Estranho à nossa porta | Zygmunt Bauman

O presente trabalho de Zygmunt Bauman, é muito rico e capaz de nos informar e, mais que isto, capaz de tornar compreensível um tema contemporâneo, que clama por uma atenção e solução. O tema abordado pelo eloquente sociólogo e filósofo polonês (1925- 2017) se refere à questão da “crise migratória”, que em suas próprias palavras “inunda os noticiários” que comunica seu “avanço sobre a Europa”.

Embora o trabalho seja de sociologia, Bauman com sua categoria o discute transversalmente, com base em estudos e análises históricas, filosóficas e literárias. O autor ressalta que:

Desde o início dos tempos, pessoas batem a porta de outras, fugindo de seus países em função da violência da guerra ou da brutalidade da fome. Para os que estão de dentro, estes hóspedes indesejáveis são sempre estranhos, e estranhos tendem a gerar medo e ansiedade precisamente por serem o desconhecido. (BAUMAN, 2017: 13)

A citação acima pode ser um esboço do que o autor se propõe a estudar e problematizar em seu livro. Em seis assertivos capítulos, o mesmo vai mostrar ou desvendar o que há na obscuridade do mar, que por muitas vezes teóricos e políticos acabam por não enxergar. Isso porque tem seus olhos voltados apenas para o infinito e exuberante azul das águas. Ou ainda porque seus pés só pisam nas areias das praias paradisíacas.

Cada capítulo é instigante e crítico, os mesmos nos fazem perceber a questão da crise migratória por diversos ângulos e vias, ou seja, seu caráter, sociológico, filosófico e histórico. O autor destaca diversos fatores que por sua vez estão imbricados em numerosos interesses, sendo eles políticos, econômicos, supremacia, liderança, etc. O autor nos incita a observar a questão como um problema da sociedade e não do refugiado que se coloca a encarar todos os riscos além-mar em seu “barco de borracha”.

O texto é agradável, inteligível e de uma crível linguagem erudita, ao mesmo tempo um texto leve, que expressa a grandeza da narrativa do autor. Recorrendo aos diversos veículos de comunicação – telejornais, jornais e revistas impressos, redes sociais e internet em geral – e aos discursos políticos, Bauman analisa o tema numa ótica transdisciplinar.

Vale aqui destacar que a resenha do livro é uma compilação de cada um dos seis capítulos que o constitui, porém se um ou outro capítulo da obra tenha sido mais destacado, isso não quer dizer que tenha havido uma prévia escolha dos mesmos para ser mais enfatizado. Este trabalho foi se dando naturalmente e cada um foi desenvolvido de acordo a leitura apurada e a interpretação que tive de cada um. Assim segue abaixo a resenha completa deste interessante livro.

No primeiro capítulo, intitulado “O pânico migratório e seus (ab) usos”, o autor aborda diversas questões que motivam, ou melhor, obrigam os refugiados a saírem de suas pátrias. O olhar a este “estranho” por parte do europeu, o uso político e econômico desta tragédia humanitária, bem como os “medos” de ambas as partes desse conflito, os que chegam e os anfitriões.

As grandes áreas urbanas e desenvolvidas da Europa atraem os refugiados que incessantemente buscam escapar da miséria, da guerra e da degradação de todos os tipos que sofrem em seu país de origem. Acerca desta questão, Bauman traz dois termos que são antagônicos, porém capazes de dar conta da explicação de tais questões que envolvem as duas partes envolvidas neste processo. Tais partes são chamadas pelo autor de, “mixofilia” e “mixofobia”, que estão relacionadas a dois impulsos simultâneos. Nas palavras dele (BAUMAN, 2017: 15) “o primeiro impulso é a principal atração da vida urbana, e o segundo, pelo contrário, é sua aflição mais assustadora, em especial aos olhos dos menos afortunados e privilegiados”. Com estes termos o autor mostra que, as cidades europeias e/ou estadunidenses são vistas pelos refugiados como verdadeiros refúgios, capazes de lhes devolverem a calma e a paz. Na contramão deste olhar esperançoso e confiante, está a observação dos europeus que vivem nestas cidades, estes por sua vez se desesperam ao verem seu “bem estar” ameaçados por “estranhos” que agora caminham pelas mesmas ruas. Este estranhamento de uns com os outros é construído, sobretudo através dos discursos políticos e do sensacionalismo midiático que semeiam o “terror”, questão esta que é analisada mais profundamente no próximo capítulo.

Continuando a análise dos usos políticos da questão dos refugiados, nas quais as potências europeias e os Estados Unidos com sua perniciosa estratégia, ligam os refugiados a terroristas, pessoas portadoras de doenças extremamente nocivas, além de propagarem também aos cidadãos, o risco da disseminação da religião islâmica. O autor destaca que com este discurso os políticos atinge “sucesso” sob dois aspectos: amedrontam seus cidadãos, cultivando a hostilidade entre eles e os “estranhos”, além de camuflarem os reais problemas internos do país, tais como: educação, saúde, moradia, distribuição de renda, etc. Estas tendências de “securitizar” o “problema da migração” e se beneficiar dela, de acordo a (BAUMAN, 2017: 46) “são reforçadas pelo número crescente de governos que endossam oficialmente o “pânico de segurança” da população concentrando-se nas vítimas da tragédia dos refugiados, e não nas raízes globais de seu trágico destino”.

