O livro de Matthew Fox-Amato resulta da tese de doutorado defendida no Departamento de História da Universidade do Sul da Califórnia. Composto de introdução, quatro capítulos e um epílogo, possui 92 imagens e parte de duas questões iniciais, colocadas pelo autor: como a descoberta, e subsequente uso, da fotografia “influenciou a cultura e a política da escravidão na América?”. E como, por seu turno, “a escravidão influenciou o desenvolvimento da fotografia – esteticamente e como prática cultural?” (p. 2).
Fox-Amato começa a introdução com a notícia da invenção do daguerreótipo, que foi da França à Inglaterra ainda em agosto de 1839. Até o fim de setembro daquele ano, o jornal London Globe já teria chegado aos Estados Unidos e espalhado a novidade de Boston a Nova Orleans. Como aconteceu em vários países, artistas locais logo temeram que o daguerreótipo tornasse seu trabalho em pintura obsoleto. O escritor Ralph Waldo Emerson observou, em 1841, que “o daguerreótipo seria a maneira Republicana de pintar: o artista se colocaria de lado e deixaria que o cliente ‘pintasse a si mesmo’” (citado na p. 4); outros, menos preocupados com a morte da arte da pintura de retratos do que Emerson, viram e ressaltaram a aplicabilidade que o novo meio poderia ter como instrumento de suporte às ciências. Uns poucos, numa incrível capacidade de premonição, imaginaram um mundo futuro cheio de câmeras de segurança, no qual os ladrões seriam fotografados no ato de roubar, e posteriormente identificados (p. 2).
Ainda na década de 1840, a técnica da fotografia foi aperfeiçoada o suficiente para que se conseguisse retratar a figura humana com um tempo de pose cada vez menor, e por um valor mais acessível. Como aconteceu em quase todos os países que exploravam a mídia naquele momento, a massificação dos retratos se deu rapidamente; nos registros dados pelo autor, consta que os Estados Unidos tinham 938 estúdios abertos e funcionando em 1850, e 3.154 em 1860 (p. 4). O fato é que a fotografia deu às pessoas das mais diversas camadas sociais a possibilidade de perpetuar a sua imagem, assim como a de retratar suas posses, incluindo, no caso de muitos senhores, os seus escravizados.
A abolição nos Estados Unidos se deu em 1865, e o país teve cerca de 25 anos para que fossem feitas fotografias de sua população cativa. A história da representação visual do negro na América do Norte, fosse ele escravizado, forro ou livre, já foi estudada por numerosos especialistas da área, e vários deles publicaram trabalhos de imensa relevância. O livro de Fox-Amato é mais um que trata da relação histórica entre escravidão e fotografia; porém, apresenta algumas imagens que, até onde sei, não foram publicadas por outros autores, além de explorar categorias e relações até agora pouco estudadas (ou nunca antes estudadas, segundo afirma o próprio autor – p. 2). Através de vultosa pesquisa em mais de 30 instituições, Fox-Amato apresenta a imagética que expõe a escravidão entre 1839 e 1865 – fotografias, como já ressaltado, mas também algumas pinturas e desenhos figurando escravizados, ex-cativos, senhores brancos, abolicionistas e soldados da Guerra Civil (1861-1865) – e a cruza com coleções de manuscritos de senhores (cartas, diários, testamentos e livros dos bens das famílias) e de abolicionistas, jornais de época, narrativas de cativos, cartas de soldados, livros de controle dos estúdios e apontamentos de fotógrafos, além de periódicos e manuais que davam notícias e ensinavam sobre os avanços do novo meio de retratar o mundo. Completa a pesquisa uma bibliografia primária e outra secundária (atualizada) sobre escravidão e fotografia, mas apenas a escrita em língua inglesa.
