História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários | Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida, Ricardo Santhiago
A tentativa de compreensão e a elaboração da noção de “História Pública” são dois movimentos recentes dentro do campo historiográfico brasileiro, o que, no entanto, não significa que tal debate esteja ausente de outras iniciativas que tangenciam a construção do conhecimento histórico ao longo do tempo produzido no país – inclusive aquelas encabeçadas por sujeitos que não são institucionalmente reconhecidos como historiadores. O livro História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários lançado recentemente, no ano de 2016, segue este percurso que busca trazer à cena a reflexão da história e seus inúmeros públicos – considerando também a multiplicidade de significados desse último termo. Já na apresentação da obra é evidente o desejo de fugir de uma simplificação do que seria a História Pública, buscando assim constituir um campo de estudos que permita desenvolver esta concepção, inclusive, assumindo a sua multi e interdisciplinaridade.
Planejado a partir de contribuições recolhidas ao longo dos últimos 5 anos e tomando como marco a realização de um primeiro curso relacionado à temática1, o livro tem como organizadores três pesquisadores que estão aglutinados em torno do LABHOIUFF, e claro, em torno da Rede Nacional de História Pública2: Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago. Autores que, apesar de fazerem trabalhos acerca de temáticas diferenciadas, tentam nesse momento pensar estes temas em consonância com um espaço de discussão mais abrangente: o da História Pública.
Ao longo da leitura da obra se percebe este campo como um caleidoscópio de possibilidades. São inúmeros os objetos passíveis de serem abordados e que no próprio livro não puderam também ser esgotados, apesar do claro esforço dos organizadores em compor um panorama diverso daquilo que já foi produzido e pode ser relacionado a esta discussão. Em síntese, a publicação está dividida em seis diferentes eixos denominados: História Pública: Questões gerais; História Pública e o universo da criação; História Pública e as comunicações; História Pública, educação e ensino de história; Políticas públicas e políticas culturais; Debates no espaço público: construindo histórias. Importante ainda destacar que os textos não são somente escritos por pesquisadores da área da História, tendo contribuído também autores da área da comunicação, literatura, artes e educação.
Os capítulos, em sua grande maioria, são textos curtos que, como já afirmado anteriormente, tentam traçar um painel dos trabalhos, temas e debates relacionados à História Pública no Brasil e também em outros espaços fora do país. Na seleção destes percebe-se um cuidado em abranger o que Santhiago delineia como as quatro principais dimensões da História Pública: história para o público, história com o público, história feita pelo público e história e público (MAUAD apud SANTHIAGO, 2016: 90-91). É dentro destas dimensões que são abordadas no livro. Por exemplo, a conexão entre História Pública e artes visuais, discutida por Ana Mauad. Também sua relação com as narrativas cinematográficas/televisivas, com, inclusive, um balanço de trabalhos na área do cinema que encontram o campo da História Pública, como mostram os textos de Monica Kornis e Rodrigo Ferreira ou, ainda, a questão da canção unida ao ensino de história abordada por Miriam Hermeto. Outra temática candente: História e mídia na contemporaneidade, ou seja, como discursos sobre o passado aparecem nos meios midiáticos, por sua vez, apresentada por Marialva Barbosa.
Em relação propriamente à divulgação de produções em história, podem ser destacados dois textos. O primeiro de autoria de Lucchesi e Carvalho que aborda a questão da História Digital, com o exemplo do Café História, canal online, que permite refletir sobre o lugar dos meios digitais, do computador e da Internet na produção do conhecimento histórico, atualmente. E o segundo, o texto do estadunidense David Dunaway, que faz uma reflexão sobre o trabalho de difusão de entrevistas de história oral por meio do rádio.
Uma temática visível no livro, e que inclusive permite tangenciar diversos outros objetos e temas dentro do campo da História, é a questão do ensino de história. Dentro deste espectro, as discussões abrangem desde a “apropriação” ou “criação” de uma narrativa histórica própria à educação escolar como no capítulo de autoria de Everardo Paiva de Andrade e Nívea Andrade, passando pelo papel das diversas mídias no desenvolvimento do ensino escolar de história e na divulgação do conhecimento histórico, reflexão desenvolvida por Thais Fonseca , até chegar no texto de Fernando Penna Renata da Silva que aborda uma discussão importante no atual cenário político brasileiro: o movimento “Escola sem partido”. Todas estas entradas demonstram a necessidade de se pensar os rumos tomados pelos estudos históricos, as diversas formas e alcances da História no espaço público e o lugar do próprio campo da História Pública nestes embates.
Ainda, tangenciando o importante papel político exercido pela história, seja na formação de políticas públicas ou na preservação de bens culturais (materiais ou imateriais), merece destaque o quinto eixo desta seleção de textos, no qual aparecem com maior ênfase as repercussões efetivamente “políticas” de determinados discursos históricos. Por esse ângulo, o historiador aparece como um interlocutor nos processos de patrimonialização e na tentativa de cumprimento de direitos constitucionais. Como exemplos, o trabalho de Hebe Mattos e Martha Abreu que trata do reconhecimento do legado afrodescendente materializado na identificação dos Quilombos como patrimônio imaterial e os capítulos de autoria de Marta Rovai e Lia Calabre, que discutem os processos de patrimonialização de culturas populares congruentes ao desenvolvimento de certas políticas públicas. Tais textos demonstram o quanto a história pode interferir, ou melhor, contribuir para a construção de ações efetivas dentro do espaço público.
