Resenhamos esta coletânea, organizada por nós.
Esta gramática dos sentimentos políticos reúne textos destinados aos operadores sociais: assistentes sociais, médicos de posto de saúde, professores e psicólogos; bem como a profissionais do campo jurídico que abrange vários campos de atuação em políticas públicas (juízes, policiais, promotores, procuradores).
Resultante de longa trajetória de pesquisa, a maioria das formulações aqui contidas foram publicadas sob a forma de livros, artigos em periódicos científicos e anais de congresso.
Sua publicação sob a forma de uma “gramática” visa a preparação de material de divulgação de fácil acesso para uma das propostas possíveis de encaminhamento do debate sobre as políticas públicas. Tem em vista dirimir um certo afastamento dos operadores sociais da História, especialmente aquela que coloque a temática da família, da religião e dos costumes atravessada pelo acontecer social e pelo apagamento ideológico da memória dos subalternizados. Neste processo, canaliza sentimentos políticos que se implicam na ação profissional e política de cada profissional em suas áreas de atuação.
Os sentimentos políticos analisados no livro inspiram-se nas sugestões de Antônio Gramsci, pelo quanto implicam a ação política dos intelectuais de massa (operadores sociais) imersos na organização e reprodução da cultura política. Ao diferenciar os intelectuais tradicionais dos intelectuais orgânicos, Antônio Gramsci (GRAMSCI, 1982) intuiu o papel do clero e da religião na cultura política. Preocupou-se com as questões da subjetividade emaranhadas na ideologia e apresentou uma abordagem analítica fecunda para o encaminhamento das propostas e das práticas políticas voltadas para a transformação social.
Tem como pano de fundo a reflexão sobre a condição colonial da formação histórica brasileira (atravessada pela Escravidão e pela Inquisição) e seus efeitos no tempo histórico de longa duração que se fazem presentes na vida cotidiana do tempo presente.
O bordão que estamos utilizando nesta “gramática” é um aforismo socrático que colhemos no livro de Michel Foucault, “A Hermenêutica do Sujeito” (FOUCAULT, 2004, 3-24): “conhecimento de si, cuidado de si”. A pergunta que colocamos aos leitores: o modo como vemos a história do Brasil e a história da assistência social no Brasil influi na prática dos operadores sociais de diferentes formações profissionais que atuam em políticas públicas?
A publicação do livro inscreve-se em projeto de ciências humanas e socias aplicado, intitulado: (In)Tolerância e cidadania: instituições públicas e cultura política em Niterói, sob nossa coordenação, Ana Maria Motta Ribeiro (coordenadora) e Gizlene Neder (vice- coordenadora). Contou com a participação de Marcelo Neder Cerqueira, Pedro Henrique Cuco e Fhelipe Amorim. Marcelo Neder Cerqueira trabalhou na seleção, sumarização e preparação dos textos, visando a editoração de textos mais curtos e de fácil acesso para aqueles que trabalham na linha de frente nos cuidados da parte mais vulnerável da sociedade brasileira. Vale ressaltar ainda, a presença criativa, articulada e de convidados para palestras – entre acadêmicos e militantes populares intelectualmente brilhantes e formados pela experiência da opressão e da resistência.
O projeto resultou de parceria entre a Universidade Federal Fluminense, através do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF) e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFF), e do trabalho coletivo de dois grupos de pesquisa: Laboratório Cidade e Poder (LCP/ UFF) e Observatório Fundiário Fluminense (OBFF/UFF). O financiamento foi fomentado pela Prefeitura de Niterói, através de sua Secretaria de Assistência Social e Economia Solidária, no PDPA (Programa de Desenvolvimento de Projetos Aplicados), através da Fundação Euclides da Cunha da Universidade Federal Fluminense.
Chamamos a atenção do leitor para a imagem da capa da “Gramática”, que é muito sugestiva que fala diretamente sobre o tema do livro: “As mães” (Die Mütter), uma gravura de Käte Kollwitz de 1916.
O livro está dividido em duas partes.
A Parte I, intitulada “Assistência Social e História (a arte de governar bem uma cidade)”, contempla seis artigos: “Gramática dos sentimentos políticos: Impactos culturais sobre as políticas públicas de assistência social”, de Gizlene Neder; “Famílias: Tema central da grande política”, de Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira Filho; “As mil e uma famílias do Brasil: Conhecimento de si e cuidado de si”, também de autoria dos mesmos autores.
