Guayrá | Marco Aurélio Cremasco
Marco Aurélio Cremasco é um escritor paranaense, engenheiro químico de formação e professor da Faculdade de Engenharia Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Como escritor de literatura já publicou cinco livros de poesia: Vampisales (1984), Viola caipira (1985), A criação (1997), Fromlndiana e as coisas de João Flores (2000); um livro de contos: Histórias prováveis (2004); e um romance: Santo Reis da luz divina (2007), com o qual foi Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Prêmio Jabuti.
Seu livro mais recente, Guayrá, publicado em 2017 pela editora Confraria do Vento, é um romance histórico que lança luz sobre um período obscuro da história paranaense, o século XVII, que foi praticamente apagado da história oficial do Estado, um período em que a maior parte do território do atual Estado do Paraná pertencia à Espanha e era ocupada por inúmeras reduções criadas pelos jesuítas espanhóis nas margens dos rios Paraná, Paranapanema, Iguaçu, Tibagi, Ivai, Pirapó e Piqueri, e tinha alguns povoamentos importantes, como Ciudad Real de Guayrá, Vila Rica e Ontiveros.
Essas cidades e reduções foram destruídas pelos bandeirantes portugueses, os índios guaranis que nelas habitavam foram capturados ou mortos pelos invasores e esse imenso território, compreendido entre os rios Paraná, Paranapanema, Iguaçu e Tibagi, amargou um longo esquecimento e abandono que perdurou até o final do século XIX, quando finalmente começou a ser colonizado após o fim da Guerra do Paraguai.
Em Guayrá, Marco Aurélio Cremasco, utilizando-se de uma apurada pesquisa histórica e linguística, recria esse espaço-tempo quase esquecido da história paranaense por meio de uma linguagem poética, onde se mesclam termos das línguas indígenas com palavras portuguesas, construindo-se um amálgama entre ficção, história, mitologia e religião.
Paradoxalmente, dentro desse amálgama emerge o inevitável choque das culturas nativas com a cultura europeia. Os milhares de índios guaranis que habitavam o território do Guayrá viviam livremente de acordo com seus costumes e crenças e com a chegada dos jesuítas são impostos a eles outros valores religiosos e culturais, como os conceitos de céu e inferno, a proibição da poligamia e do canibalismo e a obrigatoriedade do uso de roupas. Depois, com a chegada dos invasores portugueses, eles ficaram literalmente entre a cruz e a espada: de um lado, os jesuítas espanhóis que queriam convertê-los ao Cristianismo e controlá-los por meio da religião; de outro, os bandeirantes portugueses que queriam escravizá-los e enviá-los para trabalhar em outras partes do território brasileiro.
Dessa forma, o romance narra o conflito ocorrido a partir de 1627 quando os portugueses estabelecidos na Capitania de São Vicente, liderados por Antônio Raposo Tavares e Manuel Preto, começaram a atacar as reduções jesuíticas do Guayrá para capturar índios que seriam enviados como escravos para trabalhar, principalmente, nas lavouras de cana de açúcar das capitanias do Nordeste. A invasão portuguesa para além dos limites do Tratado de Tordesilhas contaria com a conivência das autoridades espanholas por causa da união dinástica (1580-1640) entre Espanha e Portugal e também por conta de interesses de governantes locais, e em contrapartida teria a resistência ferrenha dos índios e jesuítas, liderados pelo padre peruano Antônio Ruiz Montoya.
No final de 1631, quando não havia mais possibilidade de permanência no Guayrá em razão da destruição da maioria das reduções e do cerco cada vez maior dos invasores, Montoya comandou a fuga épica de 12 mil índios sobreviventes das reduções de Loreto e Santo Inácio, por meio de 700 balsas através dos rios Paranapanema e Paraná em direção às reduções localizadas ao sul, no episódio conhecido como o “êxodo guairenho”. Devido às perdas ocorridas diante das dificuldades da missão, provocadas pela natureza e por um bloqueio realizado pelas autoridades espanholas no rio Paraná, apenas 4.000 guaranis conseguiram chegar ao destino, onde refundaram as reduções de Loreto e Santo Inácio nas margens do córrego Yabebyry.
Um pouco mais tarde, em 1638, os bandeirantes arrasaram a Ciudad Real del Guayrá e acabaram com o domínio espanhol no Guayrá, e em 1750 o Tratado de Madri estabeleceu novos limites entre Espanha e Portugal na América Latina, reconhecendo o território do Guayrá como português. Todos esses acontecimentos históricos são ficcionalizados no romance sob a ótica dos perdedores: os índios e os jesuítas espanhóis.