O autor chama atenção para os personagens dos retratos e ressalta que eles foram protagonistas do processo de criação das imagens, posando não apenas como modelos, mas também, em suas palavras, como “fotógrafos práticos” (pp. 4-5). Esse ponto de seu argumento é bastante interessante (embora não seja uma novidade nunca antes ressaltada por outros estudiosos da história do retrato fotográfico), pois dá a todas as categorias sociais estudadas alguma responsabilidade na sua representação.1 Ele pergunta: “o que um meio conhecido por retratar corpos significaria para aqueles que dolorosamente experimentavam o policiamento e a posse de seus corpos?”, como no caso dos cativos (p. 6). A seguir, sugere que também os donos de escravos, os abolicionistas e os soldados da Guerra Civil foram “fazedores de imagens”, não apenas pela sua participação na construção delas, mas sobretudo pela forma como elas foram usadas e interpretadas. E essas são as categorias sociais que ele explora, ao dividir os capítulos do livro: os escravizados, os senhores, os ex-escravizados, os abolicionistas e os soldados.
Susan Sontag escreveu sobre a prática de registrar e consumir “a dor dos outros” e destacou que é preciso uma boa dose de estoicismo para olhar imagens que podem fazer você chorar.2 O livro de Fox-Amato mostra algumas que são difíceis de olhar, sobretudo as poucas que localizou de cicatrizes e de torturas. Ele apresenta fotos de histórias, e também histórias de fotos. E faz isso tão bem que, no final, o leitor se pergunta se viu a foto ou se leu a história, ou se teve as duas experiências.
No capítulo 1, intitulado “Policing Personhood”, Fox-Amato dividiu os usos da fotografia de cativos em: autoafirmação (foto encomendada pelo senhor para exibir sua posse e seu status), vigilância e propaganda. Vejamos, na ordem. O autor inicia mostrando a forma como os senhores registraram seus escravizados – a “quiet habit of power”, um hábito manso de poder –, que significa como os senhores “se apossaram” daquele meio como um instrumento para construírem a ideia de hierarquia racial e as redes de supremacia branca. Se, por um lado, levaram seus cativos bem vestidos aos estúdios de fotografia, muitas vezes com vestimentas de corte europeizado e até portando joias – para que fossem registrados exibindo uma certa elevação e passassem a ideia de uma escravidão que não era cruel (p. 22) –, por outro, impuseram limites para tais representações, ao controlarem também as poses, os gestos e até os objetos usados nas cenas. Tentaram limitar aos cativos a sua capacidade de autorrepresentação e inibiram o uso de certos símbolos de status que diziam respeito à sociedade branca, livre, rica e culta. O autor exemplifica, ressaltando que não viu escravizados posando com livros, um dos símbolos de distinção, cultura e sabedoria. A fotografia tinha que transmitir também a sua subordinação; e vários deles posaram com seus “instrumentos de trabalho”: Hector aparece sentado segurando o remo do barco que usava para atravessar o rio, quando levava as cartas e trazia de volta os suprimentos para a família Manigault, da Carolina do Sul (p. 57), e as amas das páginas 21 (esta, uma imagem incrível, também usada na capa do livro – “Charlotte Helen Middleton e sua ama escrava, Lydia”, de c. 1857; ambrótipo por George Smith Cook), 36 e 42, que foram registradas junto às crianças das quais cuidavam.
O que é contraditório, e curioso, é perceber que, ao mesmo tempo em que tentavam mostrar que seus cativos não eram tratados como “mercadoria”, os senhores expunham a sua autoridade e manipulação, ao tentar negar à pessoa retratada sua autorrepresentação. Entretanto, conforme o leitor pode notar ao observar as pessoas das fotos apresentadas no livro (incluindo as citadas acima, de Hector e das amas), apesar da estranheza da situação de posarem para retratos que não haviam sido encomendados ou orquestrados por elas, os olhares e as expressões de muitas delas traem esse suposto controle. Umas mais, outras menos, elas também deram-se a ver, e posaram para aquelas fotos exibindo suas dores, suas perdas – uma parte de sua história, enfim. Umas mais, outras menos, perturbaram a pretensa harmonia e o controle que os senhores achavam que tinham sobre suas imagens.
