Estados Unidos. Uma História | Vitor Izecksohn

Vitor Izecksohn é professor do Instituto de História da UFRJ e pesquisador do CNPq e tem tido, nos últimos anos, uma trajetória dupla. De um lado, é autor de vários estudos relacionados à história militar brasileira, especialmente no diálogo com a história social. Destacam-se, nessa produção, seus trabalhos relacionados ao exército imperial: a formação do corpo de oficiais, o recrutamento, a organização das milícias, etc. De outro, ele é um especialista na história dos Estados Unidos, especialmente a história militar, entre a independência e o final da Guerra Civil, ou seja, entre 1776 e 1865.

No primeiro livro aqui resenhado, publicado pela Editora Contexto em 2021, ele utiliza o seu amplo conhecimento do período para apresentar ao leitor uma obra introdutória, voltada a um público amplo, sobre a trajetória dos Estados Unidos naquelas décadas cruciais nas quais um modesto grupo de colônias recém independentes do Reino Unido foi se transformando e crescendo em termos territoriais, demográficos e econômicos em uma velocidade e escala que nunca tinha sido vista em nenhum lugar do mundo. Foi o momento de nascimento dos Estados Unidos como conhecemos hoje e que se afirmaria como superpotência no século XX.

O autor apresenta o processo pelo qual uma República agrária, descentralizada e dominada pelos grandes proprietários de terras da Nova Inglaterra foi sendo atingida e permeada pelo nascente capitalismo e pelos ideais democráticos, especialmente no estados do Norte. O resultado foi o surgimento de uma economia industrial, de um Estado crescentemente centralizado e de um sistema político moderno, com partidos, propaganda eleitoral e um corpo de eleitores cada vez mais amplo.

Para dar conta desse processo, o autor enfatiza, com propriedade, o grande problema a ser enfrentado para que aquele novo país emergisse: a escravidão, a qual havia produzido uma sociedade, nos Estados do Sul, diversa em termos econômicos, sociais e políticos. Conciliar as duas partes dos Estados Unidos dentro de um mesmo Estado havia exigido uma engenharia política cuidadosamente calibrada – oscilando entre o compromisso e a omissão – desde 1776. Essa engenharia se revelou incapaz de dar conta da nova realidade de meados do século XIX, quando ficou claro que, longe de estar em processo de desaparecimento, a escravidão adquiria um novo impulso a partir da substancial reprodução demográfica dos escravos e da renovada lucratividade derivada da imensa demanda de algodão pela nascente indústria têxtil.

O quadro se tornou ainda mais instável depois da conquista de metade do México em 1848 e a necessidade de dividir os despojos. As tensões entre Sul e Norte aumentaram a tal ponto que dois projetos de países acabaram emergindo e uma guerra entre as duas partes (para defender a escravidão ou para manter unido o país) deixou de ser possível para ser quase inevitável, ensanguentando os Estados Unidos. A Guerra Civil de 1861 a 1865 ocupa metade do livro e de forma justa, pois foi essa a guerra que permitiu que um projeto de país moderno, industrial e democrático (no sentido liberal do termo) vencesse, ainda que, como é conhecido, as marcas da escravidão e do racismo estrutural continuem a marcar a sociedade estadunidense.

É impossível ler o livro e não pensar na sociedade brasileira, onde o projeto de uma economia colonial e escravista e de uma sociedade autoritária e brutalmente desigual continua em vigor e sem sinais de ser superado. Se os Estados Confederados tivessem triunfado, as possibilidades do país daí resultante ser muito parecido com o Brasil atual seriam muito altas. Na verdade, das três grandes sociedades escravistas das Américas – o sul dos Estados Unidos, o Brasil e Cuba – a única que não passou por uma guerra civil ou por uma revolução foi o Brasil e isso talvez ajude a explicar a força do atraso no Brasil. É essa uma discussão muito ampla para ser tratada a contento, obviamente, aqui, mas que é estimulada pela leitura do excelente livro de Vitor Izecksohn.

É justamente a perspectiva comparada que o autor busca no segundo dos seus livros aqui resenhados, publicado pela Editora Alameda em 2019. Nele, o foco está nas duas maiores guerras da história do continente americano, ou seja, a Guerra Civil ou de Secessão (1861-1865) e a Guerra do Paraguai ou da Tríplice Aliança (1864-1870). Mais especificadamente, a atenção é dirigida ao problema do recrutamento militar, ou seja, a necessidade de conseguir soldados no contexto de duas guerras longas e desgastantes. Como os beligerantes nos Estados Unidos e o Império Brasileiro conseguiram resolver o angustiante problema de manter os efetivos das forças a medida em que o entusiasmo inicial desaparecia e havia necessidade de coerção para forçar os homens a se alistarem?

O problema do recrutamento militar incitou, nas duas sociedades, discussões e crises semelhantes e problemas comuns a enfrentar: as negociações entre um poder central fraco e forças regionais poderosas, o significado de patriotismo, cidadania, honra e união nacional em sociedades total ou parcialmente escravistas, a utilização ou não de soldados negros nos campos de batalha e a forma de fazer isso, etc. Ao mesmo tempo, as respostas e soluções não foram as mesmas. Os escravos recém libertados foram, por exemplo, um reforço fundamental para os exércitos da União e também para os do Império na fase final das duas guerras. No entanto, em termos absolutos e proporcionais, eles foram mais importantes, no cômputo geral, para as forças da União do que para as imperiais. Nessas, contudo, a presença de negros livres era maior do que no caso americano, onde as forças em conflito eram majoritariamente brancas.

