A coletânea Gênero & Interdisciplinaridade organizada por Luciana R. F. Klanovicz (2020) inaugura a coleção “Desenvolvimento Comunitário e Interdisciplinaridade”. O livro reúne investigações e experiências de diversas/os pesquisadoras e pesquisadores brasileiras/os de variadas áreas do conhecimento que adotam perspectivas interdisciplinares a partir das quais a categoria gênero é discutida.
O volume está dividido em 16 capítulos, além de sua introdução, que assumem premissas teórico-metodológicas distintas e, ao mesmo tempo, imbricam-se, dialogando entre si e problematizando as relações de gênero em diversos campos ou segmentos da sociedade brasileira – no meio rural, nos espaços institucionalizados das universidades, em museus, no sistema prisional, no sistema de saúde e na mídia.
A organizadora da coletânea, Luciana R. F. Klanovicz, é historiadora e doutora em história, pesquisadora da área dos estudos de gênero há mais de duas décadas e docente de pós-graduação da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Atualmente, coordena o Centro Interdisciplinar de Estudos de Gênero (CIEG). As/os demais colaboradoras/es do livro são provenientes de diversas áreas do conhecimento e, em sua maioria, são docentes, acadêmicas/os e egressas/os da pós-graduação e membros do CIEG. Assim, a coletânea é voltada a um público mais acadêmico. As investigações manifestam reflexões teóricas e trabalhos empíricos, com recortes qualitativos e quantitativos, que se utilizam de diversas técnicas e instrumentos de pesquisa – análise de dados secundários, estudos de caso, entrevistas em profundidade, história oral, dentre outros – trazendo, em muitos casos, a perspectiva dos sujeitos das relações de gênero, a partir de suas vivências e reflexões, o que confere riqueza ao material.
Os conteúdos discutidos na publicação são diversos e, muitas vezes, os trabalhos entrelaçam temáticas principais e secundárias. Assim, destaco aqui as que considero como mais recorrentes nos textos, sem pretender esgotar a multiplicidade de assuntos tratados ou criar uma estrutura rígida de classificação, tampouco categorias excludentes.
O empoderamento feminino é discutido no contexto das pequenas propriedades rurais em “Viúvas de maridos vivos: autonomia e perspectivas de empoderamento em pequenas propriedades rurais de Pinhão, Paraná”, capítulo no qual traz-se a noção de um empoderamento fluído, que nasce forçosamente entre as esposas com a partida de seus cônjuges, ao passo em que se veem obrigadas a gerir as propriedades.
Os papéis femininos e a divisão sexual do trabalho, bem como os reflexos deles decorrentes, são debatidos em três textos. O capítulo “Mulheres cuidadoras e suas vivências para/com a finitude da vida de um familiar” traz à tona a função de cuidadora ligada à figura feminina nos espaços privados. Mais adiante, em “Mulheres nas engenharias e nas tecnologias” são discutidas as relações de poder e a construção social do lugar de homens e do lugar de mulheres usando o lócus da universidade pública. Este texto ilustra dados sobre a realidade alarmante da inserção de mulheres em campos do conhecimento construídos social e historicamente como masculinos, tal como é o caso das engenharias e da tecnologia. Complementarmente às questões discutidas no âmbito das universidades, o capítulo “Direitos humanos: um olhar sobre gênero nas universidades” traz uma reflexão sobre os direitos humanos sob a ótica de gênero.
O controle sobre os corpos femininos é discutido de forma mais proeminente em quatro diferentes capítulos. Três deles são dedicados à temática da amamentação, quais sejam: “A amamentação como atribuição biopolítica dos corpos femininos”, “Amamentação continuada: reflexões sobre a medicalização do corpo feminino” e “Amamentação, mulher e mídia: uma análise das campanhas publicitárias do Ministério da Saúde”. O quarto capítulo é destinado ao encarceramento de mulheres.