Retratos são documentos de um passado vivido por pessoas de diferentes níveis e condições sociais, e de variadas sociedades. Mesmo que sejam objetos que registraram momentos orquestrados e codificados, fotografias transmitem mensagens que podem ser entendidas por qualquer um, não importando a língua que o observador fale ou se ele é letrado. Também como outros autores, Fox-Amato usa as de seu livro como evidências históricas, não como ilustrações para seus argumentos. Enriquece o estudo o fato de que o autor apresenta imagens que, embora possam ter sido produzidas para um determinado uso, acabaram sendo usadas para outros, como os cartões de visita de escravizados do Sul do país, que foram recortados e colados no alto de páginas de anúncios de fuga (a exemplo, as fotos de Dolly, fixadas em dois anúncios de 1863, pp. 65-66). Ao contrário dos daguerreótipos, que eram objetos únicos, os cartões de visita (inventados em 1854, porém usados mais massivamente a partir da década de 1860) podiam ser adquiridos pelos clientes às dúzias – quantas o cliente desejasse ou pudesse pagar. Nesse ponto do livro, o leitor pode se perguntar (na verdade, deve se perguntar): fotos como as de Dolly teriam sido encomendadas pelos senhores como uma espécie de inventário visual de suas posses, de registro e exibição orgulhosa delas, mas também como garantia para uma possível identificação futura, como as que já estavam sendo feitas nas delegacias de polícia e nas novas penitenciárias?
Em meados da década de 1850, o advogado Edward J. Pringle se mudou para longe da família e, após algum tempo, recebeu pelo correio dois daguerreótipos: um com a imagem da mãe e outro com a de Mack, um mordomo negro, cativo idoso, que trabalhara a vida inteira para os Pringle. Edward escreveu para a mãe:
E o velho Mack! Quão maravilho ele está! Tenho rido do seu retrato uma dúzia de vezes. Eu o mantenho em meu escritório para exibi-lo como um espécime da “Instituição”. Como está natural, o velho Mack! Que maravilhosas a gravata e as calças brancas! Com botões e anéis dourados etc. […] (carta reproduzida na p. 53).
No fim, o filho pede à mãe que providencie e lhe envie retratos como aquele também de mais três cativos: Mauma, Cretia e Ishmael. Assim como outras fotos da mesma categoria, a do mordomo da família Pringle, tão bem vestido e com os detalhes realçados em dourado (um indício de que um investimento maior fora feito ali, pois detalhes pintados “a ouro” encareciam bastante o daguerreótipo no período), posando “orgulhoso” de sua posição na casa, foi usada como evidência da “humanidade da escravidão” e serviu como propaganda pessoal do advogado, pois, conforme conta o autor, Edward Pringle era um homem empenhado na manutenção daquela instituição (p. 53).
Fox-Amato retoma no capítulo 2, “Enduring Images”, o conceito de resistência para sugerir que a prática de uma pessoa escravizada ser fotografada e observada não era tão passiva assim. Ele trabalhou com narrativas e apontamentos de fotógrafos, alguns deles itinerantes, que visitavam as cidades e as fazendas, oferecendo seus serviços a preços mais acessíveis a quem fosse cativo. É bom ressaltar que os negros de ganho, é claro, que realizavam trabalhos fora de casa, tinham mais acesso aos estúdios das cidades do que os escravizados domésticos, além de terem dinheiro no bolso também mais facilmente. No entanto, aquele não era um investimento feito sem sacrifícios, pois podiam gastar de duas a quatro diárias do ganho na compra de suas fotografias (p. 79). Fox-Amato cita o exferreiro e daguerreotipista itinerante John W. Bear, que se instalou por um tempo em Winchester, na Virginia, em 1847. O profissional cobrava 1,5 dólares para retratos de pessoas brancas e 1 dólar para os de cativos, enquanto outros chegavam a cobrar até 5 dólares. Bear reservava as tardes das sextas-feiras para registrar os negros, o que agradou à clientela branca. Nos livros de controle do seu estabelecimento ficou anotado que tirou 1.500 fotografias de pessoas de todas as condições sociais, entre o outono de 1847 e a primavera de 1848 (p. 77).