Desse modo, ao narrar um fato histórico sob a ótica dos vencidos, a utilização da História canônica serve tanto como base para o enredo do romance quanto para o seu questionamento e subversão. Nesse sentido, o livro pode ser classificado na categoria de novo romance histórico latino-americano, conforme a conceituação estabelecida por Fernando Ainsa (1991), que o caracteriza como um romance histórico que faz uma releitura crítica da História, cuja proposta impugna a legitimação instaurada pelas versões oficiais da História, suprimindo as deficiências da historiografia tradicional, conservadora e preconceituosa, dando voz a tudo aquilo que foi negado, silenciado ou perseguido pela História, fazendo com que não haja uma só verdade do fato histórico.
Nesse sentido, o romance ilumina esse período obscuro e muito pouco conhecido da história paranaense, mostrando a História sob o ponto de vista dos índios e jesuítas, em contraposição às historiografias oficiais brasileira e portuguesa, que tratam a expansão portuguesa na América do Sul comandada pelos bandeirantes como um ato heroico, omitindo o caráter extremamente violento que essa expansão teve, com milhares de índios escravizados ou mortos, e reduções jesuíticas e povoamentos espanhóis destruídos.
A intertextualidade com a Bíblia permeia todo o romance, que é estruturado em quatro partes divididas em pequenos capítulos, nomeados, em sua grande maioria, com termos indígenas ou termos bíblicos; os nomes das personagens indígenas ou mestiças são compostos quase sempre com um nome bíblico e um indígena, como, por exemplo, Miguel Atyguajé, Maria Kuarasy, Jesus Itawerá, Pedro Yvanhoty, Salomão Abaporanga, Moisés Jaguaçarovy, Davi Itatyba, Josué Tabacuera, Sansão Morujubycara, entre vários outros exemplos.
Mas o discurso intertextual entre o universo bíblico-cristão e o mitológico-indígena se mostra com mais força poética nos trechos em que há uma simbiose entre eles, como, por exemplo, no capítulo de abertura “Dança para Nhanderu”, onde o texto ficcional dialoga diretamente com a criação descrita no Livro de Gênesis:
Nhanderu despertou e percebeu que estava só no mar eterno. Emergiu. A noite O envolvia e não oferecia esperança ao dia. Nada havia. Deu verbo à solidão e a essa parte Dele nomeou Mba’ekuaá, a primeira luz, e dela a centelha que insinuou no Seu peito, a qual chamou Karaí. Chorou e preencheu a imensidão. Do soluço, o relâmpago e o trovão. Das lágrimas, a chuva e a essa parte Dele, Tupã. Dos olhos embaçados, a primeira neblina, transformada em brisa para confortá-Lo e a essa parte Dele, Jakaira, Criou Mba’ewerá e as palmeiras sagradas. Plantou quatro delas além dos grandes rios, por Ele também criados. (CREMASCO, 2017: 13)
Ou então no episódio do dilúvio de Nhanderu para destruição de Piratininga, inspirado no dilúvio bíblico:
Nhanderu viu que a maldade do mameluco era grande e era todo o pensamento que povoava o coração mestiço. Nhanderu arrependeu-Se de ter criado o mameluco e avisou que destruiria Piratininga. Nhanderu procurou por Guyrapoty e o alertou. – O fim está decretado, pois tudo está tomado pela violência do pecado. Faça uma balsa de peroba, Guyraypoty, do largo do Anhemby. Trarei o Yporu, o Dilúvio. Serão águas que afogarão a vida abaixo do céu. Contigo, Guyrapoty, farei um pacto: entrará na balsa com a primeira ta’ysy. Cada filho seu levará uma ta’ysy, assim como para cada ser vivente um macho e uma fêmea. (CREMASCO, 2017: 59)
Essa estratégia narrativa de entrelaçar o discurso bíblico com o discurso da mitologia, ou da cultura indígena, aparece também em outras partes do romance, como no interlúdio amoroso entre Itawerá e Potyporã em que há um diálogo explícito com o Cântico dos cânticos:
Tenha-me, Itawerá, embriaga-me feito ka’ayî – balbuciara Potyporã. Seu nome me consome e por isso os guerreiros a querem mais do que todas, Potyporã – diria Itawerá. Leve-me à rede, Itawerá, rápido. Entro, Potyporã, e a toco como o maino de Nhanderu. Abra-se. Existem vários motivos para querê-la. Seus olhos são peabirus para o Yvaga. Canto e danço como canto e danço para a vinda da brisa confortante de Jakairá. Nossa rede é feita de ramas de capim cidreira e as hastes que sustentam esta oga são aquelas que sustentam a Terra sem Mal. (…) Os seus cabelos são negros como fios da noite no Pikery, Os seus seios são macaquinhos medrosos que se confortam em minhas mãos. Faz-me delirar, Potyporã, Faz-me delirar. É água fresca que sacia, feito as águas do Paku. (CREMASCO, 2017: 151)
Outra passagem intertextual memorável se dá no devaneio do padre Primo Oscar, inspirado no Apocalipse de São João, diante da iminente destruição das reduções jesuíticas pelos bandeirantes:
Bem-aventurados os que ouvem as minhas palavras. Eu, Primo Oscar, dou graças e paz da parte daquele que foi, é e será. Eu, Primo Oscar, cura da Redução de São Sebastião do Paku, fui arrebato por Tupã. Vi sete velas de cera de mel do Paku. No meio delas, um encantador de cabelos brancos como o algodoal de Ytaúbusu. Os olhos chispavam feito chamas dos moquéns gualachos. A voz, como a junção de muitas águas, tais aquelas que despejam das Sete Quedas do Paranã. Trazia na mão direita sete estrelas, as sete kunhãgue de Eixu, como aquelas do pórtico da Redução de Sete Arcanjos do Kurimatãy. Da boca saiam flechas e o seu rosto era semelhante ao de Kuaray no amanhecer no Tyvajyva. Trouxe Sua mão direita sobre o meu peito. – Não tema. As sete estrelas são os setes rios do esquecimento, bem como as luzes que conduzirão a razão do Guayrá. Quem tiver juízo, que preste atenção ao que digo às margens do Paranapané.
(…)
O japepó guasu foi aberto. Guayrá tremeu. A lua encobriu o sol. As estrelas caíram tais quais goiabas quando o pé que as sustenta é sacudido pelo vendaval. Sete encantadores emergiram do japepó guasu. (CREMASCO, 2017: 239-241)
O delírio apocalíptico do padre ocupa todo o capítulo “Rios da revelação” da quarta parte do romance, A Terra sem Mal, que, na mitologia indígena tem o mesmo significado do Éden, o paraíso cristão.
Dessa forma, Guayrá é um resgate histórico, realizado por meio de uma requintada prosa poética, de um tempo quase esquecido da história do Paraná e por isso meio obscuro na memória paranaense. Num trecho do delírio de Primo Oscar, ele diz: “As reduções e as vilas espanholas foram encobertas e serão encontradas apenas na memória” (CREMASCO, 2017: 244). Desse modo, conforme afirma o próprio autor numa entrevista concedida ao jornal Folha de Londrina2: “O termo Guayrá traz consigo o significado emblemático de ‘aquele lugar resiste’”. Resiste ao esquecimento.
Não é difícil encontrar sinais dessa resistência. Basta se atentar nos principais rios paranaenses, cujos nomes são de origem indígena cunhados nesse tempo quase esquecido, e ainda nos nomes de muitas cidades paranaenses localizadas no território do antigo Guayrá, como: Apucarana, Tamarana, Mandaguari, Cambé, Jaguapitã, Itaguajé, Guarapuava, Goioerê, Ivaiporã, Ibaiti, Ibiporã, Tibagi, Paranavaí, Ubiratã, Sarandi, entre outros, que têm suas origens nas línguas dos povos indígenas que habitavam o Guayrá.
Esses nomes são como uma pequena ponta visível do iceberg da história do Paraná. Por baixo, há todo um universo rico e quase esquecido da memória paranaense, felizmente, revelado poeticamente por Marco Aurélio Cremasco neste romance.
Nota
2 Entrevista concedida a Marcos Losnak, publicada no caderno Folha 2 do jornal Folha de Londrina, de 21 de junho de 2017.
Referência
CREMASCO, Marco Aurélio. Guayrá. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2017.
Resenhista
Donizeth Santos – Graduado em Letras pela FAFIJAN, Mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Doutor em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Telêmaco Borba (FATEB.
Referências desta Resenha
CREMASCO, Marco Aurélio. Guayrá. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2017. Resenha de: SANTOS, Donizeth. Tempos Históricos, v. 22, n.2, p. 747-752, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]