O fim da Segunda Guerra Mundial abriu um período de reorganização e ressurgimento público do movimento libertário em âmbito global. Em vários países se pôde constatar esse reaparecimento, marcado, entre outras atividades, pela elaboração de projetos políticos de cunho anarquista, a reabertura ou criação de organizações, a circulação de periódicos, uma notável atividade editorial, a realização de conferências e congressos e mesmo o trânsito de pessoas, voluntário ou não, buscando reforçar os laços militantes dentro da perspectiva internacionalista do movimento.
Parte dessa movimentação foi analisada por Cláudia Tolentino Felipe em Faces da Hidra Anarquista: linguagens utópicas e projetos políticos (1945-1970), originalmente tese de doutoramento defendida na Universidade Estadual de Campinas, que agora a Editora Cancioneiro oferece a um mais amplo público. Debruçando-se sobre um largo e variado conjunto documental, que incluiu jornais, panfletos, projetos, apresentações artísticas, imagens e conferências, a autora investigou como os anarquistas mobilizaram discursos e práticas para, no rescaldo da catástrofe mundial, oferecer uma alternativa de organização social pautada nos valores basilares do anarquismo: a solidariedade, o universalismo e a liberdade.
A partir das metáforas da ilha (a utopia, os projetos anarquistas), da linha (o univeralismo, a plasticidade das fronteiras) e da ponte (o apoio mútuo, a solidariedade), Cláudia Tolentino traz a lume não somente os anarquismos em sua vitalidade, pluralidade, dinamismo e permanente transformação, mas oferece uma perspectiva teórica que livra a atuação libertária de gaiolas conceituais que, na historiografia de outros tempos, carimbaram-na com as marcas do insucesso político, da derrota e da imaturidade. Nesse campo, chame-se atenção para a perspectiva transnacional – que permite à pesquisadora vislumbres de realidades múltiplas e cambiantes, não encerradas em fronteiras, em permanente trânsito, como é, afinal, próprio do anarquismo – a mobilização de diferentes escalas que ajudam a lançar luzes sobre aspectos comumente “esquecidos” das práticas libertárias e à anarqueologia proposta por Michel Foucault que ampara a problematização acerca dos variados “regimes de verdade”, inclusive os libertários.
Ao abordar os “projetos libertários”, as prefigurações da sociedade baseada nos ideais anarquistas, três dos quais da lavra de militantes brasileiros (Edgard Leuenroth, Ênio Cardoso e José Oiticica) a autora oferece, em sintonia com os/as militantes que atuaram naqueles anos, uma ressignificação da utopia, colocando-a em perspectiva histórica, fundamental à criação de alternativas à cultura de violência, exploração e autoritarismo em que o capitalismo nos mergulhou. Libertar a utopia das acepções pejorativas foi algo que motivou anarquistas desde sempre, buscando fugir da imagem de irrealistas, sonhadores, ou mesmo “a-científicos”. Muito mais importante que o reconhecimento de que certas realidades de hoje já foram utopias anteriormente, é ver nelas não somente projetos que tem raízes na crítica das sociedades vigentes, mas inclusive compreendê-las como planos contingenciais, sujeitos a mudanças, aperfeiçoamentos, transformações. Nunca um desenho acabado de sociedades perfeitas e congeladas. Como asseverou a autora, “os anarquistas consideravam, com seriedade, o tempo, a história, as contingências, por isso compreendiam que nenhum modelo social seria eterno ou estável.” Seus projetos eram, pois, efetivamente históricos.