Fox-Amato critica a falta de estudos voltados para as fotos de escravizados encomendadas por eles mesmos; mas logo admite que elas não são facilmente encontradas em arquivos públicos ou mesmo em coleções particulares (pp. 69-70). Pelas mãos de alguns profissionais, centenas (talvez milhares) de cativos se fizeram retratar e conseguiram se comunicar com parentes que se encontravam em locais distantes, construíram suas memórias familiares e, ainda, vários puderam, posteriormente, identificar entes queridos, em casos de separações. O autor conta sobre Robert Brown, que fugiu da fazenda de seu senhor (sem data especificada), carregando consigo o daguerreótipo da esposa que havia sido vendida para longe dele. Ao conseguir alcançar um dos esconderijos da rede de apoio aos fugidos, Brown tirou com carinho o delicado objeto do bolso e exibiu, com expressão entre amorosa e dolorosa, a imagem da mulher para os abolicionistas seus protetores (p. 99). Naquele momento, o retrato era um objeto de afeto, que acalentava a saudade do marido e mantinha na memória as feições da amada; mais tarde, ele pode ter servido para auxiliar os abolicionistas a encontrarem a esposa de Brown. A ex-escravizada Harriet Tubman (?-1913) trabalhou muito para o movimento e foi mais uma que usou fotografias para identificar pessoas que ela ajudou a resgatar do Sul escravista do país para levar até ao Norte (pp. 157-158).
A imagética da escravidão podia servir de instrumento de apoio tanto para os que advogavam pelo fim daquele sistema de exploração, quanto para os que exigiam a sua continuidade (como vimos na história do advogado Edward J. Pringle e o uso que deu ao retrato do mordomo Mack). Ao mesmo tempo em que eram registrados olhares e expressões sofridos, marcas de açoites e instrumentos de tortura, expunha-se a violência contra aquele povo. Para os que usavam as imagens disponíveis para seus estudos de fisionomia, frenologia, craniometria etc., com o intuito de provar que o negro era inferior ao branco, muitos retratos podiam servir de munição para suas ideias racistas e autodignificantes. No capítulo 3, “Realizing Abolition”, Fox-Amato fala sobre a “base de dados” que os abolicionistas criaram com a ajuda da fotografia, para que pudessem fazer circular registros e fortalecer seu movimento. As fotos usadas eram tanto de ativistas, quanto de escravizados em sofrimento; a seguir, eram litografadas para que pudessem ser reproduzidas o maior número de vezes possível nos panfletos, nos almanaques e em outras publicações.
O autor destaca a abertura de numerosos estúdios fotográficos nas grandes cidades do Norte do país, como Boston, Filadélfia e Nova York, alguns dos quais de profissionais negros que “ao instalarem seus estabelecimentos abriram espaços simpáticos aos radicais dos locais, aos reformadores e aos fugitivos” (p. 113). Porém, esclarece, fotos de leilões de escravos, chicoteamentos, linchamentos e outras torturas não puderam ser feitas, e por dois motivos: primeiro, pelas próprias limitações do meio, que requeria a imobilidade, por vários segundos, da ação a ser registrada; segundo, porque os fazendeiros e outros apoiadores da escravidão não teriam permitido os registros, muito menos paralisado suas ações e posado para eles. Por essas razões, cenas como essas continuaram a ser capturadas sob a forma de desenhos, que eram depois litografados. Dois periódicos, sobretudo, se destacaram na sua divulgação: Illustrated London News e Harper’s Weekly (p. 115).
Fotos de ex-escravizados e de cativos fugidos eram feitas, reproduzidas e publicadas. Talvez a mais conhecida, representando torturas sofridas, seja a de “Gordon” (ou “Peter”, as fontes variam ao nomeálo). Ele era um escravizado que havia se juntado a um regimento de soldados do Norte, acampado perto de Baton Rouge, em 1863. Gordon foi fotografado de costas, e com estas nuas. Pode-se ver claramente que a sua pele havia sido dilacerada pelo chicote (provavelmente, em mais de uma sessão de tortura) e que os ferimentos deram lugar a queloides altos (p. 120). Sua foto foi reproduzida por outros estúdios, incluído o de Mathew Brady,3 e fartamente divulgada. A carta a seguir (citada no capítulo 4, mas que acho que cabe aqui) é de um médico negro de um regimento da Louisiana, enviada a seu irmão junto com o cartão de visita de Gordon:
Envio para você a imagem de um escravo e a forma como ele fica após sofrer chicotadas. Tenho visto, nesse período em que inspeciono homens para o meu e para outros regimentos, centenas como esse homem – logo, não são novidades para mim, mas podem ser para você. Se conhece alguém que fala sobre a maneira humana com que os escravos são tratados, por favor mostre essa foto. Ela é uma lição em si mesma (carta reproduzida na p. 173) [grifos do médico].
