Etnografía de los mercados reproductivos: actores/ instituciones y legislaciones | Ana María Rivas Rivas, Consuelo Álvarez Plaza

Se as tecnologias reprodutivas foram criadas originalmente (em 1978) para tratar da infertilidade de casais heterossexuais cis, hoje as técnicas são acessíveis a diferentes grupos de pessoas (lésbicas, gays, pessoas sem parceiro), que desejam constituir um projeto materno/paterno de filiação em solitário ou em casal homossexual, independente, portanto, de uma condição de saúde. A estes se aplica o termo infecundidade estrutural, por não fazerem uso do método convencional de reprodução (relação sexual) e não possuírem problemas de fertilidade (Fernando LORES MASIP; Ana María RIVAS; María Isabel JOCILES, 2020, p. 213).

Esta expansão das tecnologias pode ser compreendida a partir dos avanços na própria reprodução humana assistida, no reconhecimento do direito a maternidade/paternidade de outros grupos sociais e de mudanças na demografia contemporânea e na estrutura familiar (Melinda MILLS; Ronald RINDFUSS; Peter MCDONALD; Egbert VELDE, 2011).

Para tratar desse tema o livro Etnografia dos mercados reprodutivos: atores, instituições e legislações, em tradução livre, reúne os principais resultados relativos ao projeto intitulado “Famílias, centros de reprodução assistida e doadores. Olhares cruzados. Variações segundo modelos familiares e anonimato/não anonimato na doação” desenvolvido pelo grupo de pesquisa liderado por Ana María Rivas Rivas, Consuelo Álvarez Plaza e María Isabel Jociles, da Universidade Complutense de Madri. O grupo tem se dedicado, ao longo das duas últimas décadas, a refletir sobre tecnologias de reprodução assistida desde uma perspectiva socioantropológica, discutindo parentesco, construção de famílias, mercados reprodutivos, gestação por substituição, atitudes e práticas com relação ao anonimato na doação de gametas e monoparentalidade feminina, entre outros temas.

A partir de diferentes enfoques, essa obra coletiva aborda as tecnologias reprodutivas assistidas sob a perspectiva da ampliação do mercado na Espanha, suas conexões com União Europeia, Ucrânia e Estados Unidos e as múltiplas vozes de provedoras e provedores1 de material genético, gestantes por substituição, intermediários nos processos de gestação por substituição e captação de provedoras de óvulos e profissionais de saúde responsáveis por estas práticas.

A Espanha configura um caso interessante de investigação, pois se tornou um importante eixo de tratamentos em reprodução assistida para a Europa e outros países do mundo. É o primeiro país na Europa e o terceiro no mundo em ciclos de reprodução assistida (desde 2016) e primeiro no provimento de ovócitos da Europa (desde 2010) (Diana MARRE; Beatriz SAN ROMÁN; Diana GUERRA, 2018). Sendo um importante destino para tratamentos reprodutivos e para a exportação de ovócitos, considera a gestação por substituição ilegal, conduzindo os residentes interessados no procedimento a se deslocarem para realizar a prática na Ucrânia ou nos Estados Unidos. Num contexto de ampliação da reprodução transnacional, o Brasil, desde 2017, passou a importar ovócitos da Espanha para tratamentos reprodutivos (BRASIL, 2018).

Objetivando lidar com esse contexto complexo, o estudo etnográfico envolveu a realização de trabalho de campo em clínicas reprodutivas de algumas cidades da Espanha, em um banco de sêmen na Dinamarca, entrevistas etnográficas com provedoras de ovócitos e provedores de sêmen na Espanha, com gestantes por substituição na Ucrânia e Estados Unidos e profissionais de clínicas reprodutivas e agentes intermediários na Espanha, Dinamarca, Ucrânia e Estados Unidos.

O primeiro capítulo – “Supongo que si hubiera tenido pasta, no lo habría hecho” – de autoria de María Isabel Jociles está dedicado à discussão do mercado de ovócitos abordando as motivações diversas e variáveis das provedoras e a construção da ideologia do altruísmo. A motivação altruísta ou econômica para ‘doar’ é analisada como uma prática estabelecida a partir de diferentes agentes envolvidos no processo (clínicas, pacientes das clínicas, familiares das provedoras). A ideologia do altruísmo tem um papel fundamental na sustentação do mercado reprodutivo espanhol, juntamente com o anonimato dos provedores e receptores de material genético. As provedoras podem receber 1.200 euros ou mais por ciclo reprodutivo como compensação, havendo renúncia de qualquer direito sobre seu material genético (RIVAS; JOCILES, 2020). O contraste entre razão prática e retóricas da doação pode ser observado no próprio título do capítulo.

