Fernando de Azevedo em releituras – sobre lutas travadas/ investigações realizadas e documentos guardados | José Cláudio Sooma, Diana Gonçalves Vidal, Rachel Duarte Abdala

A reiterada presença de Fernando de Azevedo como fonte e objeto de investigação para a História da Educação é inquestionável. Todavia, uma nova publicação a seu respeito se propôs a revisitar sua atuação e obra, situando-a no debate historiográfico. Trata-se, pois, do livro “Fernando de Azevedo em releituras – sobre lutas travadas, investigações realizadas e documentos guardados”, de autoria de José Cláudio Sooma Silva, Diana Gonçalves Vidal e Rachel Duarte Abdala. A publicação organizou-se em três partes, sendo que cada uma delas operou com um recorte e objeto diferente sem perder de vista o sujeito estudado. Para além das análises apresentadas, todos os capítulos trazem como anexos transcrições, ferramentas de pesquisa, textos expositivos, dentre outros. Nesse sentido, faz o duplo esforço de tomar o professor e sua atuação como objeto sem deixar de olhar para o já consolidado compilado de pesquisas e documentos a seu respeito. Opera, portanto, como referência bibliográfica e como possível roteiro de pesquisa.

Em seu primeiro capítulo – “Um educador nas lutas de seu tempo” – Diana Vidal fez um duplo esforço. O primeiro foi discorrer sobre a trajetória profissional do educador tendo em vista as redes de sociabilidades que mobilizou. O segundo foi o acompanhamento dos investimentos que permitiram estabelecer a Reforma do Ensino operada no Distrito Federal em 1927 como marco fundador da renovação educacional (VIDAL, 2020, p. 15). Para tanto, discorreu a respeito do Inquérito Sobre a Instrução Pública1 organizado por Fernando de Azevedo em 1926 compreendendo-o como um diagnóstico “a partir da constituição de grupos que disputaram a orientação política e pedagógica da educação em São Paulo” (Ibidem). Tomou também a reforma de 1927 como objeto, operacionalizando a análise pela via da citação de artigos reunidos no livro Novos Caminhos e Novos fins (1958). Neles, destacou a paulatina construção de legitimidade da reforma e o uso da expressão escola nova como agregadora de sua ação (VIDAL, 2020, p. 16). Na terceira parte do capítulo, escrutinaram-se os procedimentos narrativos do reformador a partir de 1937.

À autora interessou situar suas práticas nas lutas políticas pelo controle ou manutenção da máquina pública e o mapeamento dos embates em torno da construção da memória do campo educacional. Como um dos resultados, deu pistas sobre as direções que Fernando de Azevedo deu à enquete por meio da redação das questões, responsáveis por reiterar a noção de falha do sistema escolar que o precedeu (VIDAL, 2020, p. 23). Destacou também os vários pertencimentos dos educadores envolvidos na disputa do campo educacional, percebendo as redes de solidariedade (SIRINELLI apud VIDAL, 2020, p. 24) entretecidas e o modo fluido pelo qual eram atravessadas pelos sujeitos políticos. Assim sendo, entende que “o entrelaçamento de disputas pedagógicas e políticas e a rede de sociabilidade tramada por educadores e políticos expressa na polarização entre o velho e o novo modelo educativo presente no Inquérito permitiu que ele servisse como plataforma à carreira pública de Azevedo […]” (VIDAL, 2020, p. 29).

A reforma de 1927 foi abordada pela via das manobras para construção paulatina de sua legitimidade. Para tanto, Fernando de Azevedo articulou uma “cuidadosa estratégia de divulgação” (VIDAL, 2020, p. 30) almejando uma maior visibilidade da empreitada. Esse anseio respondia às tentativas de tornar a iniciativa modelar aos demais estados, dando corpo a publicações tais quais o Boletim da Instrução Pública (Idem, p. 34). Para melhor cercar o objeto, a autora propôs o rastreamento das redes de solidariedade estreitadas a partir das contendas que se desenharam entre 1927 e 1930 pela via da análise de três textos publicados pelo reformador e dispostos em anexo (Idem, p. 35).

Os dispositivos de memorização da reforma foram também retomados pela via da análise do livro a Educação pública em São Paulo: problemas e discussões. Tratava-se da republicação do Inquérito de 1926 onze anos depois, por meio da qual se buscou o estabelecimento de uma plataforma política e a reafirmação da autoridade no campo educacional (VIDAL, 2020, p. 63). A ela, porém, somaram-se a chegada de Getúlio Vargas à presidência e a reconfiguração do campo político. Em meio a tais embates, Fernando de Azevedo sofreu sucessivas perdas de espaço político. É nesse cenário que Vidal situou a escrita de A cultura brasileira, entendo-a como parte de uma estratégia discursiva de oposição entre novo e velho, mas também como uma marcação da mudança de sua posição a respeito, sobretudo, a respeito do federalismo. Dessa forma,

[…] na rearticulação das posições políticas e educativas assumidas pelo educador entre 1926 e 1943, na ressignificação dos movimentos e da ação dos sujeitos educacionais que empreendeu no período e nos anos que seguiram à publicação d´A cultura brasileira, Azevedo procedeu a um meticuloso trabalho de refacção da memória do campo educacional e de suas lutas. […] Ao longo desse processo, construiu a reforma de instrução pública realizada no Distrito Federal […] como tradição (inventada) da renovação educacional no Brasil (VIDAL, 2020, p. 72 – 72).