Acerca da amamentação, discute-se como, ao longo do processo de socialização, as mulheres são treinadas para exercerem a maternidade, sendo a amamentação a peça-chave na conformação da mãe ideal, assim como o corpo feminino passou a ser regulado pela medicina nos processos de reprodução, parto e amamentação. Faz-se, dessa forma, necessário devolver às mulheres o protagonismo sobre seus próprios corpos, cujo controle lhes foi subtraído.
Por sua vez, as relações de gênero e poder no sistema prisional são tratadas em “Além da pena: relatos de mulheres presas sobre o cotidiano de uma cadeia pública”. O sistema prisional é ditado por regras masculinas e reflete as assimetrias de gênero e a manutenção do poder sobre as mulheres e seus corpos, especialmente, as negras e pobres que, mesmo antes de adentrar os presídios, são marginalizadas, silenciadas, invisibilizadas e sujeitas à repressão por parte do poder institucionalizado.
As representações do feminino são problematizadas em dois textos – “Museu e mulheres: reflexão sobre história e patrimônios femininos” e “Mulheres em evidência: representações nas capas em histórias em quadrinhos de terror brasileiras (1976-1977)”. No primeiro, discute-se a representatividade feminina em coleções, exposições e curadorias de três diferentes museus, espaços institucionalizados de memórias que manifestam, geralmente, uma lógica androcêntrica. Já no segundo, debate-se como as construções sociais, atravessadas pelas questões de gênero, são refletidas na produção cultural, que expressa valores como a sujeição ao poder masculino, a mulher como objeto de desejo e o erotismo.
As assimetrias de gênero, expressas nos mais variados segmentos da sociedade, e a interrelação entre gênero, etnia, raça e condição social, são discutidas no campo da saúde pública em “Perfil epidemiológico de mulheres notificadas com HIV/AIDS entre 2007 e 2017 em Guarapuava, Paraná”, texto que retrata como as mulheres estão mais expostas atualmente à contaminação pelo HIV e evidencia um processo de feminização da doença.
A violência contra a mulher é tema central de dois capítulos. Inicialmente, em “Políticas públicas para as mulheres no Brasil: das delegacias às redes de atendimento às mulheres em situações de violência” é traçada uma perspectiva histórica, a partir da década de 1970, das políticas públicas de proteção às mulheres no país, com destaque para a criação das delegacias especializadas de atendimento às mulheres, a promulgação da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio e a instituição da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulher. A violência sexual é retratada em “Gênero e violência: uma análise sobre a violência sexual e formas de combatê-la”, evidenciando-se que perpassa todas as classes sociais, raças, etnias, religiões, idades, nacionalidades e sexualidades. Trata-se de um fenômeno multifacetado, com vários formatos e que compreende uma das principais formas de violação dos direitos das mulheres enquanto pessoas humanas.
A diversidade de formas de expressão do gênero, para além do binarismo que se apresenta na leitura tradicional do sistema de gênero e assenta-se na noção específica de masculino e feminino, é discutida em “Acuenda a bajubá, não faça a pêssega! Reflexões a partir das percepções de uma transgênera superdotada”, material que traz a diversidade, as individualidades e as lutas por reconhecimento daqueles que não se encaixam nas estruturas sociais de um sistema binário.
Finalmente, as masculinidades e a virilidade são abordadas em dois capítulos – “Homens e masculinidades: o que é ser homem” e “O homem e sua afirmação através da virilidade”. Nestes textos, o ser homem, uma construção social pautada nas relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres, é discutido, questionando-se a existência de uma masculinidade hegemônica na atualidade, e apresentando-se um recorte da construção histórica deste fenômeno, herdeiro do patriarcado e presente em um contexto mediado pela cultura.
Considerando o conjunto de textos que integram a coletânea, é interessante levar em conta que o campo de estudos relativo ao gênero e às mulheres é marcado por divergências de posições, debates e controvérsias que demonstram sua evolução constante e recente. Além disso, o conceito de gênero não é uniforme e recebe contribuições do movimento feminista e de variadas perspectivas teóricas, que destacam as muitas possibilidades de entendermos a complexidade das relações sociais e de poder.