Outro artigo da Parte I merece um destaque, intitula-se “Modas (modos) de brancos e famílias de pretos: Imagens e concepções sobre família”, assinado por Gizlene Neder, que realiza uma análise da produção pictórica brasileira, cujo tema da família é comparece nas telas de pintores muito destacados. O capítulo coloca uma lente de aumento na expressão da cultura política através da produção pictórica de pintores brasileiros de repercussão nacional, que será tomada como o ponto a partir do qual a totalidade da sociedade brasileira pode ser analisada. São analisadas algumas representações sobre famílias, mulheres e alguns aspectos ideológicos da vida privada nos quadros de Alberto da Veiga Guignard (1896/1962). Estas representações são confrontadas com aquelas que aparecem na produção de Emiliano Augusto de Albuquerque e Melo, Di Cavalcanti (1897/1976), tentando alargar e verificar a polissemia numa mesma conjuntura histórica e político-ideológica. O período enfocado engloba desde as últimas décadas do século XIX até a década de 1950, considerado aqui como de transição à modernidade. Datam da década de 1930 os primeiros quadros analisados e de fins da década de 1950 os últimos. A partir da produção dos dois pintores brasileiros, podemos observar a ideia sobre família e mulheres. O capítulo analisa as seguintes obras: 1) Guignard oferece uma sequência de duas telas sobre um casal (“Os Noivos, 1937) e o mesmo casal com os filhos (1959); outra sobre um casal e filhos já crescidos (“Família do Fuzileiro”, 1938). Uma outra tela intitulada “Família de Negros”, de 1955. De Di Cavalcanti foi analisada a série que enfoca as mulheres afrodescendentes (nomeadas pela totalidade da crítica especializada, pela bibliografia de história da pintura no Brasil e pela grande imprensa em geral, de “série mulatas de Di Cavalcanti”); a tela intitulada “Moças com Violões” (1937) está destacada. Atente-se que o pintor não as nomeava como “mulatas” e sim “moças”.
Compõem ainda esta primeira parte os capítulos “Assistência, abandono ou repressão?” e “Ventres livres e cativeiro social”. Estes capítulos discutem as permanências culturais e afetivas da escravização em massa e seus desbordes para as políticas assistenciais.
A Parte II do livro intitula-se “História do controle social: Políticas para assistir e/ou políticas para reprimir?”
O artigo que abre esta segunda parte faz uma discussão potente sobre o filme Bacurau de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Intitula-se “Sentimentos políticos com Gramsci. O filme Bacurau para pensar a resistência e a assistência social pública fundada na História e Memória dos subalternizados”. A autoria é de Ana Maria Motta Ribeiro, Erika Macedo Moreira e Geovana Lara Clemente Rocha. A leitura do capítulo oferece ao leitor a experiência de aproximação com a utopia de articulação de resistência política e cultural popular às invasões. As autoras ecoam a frase-síntese desta resistência: “Bacurau, se for, vá na paz”.
Compõem ainda a segunda parte “Cidadania no Brasil no Pós-Abolição”, “As cidades e as exclusões” e “A cruz de cada um: Entre punir e ressocializar”, de Gizlene Neder. “Vulnerabilidade psíquica e Poder: sobre autoritarismo afetivo”, de Gisálio Cerqueira Filho e de Marcelo Neder Cerqueira completa a discussão sobre as escolhas políticas de controle social entre assistência social e repressão.
O capítulo que encerra a coletânea, “Quero todos meus filhos aos pés de Xangô com anel de doutor.” Uma reflexão crítica sobre a produção científica e seu diálogo com a ação social”, de Elizabeth Arruda, jovem bacharelanda em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense, é simplesmente um sopro de boas expectativas no futuro, anunciado pelas novas gerações de humanistas formados nas universidades públicas brasileiras. A discussão proposta pela autora é instigante e reveladora da necessidade e relevância de uma maior presença e reconhecimento objetivo de intelectuais negros e negras em nossas reflexões, currículos e leituras, se quisermos acurar nossa própria compreensão da sociedade brasileira. Finalmente, ainda anuncia a renovação, com força e brilho das lutas contra as desigualdades sociais.
Referências
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
Resenhistas
Ana Maria Motta Ribeiro – Professora Associada do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF). Doutora em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro/CPDA (2008). Pesquisa de Pós Doutorado sobre o Banditismo Social das Oligarquias Agrárias no Brasil, na USP (Coordenadora do Diretório de Grupo de Pesquisas do CNPq “Observatório Fundiário Fluminense -UFF. Linha de pesquisa: Conflitos socioambientais, rurais e urbanos. E-mail: anamribeiro@outlook.com http://lattes.cnpq.br/7866939328153617 . https://orcid.org/0000-0003-2761-3539
Gizlene Neder – Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (1987). Pesquisa de pós-doutorado na Biblioteca Nacional de Lisboa (1999) – Bolsista de Investigação da Fundação Luso-Brasileira para o Desenvolvimento dos Povos de Língua Portuguesa. Bolsista de Investigação para Estrangeiros da Fundação Calouste Gulbenkian, (Portugal, 2010). Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Pesquisadora do CNPq (Produtividade). Editora de Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, periódico do Laboratório Cidade e Poder (UFF). E-mail: gizlene.neder@gmail.com http://lattes.cnpq.br/7931858122399331 https://orcid.org/0000-0002-9550-015X
Referências desta Resenha
RIBEIRO, Ana Maria Motta; NEDER, Gizlene (Orgs.). Gramática dos sentimentos políticos: pensar a Assistência Social com a História. Rio de Janeiro: Mauad X, 2022. Resenha de: RIBEIRO, Ana Maria Motta; NEDER, Gizlene. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 175-181, jan./abr. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]
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