Discursos contrastantes quando se trata de mercado de gametas foram analisados por Rene Almeling (2011) no estudo sobre o mercado de sêmen e ovócitos nos Estados Unidos. Ele revelou as diferenças concebidas numa perspectiva de gênero quanto à contribuição de homens e de mulheres nesse processo. A atividade dos homens no processo é descrita em termos da realização de um trabalho (job), enquanto a atividade das mulheres é considerada como uma prática altruísta para ajudar outras mulheres que não podem ter filhos. Caso as mulheres demonstrem maior motivação econômica para ‘doar’ correm o risco de serem descartadas para a prática por clínicas ou agentes.

No segundo capítulo “¿Ayuda o trabajo?: la perspectiva de las donantes de óvulos sobre su participación en la reproducción biológica” Ana María Rivas Rivas e María Isabel Jociles seguem se ocupando do mercado de ovócitos identificando os fatores relacionados a visão das provedoras sobre sua atividade ser considerada uma ‘ajuda’ ou um trabalho. Nesse contexto, o fato de o trabalho ser socialmente compreendido como um emprego assalariado, com contrato e período de tempo determinado exercido num lugar específico borra a compreensão do provimento de gametas como um trabalho, apesar das mudanças estruturais que este tem verificado na atualidade. Sem dúvida, esta situação tende a ocultar que muitas das práticas são trabalho reprodutivo remunerado.

Consuelo Álvarez e José Ignacio Pichardo abordam no capítulo “Semen: el oro blanco de los circuitos reproductivos” os circuitos transfronteiriços de sêmen revelando como este se converteu numa mercadoria com alto valor agregado, um bio-objeto produtivo e lucrativo. Seus achados revelam como se estabelecem ideais de valorização de determinadas identidades biológicas e fenotípicas traduzidas na caracterização de provedores exclusivos.

Seria a adoção uma alternativa para a gestação por substituição? Esta pergunta conduz o capítulo “Elecciones reproductivas: ¿es la adopción una alternativa a la gestación subrogada?” de autoria de Fernando Lores, Ana María Rivas e María Isabel Jociles. Os autores realizam uma análise sobre os processos envolvidos nas duas situações objetivando enfrentar um dos principais argumentos utilizados contra a regulação da gestação por substituição na Espanha. Nesse contexto “as razões econômicas regem a eleição da forma assistida da reprodução, seja a gestação por substituição, qualquer das técnicas de reprodução assistida ou a adoção internacional”2 (Fernando LORES; Ana María RIVAS; María Isabel JOCILES, 2020, p. 218).

Raquel Medina Plana, partindo da antropologia jurídica, realiza nos dois capítulos seguintes – “El discurso de las gestantes por sustitución en relación con el derecho. Un análisis de conciencia jurídica” e “De ‘contra el derecho’ a ‘con el derecho’: la evolución de la conciencia jurídica de las familias de intención en la gestación por substitución” – uma abordagem jurídica ao tratar das pessoas e coletivos envolvidos na gestão das gestações por substituição. De todas as tecnologias reprodutivas a gestação por substituição é aquela que tem sido mais questionada. No centro desses debates figura principalmente seu sentido de transgressão de um tabu e do princípio de estruturação fundamental do direito de família e do sistema cultural de parentesco euro-americano, que a gestação por substituição subverte e perturba: a maternidade. Tendo por base a consciência jurídica, a autora busca entender de que maneira o direito é interpretado e experienciado pelas pessoas e coletivos envolvidos nos processos em suas interações cotidianas e como figura em seus discursos.

Os dois últimos capítulos se dedicam ao fenômeno do surgimento de novos empreendedores na indústria reprodutiva transfronteira. No primeiro deles, “El fenómeno de los nuevos emprendedores en la industria reproductiva transfronteriza: entre la experiencia y la competencia”, Consuelo Álvarez, Ana María Rivas Rivas e Ariadna Ayala analisam o aparecimento de novos perfis profissionais ‘intermediários’, voltados para responder ao aumento das demandas de usuários pelas tecnologias reprodutivas. Trata-se de profissionais especializados em detectar novas necessidades e oportunidades de negócios num contexto de pouca ou ausente regulação legislativa internacional comum. Interessante destacar que entre estes se encontram aqueles que tiveram uma experiência pessoal como usuários da indústria reprodutiva, caso, por exemplo, de algumas gestantes por substituição. Esses profissionais realizam traduções culturais e intermediações entre clientes, clínicas reprodutivas, serviços jurídicos e bancos de gametas.