O segundo capítulo, de autoria de José Cláudio Sooma Silva, combina a análise de um objeto de pesquisa à narrativa de sua trajetória de investigação. Em “O acervo Fernando de Azevedo: sobre indícios, consultas e possibilidades”, o autor tomou como objeto, inicialmente, as produções a respeito da trajetória de Fernando de Azevedo operacionalizadas pelo acesso ao acervo disponível no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP) entre os anos de 2000 e 2018. Por meio dessa amostra, foi-lhe possível destacar a heterogeneidade institucional e geográfica dos pesquisadores que acessaram a instituição, bem como sua maior aderência nas áreas de História e Educação. Isso, conforme o autor, “pode ser relacionado aos esforços de perscrutá-lo a partir de suas escolhas e protagonismos, mas também relacionando-os às necessidades, possibilidades e condicionantes históricos que, juntos, concorreram para deixar sulcos nesse sujeito” (SILVA, 2020, p. 212).

Também nesse texto, o autor esmiuçou uma alteração nas estratégias de pesquisa devido ao reduzido montante de 84 pesquisadores rastreados em seu primeiro recorte. Ele, portanto, redimensionou o plano inicial e tomou-o como impulso para outros levantamentos complementares. Consultou a partir de então o Banco de Dissertações e Teses da Capes e da Plataforma CNPq, rastreando redes de orientadores e orientandos de maneira a ampliar o leque de produções (SILVA, 2020, p. 217). Desse movimento foram rastreados 106 pesquisadores de 53 instituições, aglutinados nas áreas de História da Educação (42) e Educação (28) (Idem, p. 220). Com esse montante mais significativo, possibilitou-se o mapeamento da produção do campo e um delineamento dos contornos que Fernando de Azevedo recebeu como objeto de pesquisa ao longo dos últimos anos. A atualização dessa ferramenta de pesquisa, disponibilizada em anexo ao capítulo, permitiu a elaboração de um roteiro do campo, funcionando como um convite a futuras incursões.

Por fim, é de Rachel Duarte Abdala o capítulo final, intitulado “Catálogo de uma exposição: olhares, disposições, documentos e ações em defesa da educação pública”. Nele, esmiuçou-se a concepção e montagem da exposição “Em defesa da educação pública: Fernando de Azevedo no IEB (1927 – 1968) ”2. Nesse processo, a lógica da organização arquivística foi subvertida pelo “percurso expográfico construído a partir de objetivos delimitados” (ABDALA, 2020, p. 270). A exposição, composta por núcleos expositivos e eixos temáticos que articularam diversos tipos documentais, foi potencializada por aspectos técnicos tais quais a arquitetura do prédio do Instituto de Estudos Brasileiros. Ademais, os organizadores entenderam que: […] como Fernando de Azevedo fez história ao compor a sua trajetória com suas ações e produções em defesa da educação pública ao longo de sua vida, essa exposição também [fez] história ao se inscrever na memória das produções do Instituto de Estudos Brasileiros e ao manifestar

[…] o fato de que a defesa da educação pública no Brasil é um processo que tem importantes marcos e que […] permitem refletir sobre o atual momento da educação no país (ABDALA, 2020, p. 273 – 274).

Como anexos, são dispostos os textos elaborados para acompanhar a exposição, bem como algumas fotos suas e de seu espaço expográfico. A sua generosa disponibilidade, assinalada também nos demais capítulos da obra, ressalta duplo estatuto do livro como bibliografia e roteiro de pesquisa. Por outro lado, são também esses anexos cuidadosamente ordenados ao final de cada capítulo que dão pistas sobre sua escrita e sobre o tratamento dado aos objetos recortados. Sua operacionalização cuidadosa não perdeu de vista o sujeito estudado, mas deu à sua trajetória e atuação roupagens distintas de acordo com as perguntas lançadas pelos pesquisadores.

Do estudo da atuação de Azevedo como reformador às disputas que engendrou no campo educacional, passando por sua tomada como objeto de estudo e, por fim, pelo recorte temático de uma faceta de sua atuação com fins expositivos, o livro traz o convite a um olhar multifacetado para um sujeito já tão estudado. Convida, pois, ao exercício reiterado de pesquisa e à sua constante tessitura nas disputas engendradas no presente


Notas

1 A autora recortou como objeto a primeira parte do Inquérito, na qual foram abordados o ensino primário e normal. Ela foi publicada entre 10 e 30 de junho no jornal O Estado de S. Paulo (VIDAL, 2020, p. 19).

2 A exposição, com a curadoria de Diana Vidal, José Cláudio Sooma Silva e Rachel Abdala, teve seu início no projeto de pesquisa “A escola em sua materialidade: estratégias e táticas”, sob coordenação da primeira. Ela foi inaugurada durante evento organizado em junho de 2019, permanecendo à mostra até 18 de outubro desse mesmo ano.


Resenhista

Carolina Cechella Philippi – Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: carolinacechella@gmail.com  http://orcid.org/0000-0001-6121-254X


Referências desta Resenha

SILVA, José Cláudio Sooma; VIDAL, Diana Gonçalves; ABDALA, Rachel Duarte. Fernando de Azevedo em releituras – sobre lutas travadas, investigações realizadas e documentos guardados. Jundiaí: Paco Editorial, 2020. Resenha de: PHILIPPI, Carolina Cechella. O educador e seus tempos – investigações e percursos. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 5, n. 11, p. 277-282, ago./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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