Consta que o ex-escravizado, escritor e abolicionista Frederick Douglass (1818-1895) também possuía as costas repletas de marcas de açoites, fato que alguns ativistas do movimento puderam checar. Porém, até onde se sabe, Douglass nunca posou sem camisa para um retrato. Ao contrário, nos 55 anos em que viveu na era da fotografia, ele se fez retratar mais de 160 vezes e sempre com os cabelos bem penteados e repartidos, usando paletó, colete, camisa branca e gravata, e encarando intensamente (alguns diriam “desafiadoramente”) a câmera – como o daguerreótipo da p. 125, de 1847/1852, tirado por Samuel J. Miller. Fox-Amato pergunta por que razão Douglass nunca exibira em imagem as marcas explícitas da escravidão entalhadas em suas costas, já que tal documento poderia ter se unido a sua voz e ajudado o movimento. E ele mesmo esclarece que o ex-cativo tinha ideias próprias sobre autorrepresentação e como queria que sua imagem fosse vista, divulgada e lembrada, junto a seus discursos e escritos (pp. 121-123), pois, em um deles, exaltou o meio e afirmou que uma fotografia devia representar a individualidade de uma pessoa, não seu sofrimento (p. 171).
Nota-se que o negro forro e o livre, quando se dirigiam a um estúdio, posavam para seu registro, geralmente, vestindo roupas de corte europeizado, sendo aquela uma estratégia de se fazer aceito e incluído por uma sociedade que era branca, exigente, competitiva e racista. Procuravam afirmar a sua dignidade também através da imagem.4 A ex-escravizada, abolicionista e ativista pelos direitos das mulheres Sojourner Truth (1797-1883) foi outra que não exibiu as marcas deixadas pela escravidão no seu corpo; nos vários cartões de visita que tirou e colocou à venda para ajudar a custear suas causas, viagens e discursos (seus retratos vinham acompanhados da frase “I sell the shadow to support the substance”, eu vendo a sombra para apoiar a substância), Truth aparece posando com símbolos que então caracterizavam feminilidade, como o trabalho em tricô e o chale branco (p. 124).
Como vimos, enquanto documento, a fotografia pode servir como objeto de denúncia. Fox-Amato lembra que ela foi usada para expor visualmente o holocausto que o monarca belga Leopoldo II cometeu no Estado Livre do Congo (hoje República Democrática do Congo) a partir de 1885, ao serem publicadas, na primeira década do século XX, na imprensa de vários países, as fotos de pessoas com mãos e pés decepados (sendo que a grande maioria era de jovens e crianças).5 Outras imagens denunciaram, num período posterior à sua produção, mais histórias de torturas e violências. Várias delas, esclarece o autor, foram feitas após a abolição da escravatura nos Estados Unidos e ao mesmo tempo em que as famílias abastadas do Sul do país construíam a sua identidade (ao se autorretratarem para seus álbuns de família) e as redes de supremacia branca. No capítulo 4, “Domesticating Freedom”, ele exibe algumas dessas imagens, além de numerosas outras de regimentos do Norte do país estacionados no Sul durante a Guerra Civil. Nele, o autor mostra os caminhos que a fotografia tomou ao registrar as relações entre soldados e escravizados fugitivos que se juntavam às tropas. Ao pesquisar a correspondência dos soldados, Fox-Amato chama atenção para o fato de que eles tinham seus conflitos próprios sobre hierarquias de “raça” e social, além de dúvidas sobre como ficaria o país sem a mão de obra escravizada. As fotos escolhidas para esse capítulo mostram os negros colocados nas margens dos grupos retratados, alguns mesmo em atitudes e poses subservientes (p. 182, 190, 194, 195, 197, 198, 200, 201 e 213), e evidenciam, segundo o autor, que aquela mídia foi usada como um instrumento mudo de dominação nos acampamentos (p. 189). Nas suas palavras:
Às vésperas da abolição, a fotografia permitiu que os brancos do Norte se apresentassem como libertadores, mesmo quando os auxiliava a moldar visões personalizadas de hierarquia racial através de categorias de domesticação – visões que viveriam muito além do término da guerra e da escravidão (p. 214).