No último capítulo “Nuevas perspectivas para la investigación y la intervención en el ámbito de la reproducción asistida: retos profesionales en clave internacional”, Ariadna Ayala, Begoña Leyra e Carla Cubillos abordam novas perspectivas para a investigação no campo da reprodução assistida a partir de alguns dilemas bioéticos e debates sociais, em escala europeia e internacional, conectando políticas públicas e formação de profissionais. Partindo de uma análise aprofundada dos posicionamentos feministas sobre as tecnologias reprodutivas assistidas identificam novos campos de atuação e sugerem linhas para formação de pesquisadores e profissionais para atuarem em reprodução assistida em ciências sociais.

A partir de um rico trabalho etnográfico, o livro oferece uma análise acurada sobre as tecnologias reprodutivas no âmbito da ampliação do mercado reprodutivo transnacional, sob a perspectiva de diferentes atores envolvidos. Este contexto convoca investigações interdisciplinares colaborativas internacionais podendo conduzir a uma agenda de governança global conforme sugerido pelas autoras.


Notas

1 O termo provedor(a) em lugar de doador(a) é utilizado para colocar em questão o uso da linguagem da doação com sentido altruísta, na medida que muitos processos relacionados com a captura de material genético para tratamentos reprodutivos implicam algum nível de pagamento ou compensação.

2 No original: “Las razones económicas rigen la elección de la forma asistida a la reproducción, ya sea la GS, cualquiera de las TRHA, o la adopción internacional”.


Referências

ALMELING, Rene. Sex cells. The medical market for eggs and sperm London: University of California Press, 2011.

BRASIL, Agência Nacional de Vigilância Sanitária. 2° Relatório de Importação de Amostras Seminais para uso em Reprodução Humana Assistida. Brasília: Anvisa, 2018.

LORES MASIP, Fernando; RIVAS, Ana Maria; JOCILES, Maria Isabel. “Elecciones reproductivas: ¿es la adopción una alternativa a la gestación sub-rogada?”. In: RIVAS RIVAS, Ana María; ÁLVAREZ PLAZA, Consuelo (eds.) Etnografía de los mercados reproductivos: actores, instituciones y legislaciones Tirant Lo Blanch: Valencia, 2020, p. 213-268.

MARRE, Diana; Beatriz SAN ROMÁN; Diana GUERRA. “On reproductive work in Spain. Transnational adoption, egg donation, surrogacy”. Medical Anthropology, v. 37, n. 2, p. 158-173, 2018.

MILLS, Melinda; RINDFUSS, Ronald; MCDONALD, Peter; VELDE, Egbert. “On behalf of the ESHRE Reproduction and Society Task Force 2011. Why do people postpone parenthood? Reasons and social policy incentives”. Human Reproduction Update, v. 17, n. 6, p. 848-860, 2011.

RIVAS, Ana María; JOCILES, María Isabel. “¿Ayuda o trabajo?: la perspectiva de las donantes de óvulos sobre su participación en la reproducción biológica”. In:RIVAS RIVAS, Ana María; ÁLVAREZ PLAZA, Consuelo (eds.). Etnografía de los mercados reproductivos: actores, instituciones y legislaciones Valencia: Tirant lo Blanch, 2020, p. 95-156.


Resenhista

Rosana Machin – Graduada em Ciências Sociais, doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). É docente na Faculdade de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP). Tem desenvolvido estudos nas temáticas: concepções e práticas em saúde e adoecimento, tecnologias reprodutivas, corpo e corporeidade, gênero, classe, raça/etnia. Integra o grupo de pesquisa Saúde, Interseccionalidade e Marcadores Sociais da Diferença (SIMAS), na Universidade de São Paulo/USP. É coordenadora da Rede Latina de Pesquisadores em Biotecnologias Reprodutivas (Redlibre). E-mail: rmachin@usp.br https://orcid.org/0000-0003-1306-4276


Referências desta Resenha

RIVAS RIVAS, Ana María; ÁLVAREZ PLAZA, Consuelo (Eds.). Etnografía de los mercados reproductivos: actores, instituciones y legislaciones. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2020. Resenha de: MACHIN, Rosana. Bioeconomias reprodutivas transnacionais em foco. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n. 3, e86394, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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