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Imaging Culture: Photography in Mali/West Africa | Candace Keller

Aqueles que se interessam por fotografia africana contemporânea, e mesmo os que gostam de fotografia contemporânea sem outro adjetivo, já devem ter tido contato com as obras de Seydou Keïta (1921- 2001) e Malick Sidibé (1936-2016). Ambos malineses, mestres da fotografia preto-e-branco em estúdio, foram “descobertos” por curadores e colecionadores europeus no início da década de 1990. Ao longo dos anos que se seguiram participaram de exposições, receberam prêmios e seus trabalhos se tornaram ícones no mercado internacional de arte.

Candace Keller é professora associada de Arte Africana e Cultura Visual no Departamento de Arte, História da Arte e Design da Universidade do Estado de Michigan (EUA). Também dirige o Arquivo da Fotografia Malinesa (http://amp.matrix.msu.edu). Em Imaging Culture: Photography in Mali, West Africa (Visualizando a Cultura: Fotografia no Mali, Africa do Oeste),1 ela se propõe a abordar a produção dos fotógrafos malineses de um ponto de vista diferente, fugindo dos cânones da estética ocidental. Para isso, mergulhou na cultura do país, onde tem trabalhado ininterruptamente desde 2002. Em sua pesquisa entrevistou oitenta fotógrafos, tirando o foco de Seydou Keïta e Malick Sidibé, embora a obra desse último, de quem foi amiga, ocupe um espaço considerável no seu livro. Keller busca entender as práticas, a linguagem visual, as inovações locais e o contexto cultural específico no qual as imagens foram criadas.

Ela inicia o livro com um breve histórico da fotografia no atual Mali. A técnica chegou à então colônia francesa, na década de 1880, pelas mãos dos colonizadores. No início do século XX já havia fotógrafos profissionais em diversas cidades, mas eram todos europeus ou libaneses. Foi apenas no final da década de 1930 que africanos começaram a trabalhar como fotógrafos, em estúdios ou de maneira itinerante. Um mercado local para a fotografia desenvolvera-se na colônia. As elites urbanas, e mais tarde as classes médias, usavam essa tecnologia como “um poderoso meio visual de autoexpressão” (p. 6). Foi nos retratos que a população buscou conquistar capital simbólico e manifestar concepções locais de modernidade.

Keller observa um aspecto interessante da profissão: como a fotografia foi originalmente importada da Europa e se tornou um fenômeno predominantemente urbano, sua prática atravessou as categorias étnicas e culturais. No Mali ainda são comuns divisões étnicas e ocupacionais (também chamadas de castas), que dificultam o trânsito profissional. Refletindo a diversidade da população malinesa, os fotógrafos e sua clientela são multiétnicos e transculturais.

Ela acompanha a história recente do Mali focando a independência (1960), o período de euforia e expectativas que se seguiu e os dois primeiros governos do novo país. Modibo Keita (presidente de 1960 a 1968), socialista, pan-africanista e não alinhado, implantou a coletivização no campo e estatizou as empresas de distribuição e comercialização de bens essenciais, principalmente alimentos. Após 1964, o Mali enfrentou períodos de carestia e Modibo Keita começou a perder o apoio popular. Em 1968 seu governo foi derrubado por um golpe militar liderado por Moussa Traoré, que governou de forma ditatorial o país por 23 anos (1968-1991).

Na primeira parte do livro, Keller intercala seu relato desse período histórico do Mali com entrevistas de fotógrafos contemporâneos.

Na segunda parte a autora, ao buscar entender as dinâmicas que impregnam as fotografias por meio dos significados locais, coloca os fotógrafos e seus clientes como agentes ativos na construção de identidades. Ela “considera as fotografias em termos de fadenya e badenya, que são os principais conceitos derivados das teorias locais de ação social e que estão intimamente ligados aos valores estéticos” (p. 179). Uma seção importante do livro é dedicada ao tema de fadenya e badenya e a maneira como essas expressões aparecem nas imagens de dezenas de fotógrafos malineses. Keller explica:

Como todas as teorias e conceitos filosóficos, badenya e fadenya englobam uma teia complexa de significados que pode ser entendida de diversas maneiras, dependendo do contexto e do intérprete. Derivada da prática e conceito culturais da poligamia, badenya traduz-se literalmente como “maternidade” e é uma ideia que faz referência à camaradagem, lealdade e respeito entre os filhos da mesma mãe e do mesmo pai. [… ] Fadenya se traduz como “paternidade” e é um conceito que faz referência à competição, rivalidade, ciúme que muitas vezes ocorre entre irmãos que têm o mesmo pai mas mães diferentes (pp. 179-180).2

Embora sejam noções advindas do universo cultural mandê, fadenya e badenya fazem parte de uma identidade compartilhada por todos os malineses. Os valores que esses termos incorporam ecoam em indivíduos de muitos grupos étnicos.

