem modelos uniformes sobre todos os desejos e expectativas de uma mulher-mãe.
Ninguém entendia que eu odiava aquela menina. No ato de amamentá-la, eu sempre desejava que o meu leite fosse um mortal veneno (p. 122).
Nesse conto, Evaristo nos oferece a história de uma mãe em relação de complexidade com a maternidade. Essa mulher que fala da dor, da incompreensão alheia para com o seu desgostar de uma filha, no mesmo conto é perfil de mãe que ama outros filhos. Ou seja, numa mesma narrativa ela ocupa diferentes lugares de maternidade.
Em todos os contos, Evaristo mantém a voz viva e firme de uma narradora que colhe, escuta, costura, escreve a partir da leitura do outro. Os enredos, chapados na letra de uma escrita literária rezada por uma tradição da escrita e leitura interna a si parecem esconder o desejo de vida presente nos contos da autora. A literatura de Conceição Evaristo quer libertar a personagem, a mulher, especialmente a negra, da representação literária linear. Suas personagens possuem vida e querem verticalidade – anseiam pelo encontro com o leitor. Querem existir como corpos-personagens complexos que são. O fazer uso de elementos da oralidade para iniciar cada texto escrito é uma estratégia estética de lascar a palavra com uma ação de escreviver.
ILM é um livro de coragem no sentindo de autoafirmação de identidades femininas negras. O folhear de suas páginas há que ser, também, corajoso. É no tempo da vida e dos vivos que o lemos. Esse livro traz a leitura histórias de diferentes mulheres que poderiam quedar silenciadas no incômodo e violento apagamento das injustiças sociais. Roseli dos Reis, irmã de Luana dos Reis, disse na Câmara de Vereadores de Ribeirão Preto/SP,
Minha irmã foi brutalizada, ela foi arrebentada literalmente, ela foi tratada como a gente não trata ninguém, nem um cachorro, nem um tecido que a gente não usa mais e ela era um ser humano. 5
Conceição Evaristo escreve (a) fiando Roselis, Luanas e Dandaras. Insubmissas lagrimas de mulheres é um livro, costurado pela estética da escrevivência, que merece sua leitura e audição. O que essa escritora quer é ampliar vozes que correm o risco de a qualquer virada de página quedarem silenciadas. O que literatura como a realizada por este livro faz é oferecer linha para que esses tecidos continuem valendo enredo.
Notas
1 Segundo fonte do governo brasileiro, “O Brasil ocupa a incomoda 5ª posição em ranking global de homicídios de mulheres” e o feminicídio se agrava quando são mulheres negras. http://www.brasil.gov.br/defesa-e-seguranca/2015/11/mulheresnegras-sao-mais-assassinadas-com-violencia-no-brasil. Acessado em 08/07/2017.
2 https://www.bbc.com/portuguese/bra-sil-39227148. Acessado em 08/07/2017.
3 https://ponte.org/a-historia-de-luana-maenegra-pobre-e-lesbica-ela-morreu-apos-ser-espancada-por-tres-pms/ Acessado em 08/07/2017.
4 Simone Teodoro Sobrinho, “A violência de gênero como experiência trágica na contemporaneidade” (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, 2015).
5 https://www.youtube.com/watch?time_continue=663&v=Uoo5mfakXOk. Acessado em 08/07/2017
Resenhista
Luciany Aparecida Alves Santos – Universidade do Estado da Bahia. E-mail: luciany.aaparecida@gmail.com
Referências desta Resenha
EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. 2a ed. Rio de Janeiro: Malê, 2016. Resenha de: SANTOS, Luciany Aparecida Alves. Bravas mulheres a favor de si. Afro-Ásia, n. 55, p. 289-294, 2017. Acessar publicação original [DR/JF]