A ponte imprescindível à construção da utopia, largamente apresentada nos escritos anarquistas do período, é a solidariedade, o apoio mútuo que contradita o individualismo do sistema liberal e a voracidade exploratória do capitalismo, que leva homens e mulheres a perceberem seus semelhantes como antagonistas. O rigor intelectual da historiadora proporciona uma análise alentada sobre o conceito de solidariedade, indo das raízes mais recuadas no tempo a ideólogos liberais, passando necessariamente pelos pensadores clássicos dos anarquismos, como Bakunin, Kropotkin, Malatesta e Proudhon. Atesta, assim, que o apoio mútuo vivido na prática, naqueles anos, como, por exemplo, na atuação da Solidariedade Antifascista Internacional – SIA, que prestava auxílio a refugiados e perseguidos políticos; na criação de organizações transnacionais (publicações, centros de pesquisa, arquivos, bibliotecas, federações) ou nos discursos publicados nos periódicos eram a materialização de valores basilares dos libertários. Outrossim, demonstravam não haver crença em uma transformação instantânea da sociedade, como se a Anarquia estivesse à uma virada de esquina. O mundo fraterno e solidário resultaria do florescimento de uma nova atitude de pessoas livres e iguais, com a liberdade de cada um empenhada e se complementando com a liberdade de todos, em que redes de associações livres, motivadas pelo apoio mútuo, passassem a prescindir da lógica heterônoma e dominadora do Estado.
A partir das tópicas libertárias, lugares-comuns, discursos e narrativas que elaboraram os ácratas (mas não apenas estes) entre 1945 e 1970, Cláudia Tolentino encontrou anarquismos que se (re)inventavam à medida que se iam realizando. Afinal, como anota Davide Turcato, no posfácio do livro, “as práticas anarquistas são tudo o que existe para o anarquismo” e a anarquia, longe de se reduzir a um projeto para o futuro, compõem-se da generalização, no presente, de tais práticas.
No horizonte que nomeia o último capítulo do livro, a autora encontra na estética libertária, em múltiplas dimensões da arte engajada com as premissas da liberdade, do apoio mútuo e da autogestão, um campo de experimentações que poderiam tornar possível a vivência dos ideais anarquistas, além de um convite para o despertar de sensibilidades avessas aos valores da exploração, opressão e do individualismo. Foram muitas as manifestações dessa estética/ética, como no “World Game” de Buckminster Fuller, a propor um mundo sem divisões, de coexistência pacífica e cooperativa; a educação musical do anarquista John Cage e o projeto Fluxus; a intervenção poética e as teorizações sobre arte e educação de Herbert Read; o teatro experimental e transgressor do The Living Theatre de Judith Malina e Julian Beck e o Laboratório de Ensaios, que no Centro de Cultura Social de São Paulo retomava a tradição libertária do teatro social em plena ditadura militar. Em cada um deles a arte foi valorizada em seu potencial de estimular sensibilidades libertárias, mais preocupada com o processo criativo, livre, que com a obra final, esfumaçando linhas divisórias entre artista e público. Arte e vida integradas.
Com aportes conceituais sólidos, uma pesquisa empírica de fôlego e sensibilidade invulgar para compreender os sujeitos históricos sobre os quais lançou o olhar de historiadora, Cláudia Tolentino oferece uma obra que não somente descortina os caminhos das idéias e práticas libertárias no recorte pós-Segunda Guerra em escala mundial, mas aumenta o conhecimento geral sobre o anarquismo em si, evitando tentações teleológicas e furtando-se à definições limitadoras. É o anarquismo plural que desponta, tal qual hidra de muitas cabeças, em seu dinamismo e fluidez, expressando-se de maneiras variadas em diferentes tempos e lugares, atestando a pertinência de suas idéias e a vitalidade de seu movimento.
Resenhista
Allyson Bruno Viana – É doutor em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Curso de História da Universidade Estadual do Ceará, Área de História do Brasil. E-mail: allyson.bruno@uece.br
Referências desta Resenha
FELIPE, Cláudia Tolentino Gonçalves. Faces da Hidra Anarquista: linguagens utópicas e projetos políticos (1945-1970). Teresina: Cancioneiro, 2021. Resenha de: VIANA, Allyson Bruno. Pela paz, pela utopia: anarquismos no pós-Segunda Guerra Mundial em abordagem transnacional. História- Questões & Debates. Curitiba, v. 71, n. 1, p. 293 -296, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]
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