Na última parte do livro se encontram os textos com temáticas mais diversificadas. As discussões presentes nos textos de Beatriz Kushnir, Benito Bisso Schmidt, Jorge Ferreira e Adriane Vidal Costa passeiam pelos diversos espaços produtores e divulgadores do conhecimento histórico, passando pelos arquivos, exposições, biografias e pela figura do intelectual, num debate que tem como objeto o passado, mas é pensado sempre pela ótica do presente, da contemporaneidade em que estes passados emergem, temática que não é cara somente à História Pública.
Por fim, vale evidenciar os textos de autores internacionais que parecem entrar na seleção com o intuito de ampliar a própria discussão nacional. Michael Frisch, Linda Shopes, David King Dunaway e Daphne Patai, trazem reflexões diferentes, vindas de lugares institucionais distintos. O primeiro destes autores traz considerações sobre a questão da “autoridade compartilhada”, expressão já conhecida de pesquisadores brasileiros, sobretudo, aqueles que trabalham com a metodologia da história oral. Objeto pertinente para os que buscam construir histórias não somente para um público, mas em conjunto com seu “público”. O texto de Linda Shopes, por sua vez, tenta traçar um panorama entre as origens e o desenvolvimento da história oral e da História Pública nos Estados Unidos, quadro interessante para se refletir acerca da forma como ambos os campos são pensados também no Brasil, buscando suas especificidades e adensando os debates a eles intrínsecos.
Por sua vez, o texto de Dunaway – já citado – traz à cena a problemática da difusão do conhecimento histórico para além do texto escrito, uma questão que não é nova dentro do espaço historiográfico, mas que continua constantemente em debate. Finalmente, o capítulo apresentado por Daphne Patai – uma espécie de provocação – é um convite a refletir sobre o papel do intelectual acadêmico no espaço público e a repercussão dessa inserção naquilo que é produzido dentro destes espaços institucionais universitários.
De uma maneira geral, é possível perceber dois pontos recorrentes ao longo da publicação: difusão do conhecimento histórico e “usos do passado”. Duas noções muito presentes e que se mostram fundamentais para pensar a forma como vai se constituindo e se afirmando este campo. Assuntos que também são abordados em ensaio muito pertinente publicado no segundo semestre de 2016 por dois historiadores vinculados à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Caroline Silveira Bauer e Fernando Felizardo Nicolazzi (2016). Tal trabalho traz uma discussão acerca da função social do historiador, e também sobre a própria função social da história, recortes aparentemente coincidentes, mas que, segundo estes autores, fazem parte de reflexões distintas. Principalmente se pensarmos aqui pela ótica da História Pública, podemos perceber que a história não é “objeto de uso” exclusivo de sujeitos reconhecidos – por meio de seus diplomas e ferramentas teórico-metodológicas – como “historiadores”. A história também é produzida e utilizada por sujeitos ou grupos que não possuem essa “chancela” institucional, situação que, todavia, não invalida as narrativas históricas por eles produzidas.
Sendo assim, dentro deste panorama seria interessante que o debate a respeito da “função social da história” fosse deslocado para as “formas de uso” que os discursos históricos podem adquirir no espaço público, questão que vai além dos muros da universidade. Como mostra o livro aqui referido, o espaço universitário não é o único lócus de elaboração do conhecimento histórico e, ainda, é importante não esquecer, que não há como pensar a prática da história sem levar em consideração os sujeitos que a desenvolvem e o lugar social ou institucional ao qual pertencem. Ideias que, inclusive, conectam História Pública e História do Tempo Presente, dois espaços de reflexões historiográficos amplos e “flexíveis”, pois continuadamente repensados e questionados na atualidade. Assim como os “passados” estão reiteradamente sendo remodelados, as formas pelas quais estes mesmos podem ser veiculados publicamente também vão se modificando, bem como transformam o acesso público ao conhecimento histórico e a possibilidade, por parte deste mesmo público, de reconstruir e elaborar ele próprio suas narrativas históricas.
Enfim, a reflexão acerca da produção e da circulação do conhecimento histórico não é algo recente ao campo historiográfico, é um exercício já antigo. No entanto, sua relevância continua atual, especialmente num cenário onde as novas tecnologias e a internet modificam a forma como são tratadas as fontes de pesquisa (do seu arquivamento ao seu acesso), como as próprias pesquisas se desenrolam e, como naturalmente, serão compartilhados os saberes delas advindos. O livro História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários propõe, então, um espaço de debate e reflexão (e por que não, também, de idealização de horizontes) no qual diversas temáticas vão ao encontro de um campo maior: o da História Pública.
Notas
1 Realizado na Universidade de São Paulo (USP) no ano de 2011, o referido curso denominado Introdução à História Pública, se centrava em questões práticas relacionadas ao campo, por exemplo, como realizar a públicação de entrevistas de história oral.
2 Criada em 2012 com o objetivo de “refletir sobre a história pública, suas potencialidades e desafios, bem como de estimular a prática de produção do conhecimento histórico dirigido a diferentes públicos, com um enfoque interdisciplinar.” Disponível em: < http://historiapublica.com.br/?page_id=520 > Acesso em: 1 de fev. 2017.
Referências
MAUAD, Ana M.; ALMEIDA, Juniele R. de; SANTHIAGO, Ricardo (Org.). História Pública no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
NICOLAZZI, Fernando F.; BAUER, Caroline S. O historiador e o falsário. Usos públicos do passado e alguns marcos da cultura histórica contemporânea. Varia Historia, v. 32, n. 60, p. 807-835, set/dez 2016.
Resenhista
Karla Simone Willemann Schütz
Referências desta Resenha
MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (Org.). História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016. Resenha de: SCHÜTZ, Karla Simone Willemann. Tempos Históricos, v. 21, n.1, p. 521-525, 2017. Acessar publicação original [DR/JF]