Durante e após os conflitos entre as duas regiões do país, continuaram a ser feitas e divulgadas imagens de torturas e de cicatrizes, algumas de pessoas com ferros presos aos corpos, como a do cativo da p. 179, de 1863. Um cartão de visitas deixou revelado um tipo de violência que era muito comum: o estupro de uma escravizada por seu senhor, pois para aquela foto de 1863, reproduzida na p. 178, posara uma menina “branca”, Rebecca, que nascera no cativeiro. Os ativistas faziam circular evidências de que ex-cativos continuavam a sofrer castigos e punições – a foto das costas e dos braços queimados da jovem de 16 anos, obra de sua ex-senhora da Virginia, em 1866 (p. 220), foi reproduzida também em desenho litografado e publicada na imprensa (p. 221). As práticas visuais continuariam a ajudar no combate às injustiças e na construção dos movimentos sociais, observou o autor, no epílogo (p. 219).
Enfim, o livro de Fox-Amato tem a intenção de mostrar como a fotografia ajudou a moldar os conflitos da escravidão, e como a escravidão ajudou a moldar a fotografia. A imagética da escravidão representa pessoas que foram levadas para serem registradas, que se dirigiram aos estúdios por livre vontade e se autorretrataram ou que foram convidadas (ou não) para fazer parte do retrato de outro(s). O interessante na obra é também, a cada momento, notar o protagonismo daqueles seres humanos enquadrados em suas diversas experiências históricas, e os diferentes usos e interpretações que podiam ser feitos (em muitos casos, que foram feitos) de cada um daqueles registros. O autor chama sempre atenção para o fato de a fotografia ter sido usada como um “instrumento político” – o que é comum de se ver nos séculos XX e XXI, mas não tanto no momento por ele tratado em seu livro, 1839 a 1865. E é principalmente por esses motivos que se mostra tão importante e elucidativo o trabalho considerável de Matthew Fox-Amato de resgate, análise e exibição desse material.
Notas
1 Entre poucos outros que trataram o assunto na historiografia estadunidense, é de grande relevância o livro de Deborah Willis e Carla Williams, The Black Female Body. A Photographic History, Filadélfia: Temple University Press, 2002.
2 Susan Sontag, Regarding the Pain of Others, Nova York: Picador, 2004, p. 13.
3 Mathew Brady (1822/1823-1896) foi um dos fotógrafos americanos mais importantes do século XIX. Ficou conhecido tanto pelos retratos que fez nos estúdios que abriu em Nova York e Washington, quanto pelos registros da Guerra Civil. É considerado um dos “pais” do fotojornalismo. Para mais sobre Brady, uma breve história da fotografia estadunidense, retratos das várias classes da sociedade e imagens da Guerra Civil americana, cf. Robert Wilson, Mathew Brady: Portraits of a Nation, Nova York: Bloomsbury USA, 2013.
4 Trato desse assunto no capítulo 2 do meu livro Negros no estúdio do fotógrafo. Brasil, segunda metade do século XIX, Campinas: Editora da UNICAMP, 2010.
5 A fotografia como documento e objeto de denúncia do regime cruel imposto por Leopoldo II no Congo é um dos temas do capítulo 5 do meu livro Zoológicos Humanos. Gente em exibição na era do imperialismo, Campinas: Editora da UNICAMP, no prelo.
Resenhista
Sandra Sofia Machado Koutsoukos – Pesquisadora independente.
Referências desta Resenha
FOX-AMATO, Matthew. Exposing Slavery. Photography, Human Bondage, and the Birth of Modern Visual Politics in America. Nova York: Oxford University Press, 2019. Resenha de: KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Fotografias e histórias. Afro-Ásia, n. 61, p. 438-449, 2020. Acessar publicação original [DR/JF]
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