Relacionando esses conceitos à prática fotográfica, Candace Keller escreve que fadenya, por exemplo, se expressaria nas imagens de jovens em que se realçam o caráter independente e o estilo pessoal. A vontade de ser desejado e invejado transborda nas fotografias, onde se mesclam cigarros e óculos escuros. Mulheres podem expressar atitudes fadenya com roupas e acessórios. Já badenya estaria presente nos retratos de grupos familiares ou de amigos, onde muitas vezes as pessoas usam roupas iguais para manifestar proximidade.

Keller trabalha também com os conceitos estéticos de jeya, claridade, e dìbi, obscuridade. Para os cidadãos malineses essas não seriam ideias estáticas, isoladas, massim princípios interdependentes. A autora acredita que nos retratos feitos pelos fotógrafos malineses as técnicas de iluminação, arranjos de posição e poses são pensadas em termos de jeya e dìbi. Jeya e dìbi, por sua vez, seriam o veículo para comunicar valores associados a fadenya e badenya.

Segundo Keller,

os ideais estéticos afiliados a jeya (claridade, estrutura e equilíbrio) são conceitualmente ligados aos valores associados a badenya (unidade, harmonia, cooperação). Dìbi se relaciona aos valores afiliados a fadenya, em que mistério, ambiguidade e obscuridade estão conectados a noções de influência individual, habilidade, vontade, força, poder e independência (p. 301).

Vemos aí o ponto central das ideias de Keller. Ela defende que sua leitura (a partir de valores relacionados a badenya, fadenya, jeya e dìbi) é a mais genuína interpretação desde uma perspectiva endógena e a que melhor permite analisar as fotografias malinesas. Voltaremos a isso.

Outro tema discutido por Keller é a equiparação que se faz, devido a posições sociais e profissão artística semelhantes, entre griôs e fotógrafos profissionais. Tanto os griôs quanto os fotógrafos precisam revelar o que há de melhor em seus clientes. O griô usa a palavra; o fotógrafo, a imagem construída por meio de iluminação, posturas e cenários. Há também o aspecto da História para o griô e para o fotógrafo. O griô também é chamado de “historiador oral” e trabalha com a memória e a imaginação. Os fotógrafos, como historiadores, guardam os arquivos de imagens que documentam mudanças na vida da pessoa e seus contextos.

O malinês Manthia Diawara, professor na New York University, escritor, cineasta e teórico da cultura, foi contemporâneo de Malick Sidibé. Em 2001, revendo o trabalho do fotógrafo com sentimento de identificação, Diawara escreveu The Sixties in Bamako: Malick Sidibé and James Brown, onde relata a juventude vivida no período pós-independência do Mali. Foi um momento repleto de otimismo, celebração e orgulho nacional. A atmosfera exuberante destilava euforia e esperança. Os jovens frequentavam bailes e ouviam música negra da diáspora. Malick Sidibé foi o grande fotógrafo que documentou aquele momento singular.

A visão de Diawara da fotografia malinesa desse período é bem diferente da de Keller. Como vimos, ela trabalha para entender a estética das fotografias malinesas a partir de valores endógenos, como badenya e fadenya. Já Diawara, que comenta o trabalho de Sidibé, e principalmente as fotografias feitas em festas, vê ali uma estética construída por um olhar voltado para a diáspora negra e o pan-africanismo. Ele chama de “cópia da cópia” o processo que leva Sidibé a “copiar” a estética das capas de vinis, vídeos e filmes de artistas afro-americanos, como James Brown. A juventude malinesa copiava esses artistas e era por sua vez copiada por Sidibé. Assim, sem nunca ter estudado fotografia, ele teria sido influenciado por grandes fotógrafos contemporâneos que ele via nas revistas e capas de vinis.