Ainda sob a ótica crítica das políticas de migração estabelecidas pelas grandes potências europeias e em especial aos EUA, Bauman magstralmente escreve o terceiro capítulo, “Sobre a trilha dos tiranos (ou tiranas)”. Os tiranos modernos, na interpretação do sociólogo, deveriam pensar e concretizar políticas racionais, de solidariedade e sociabilidade, com o objetivo de solucionar o problema da migreção. Em suas próprias palavras, descreve que “em vez de muros, precisamos construir pontes”. Deixando assim muito bem explícitas suas críticas às várias e nefastas políticas adotadas, principalmente pelos EUA. Basta acompanharmos as tentativas do presidente Donald Trump de colocar em prática a construção do muro que separa a fronteira de seu país com o vizinho México.

Citando o filósofo Kant, bem como o historiador Mcneill. Bauman faz do quarto capítulo de sua obra, o mais histórico e filosófico. Quando trata do direito natural que o ser humano tem de migrar-se. Penso que essa análise e interpretação nos leva a compreender ainda mais, que este globo terrestre divisível, é fruto das aspirações e ações humanas. Ou seja, o sentido de pátria, nação, país, continente, enfim, todas as denominações geográficas e territoriais, são invenções históricas do homem e não do tempo regido pela natureza. Historicamente, para usar as palavras do autor, estivemos “juntos e amontoados”.

O quinto capítulo adjetiva os refugiados de maneira trágica e menosprezível, nomeado pelo autor de “Problemáticos, irritantes, indesejáveis: Inadmissíveis”. No entanto, estes adjetivos não são resultados de meras escolhas, feitas de maneira aleatória. Pelo contrário, estes expressam o sentimento dos europeus, bem como as ações políticas estatais ao tratamento com os refugiados. Estas políticas de “refutação” ou “aceitação” afogam paulatinamente os sujeitos nas burocracias do Estado.

Além disso, o livro expressa alguns pressupostos que tendem a se expandir e fortalecer de acordo ao que estamos assistindo atualmente sobre a questão migratória. A grandeza e emergência acerca desta questão podem ser por nós assistida a cada dia pelos telejornais e, no caso do Brasil, não se faz necessário assistir televisão, basta que vá ou esteja em Roraima para que possa observar de perto, ou melhor, em meio aos refugiados a realidade de imigrante. Assim podemos perceber que este não é um fenômeno tipicamente europeu ou estadunidense. Pois “estranhos” estão “batendo à nossa porta” também. As perguntas que podemos fazer são: Está a porta aberta aos refugiados das mazelas venezuelanas? Até quando irão entrar? Que tipo de anfitriões estamos sendo?

O sexto e último capítulo da obra é marcado por um retorno que o autor faz às suas análises filosóficas, mais uma vez recorrendo a Kant, acrescentando Hannah Arendt. A partir destes, Bauman pauta sua discussão acerca da moral, da ética e da responsabilidade humana do cuidado uns dos outros.

A análise parte de um olhar crítico sob a ótica bem contemporânea de como as pessoas vivem, como veem a si mesmos e o mundo do qual fazem parte. Faz uma relação entre sociedade e tecnologia virtual, internet e redes sociais. Nesta perspectiva salienta (BAUMAN, 2017: 101) que, “agora habitamos, de modo sem precedentes, dois mundos diferentes, o “on-line” e o “off-line” […] com muita frequência conseguimos estar nos dois mundos ao mesmo tempo”.

Muito intrigante a metáfora utilizada pelo autor para apresentar como muitas vezes nos omitimos de questões que estão à nossa volta “batendo à nossa porta”, nos refugiando virtualmente das reais questões que estão a nossa volta. Desta maneira, Bauman vai dizer que é muito mais difícil estarmos no mundo off-line, pois este é o mundo real que nos cobra atitude, ação e opinião acerca do mesmo. Ao contrário, facilmente recorremos ao mundo on-line, tendo em vista que este mundo é fantasioso e, constitui um cenário no qual podemos nos omitir de ter atitude, dar opinião, etc. Ou seja, este mundo virtual nós controlamos, selecionamos o que queremos ver e no que queremos participar.


Referência

BAUMAN, Zygmunt. Estranho à nossa porta. Tradução Carlos Alberto Medeiros. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2017.


Resenhista

Evandro Pereira de Lima – Mestrando no PPGH UNIOESTE, Campus de Marechal Cândido Rondon. Bolsista do CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.


Referências desta Resenha

BAUMAN, Zygmunt. Estranho à nossa porta. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. Resenha de: LIMA, Evandro Pereira de. Tempos Históricos, v. 23, n.1, p. 736-740, 2019. Acessar publicação original [DR/JF]

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