Nessa arena, duas importantes vertentes que contribuem para as discussões de gênero podem ser identificadas na literatura. A primeira agrupa perspectivas que assumem o binarismo homem-mulher, assim como a interdependência e a complementaridade entre eles; e a segunda, pós-moderna, busca romper com esse binarismo.
Na coletânea Gênero & Interdisciplinaridade identificamos trabalhos que encontram aporte teórico nestas duas correntes. Na primeira, temos a presença majoritária dos estudos, que buscam alicerces em conceitos da antropologia, que considera gênero como fluído, dinâmico e construído a partir das relações sociais, a exemplo do trabalho seminal da historiadora norte-americana Joan Scott para quem gênero é elemento constitutivo de relações sociais, sendo um primeiro modo de dar significado às relações de poder (Joan Wallach SCOTT, 1995). Na segunda, de viés pós-moderno, temos o estudo que discute a transgeneridade e lança um olhar para as diversas manifestações de gênero e vivências da sexualidade, e encontra bases na teoria queer.
Sabemos que os estudos nessa área transitam em um campo interdisciplinar, por excelência, e agregam pesquisas que buscam a compreensão das relações de gênero e suas interfaces com diversas áreas (Ana Alice COSTA, 2011). Assim, considero que a coletânea promove o efetivo encontro do gênero com a interdisciplinaridade, em consonância às pesquisas realizadas na Universidade. Friso também a importância de divulgarmos as produções de grupos de pesquisa e/ou programas de pós-graduação brasileiros para além das costumeiras publicações de artigos científicos, em coletâneas como essa em pauta, como forma de valorização do conhecimento produzido nesse lócus.
Após esse breve percurso sobre os temas presentes no volume, percebo que ainda que a coletânea seja marcada pela multiplicidade de debates teórico-metodológicos, assuntos e contextos, carece de estudos que, a meu ver, enriqueceriam o debate, ainda mais em se tratando da realidade brasileira. Nesse sentido, temáticas que poderiam ser incorporadas aos textos incluem o feminismo decolonial e o feminismo negro. Mas talvez isso tornasse o material extenso demais, comprometendo sua exequibilidade.
Por fim, destaco que, além de transitar em um campo interdisciplinar, os estudos de gênero têm uma história tributária dos movimentos feministas e de busca por direitos humanos e civis (Joana Maria PEDRO, 2005) e que buscam entender e combater as diversas manifestações de opressão, assim, a escolha de Gênero & Interdisciplinaridade para inaugurar a coleção “Desenvolvimento Comunitário e Interdisciplinaridade” mostra-se bastante apropriada.
Referências
COSTA, Ana Alice Alcântara (Org.). Estudos de gênero e interdisciplinaridade no contexto baiano Salvador: EDUFBA/NEIM, 2011.
KLANOVICZ, Luciana Rosar Fornazari (Org.). Gênero & Interdisciplinaridade 1. ed. São José: Sobre o Tempo, 2020.
PEDRO, Joana Maria. “Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica”. História, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 77-98, 2005.
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.
Resenhista
Roseli de Oliveira Machado – Doutoranda no Programa Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário da Universidade Estadual do Centro-Oeste (PPGDC/UNICENTRO), com pesquisa ligada a Gênero, Trabalho e Estudos de Comunidade. Administradora (Universidade de São Paulo, 2002), com mestrado em Administração (Universidade de São Paulo, 2005). É pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Gênero (CIEG/UNICENTRO). E-mails: romachado@unicentro.br; roseli_unicentro@yahoo.com https://orcid.org/0000-0003-1711-6213
Referências desta Resenha
KLANOVICZ, Luciana Rosar Fornazari (Org.). Gênero & Interdisciplinaridade. São José: Sobre o Tempo, 2020. Resenha de: MACHADO, Roseli de Oliveira. Estudos de gênero: uma mirada interdisciplinar. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 3, e85983, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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