Nas fotografias que registram jovens vestidos com roupas copiadas dos artistas e dançando ao som de James Brown, Diawara vê uma geração de malineses que se abriu para o mundo, que também vivia a efervescência dos anos 1960. Mais ainda, ele avança para dizer que Malick Sidibé se “extroverte”, pois sua maneira de fotografar também se modifica depois de entrar em contato com a estética da diáspora.

Em seu livro Keller dialoga com o texto de Manthia Diawara, cita trechos, mas não dá espaço para suas ideias de “extroversão”.

Por ter se dedicado a encontrar e entender a lógica e estética locais presentes nas fotografias malinesas, principalmente de estúdio, Keller talvez não tenha se interessado em analisar as imagens “de reportagem”, como eram chamadas as fotografias feitas em festas e comemorações. No livro dela não chegam a 10% as imagens captadas fora de estúdio. Me pergunto se os conceitos (muito bem) trabalhados por Keller (fadenya, badenya, jeya e dìbi, por exemplo) seriam suficientes para fazer entender as intenções dos fotógrafos nas festas de jovens no pós-independência do Mali.

Independentemente de como se interprete, a fotografia malinense cresceu e se multiplicou. Mas na década de 1980 o negócio dos estúdios fotográficos começou a declinar, principalmente em Bamako. Desde 1985 a fotografia colorida passou a dominar, suplantando o preto e branco. Muitos já não sabiam revelar ou ampliar imagens. Todo o serviço pós-fotografia passou a ser feito por laboratórios com tecnologia estrangeira.

Em 1994 foi inaugurada uma bienal de fotografia em Bamako, capital do Mali, intitulada Rencontres de la Photographie Africaine (Encontros da Fotografia Africana). O objetivo era promover a convivência de fotógrafos de vários países do continente, estimular a troca de ideias e o debate, e realizar exposições. A iniciativa foi um sucesso e os encontros continuam a ocorrer até hoje.

Em 2004 foi criada, também em Bamako, a MAP ― Maison Africaine de la Photographie (Casa Africana da Fotografia), que funciona como conservatório, arquivo, espaço de exposições, livraria e escola. Novas gerações de fotógrafos já se beneficiam dessa estrutura.

Keller também participa desse movimento de preservação e divulgação da fotografia malinense. Seu excelente livro é apenas um dos ramos de seu trabalho. Paralelamente à atividade de pesquisadora, Candace Keller formou uma equipe e iniciou em 2011 um ambicioso projeto para digitalizar os imensos arquivos de fotógrafos malineses. Refiro-me ao Archive of Malian Photography (Arquivo da Fotografia Malinesa), do qual ela é diretora.

Hoje o web site http://amp.matrix.msu.edu nos oferece a possibilidade de visualizar cerca de 100 mil originais de cinco fotógrafos (Mamadou Cissé, Adama Kouyaté, Abdourahmane Sakaly, Malick Sidibé e Tijani Sitou), cujos negativos foram higienizados, digitalizados e guardados de forma correta. Ademais, todas as fotografias foram catalogadas e indexadas. É um trabalho gigantesco, de fôlego. E o resultado é surpreendente pela qualidade das fotografias, a variedade dos temas e das práticas sociais retratadas.


Notas

1 A palavra imaging é de difícil tradução para o português. Inicialmente um neologismo utilizado para exames médicos de imagem, entrou para o vocabulário com significado bem mais amplo. O termo pode se referir a técnicas de criação da imagem, por exemplo. Como não há equivalente em português optei por usar a palavra “visualizar”.

2 Um dos primeiros e mais interessantes textos em que badenya e fadenya são tratados é de Charles S. Bird e Martha B. Kendall, “The Mande Hero: Text and Context” in David C. Conrad e Barbara Frank (orgs.), Explorations in African Systems of Thought (Bloomington: Indiana University Press, 1980), pp. 27-35.


Resenhista

Daniela Moreau – Acervo África – São Paulo.


Referências desta Resenha

KELLER, Candace. Imaging Culture: Photography in Mali, West Africa. Indiana: Indiana University Press, 2021. Resenha de: MOREAU, Daniela. Fotografia no Mali (desde 1930). Afro-Ásia, n. 65, p. 707-712, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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