O livro destaca, especialmente, os efeitos dessas guerras e dos esforços de recrutamento na evolução posterior dos dois países. Nos Estados Unidos, o fim da escravidão abriu as portas para o surgimento de um Estado centralizado (ainda que não no nível dos europeus no mesmo período), para a decolagem da economia industrial e para a construção da cidadania dos afrodescendentes, ainda que muitas conquistas tenham sido revertidas após o período da Reconstrução e o sul do país continuasse pobre e atrasado. Já no Brasil, a guerra não resolveu de imediato os conflitos entre centro e periferia, a escravidão se manteve e a economia permaneceu no seu padrão agrário-exportador.

Convém nuançar essa discussão para evitar confusões: a Guerra do Paraguai trouxe, com certeza, questões fundamentais para o debate público brasileiro, em um viés progressista e, ao final, foi um elemento que colaborou para o fim da escravidão e o fim do Império, modernizando o país. Já nos Estados Unidos, a modernização foi limitada, especialmente nos estados do Sul, e não se imagina que foi apenas a vitória do Norte sobre o Sul que mudou o país: a grande imigração, o aprofundamento do capitalismo industrial e outros fatores estruturais teriam continuado a agir mesmo sem a Guerra Civil. O que quero destacar é que a Guerra Civil eliminou várias arestas e problemas para esse capitalismo se desenvolver nos EUA, enquanto a Guerra do Paraguai fez o mesmo no Brasil apenas em escala menor e de forma indireta.

Aqui vale uma comparação estatística. Em 1860, conforme os dados levantados por Abreu e Lago (2010, p. 4-5), o PIB per capita dos Estados Unidos era o dobro do brasileiro, mas, apenas trinta anos depois, em 1890, já era cinco vezes maior. Isso indica claramente como a Guerra Civil ajudou os Estados Unidos a crescerem, enquanto a guerra contra o Paraguai legou ao país apenas benefícios indiretos em termos de modernização política e econômica.

Esse livro representa o melhor que a história comparada pode oferecer. O autor escolheu duas realidades suficientemente próximas e distantes para que a ferramenta comparativa produzisse resultados expressivos em termos de conhecimento. Ele identificou problemas e questões semelhantes e as diferentes respostas que as duas sociedades deram a eles. Ele não se limitou, aliás, a uma comparação em nível bibliográfico, mas também fez pesquisa primária nos dois países. Dentro dos limites estabelecidos pelo autor (o recrutamento, a escravidão e a construção dos Estados nacionais), o trabalho se configura como um clássico, insuperável para os que queiram estudar esses temas.

Pensando agora em sugestões e possíveis avanços a partir do realizado, a perspectiva da história global poderia ser útil para analisar ainda com mais profundidade os dois conflitos. A Guerra Civil americana e a Guerra da Tríplice Aliança fazem parte de um conjunto maior, de uma crise geral de construção de Estados, nações e impérios que marcou a segunda metade do século XIX e que incluem as revoluções liberais de 1848, as guerras de unificação da Itália e da Alemanha, a reconfiguração do Domínio do Canadá e do Estado argentino, etc. Ao mesmo tempo, o quadro internacional da década de 1860 deveria incluir, para ser completo, não apenas o mencionado acima, como também a renovada ação da França e da Espanha na América Latina (com destaque para a instauração do Império de Maximiliano no México, a anexação de São Domingo pela Espanha e a guerra entre esse país e as repúblicas andinas), a expansão imperial francesa e britânica na África e na Ásia, a insurreição polonesa, etc. Ou seja, o quadro apresentado por Izecksohn é apenas uma possibilidade de recorte para uma época particularmente sangrenta no mundo euro-atlântico. Isso não diminui obviamente o valor do livro, mas indica outras possibilidades dentro da temática.

Outra perspectiva que poderia trazer bons resultados seria a da história transnacional, ou seja, não apenas comparar, mas entender os vínculos entre os vários fenômenos e casos e os canais pelos quais as experiências e as pessoas circulavam e se influenciavam. Quando se estuda, por exemplo, o processo de criação do Império de Maximiliano no México em 1864, por exemplo, fica evidente como um dos modelos imperiais imaginado por ele era justamente o Império Brasileiro, governado por seu primo, e que ele tinha visitado antes. Do mesmo modo, a reação negativa ao projeto nas repúblicas hispânicas veio da ação espanhola nas costas do Pacífico e da visão negativa que muitas delas tinham do Império Brasileiro. Já o representante do Império Mexicano nos Estados Unidos nos Estados Unidos era o cônsul da Áustria, mas com conexões com os franceses e com industriais americanos (Bertonha, 2020). Vínculos e conexões estão mais presentes do que as histórias nacionais isoladas podem captar.

No tocante aos dois conflitos aqui analisados, ainda há muitos pontos que merecem aprofundamento. Já sabemos como os debates sobre a escravidão no Brasil foram profundamente afetados pela Guerra Civil nos Estados Unidos, tanto na imprensa como no Parlamento (Oliveira, 2017), incluindo o medo de que o tráfico interno acabasse por levar o Império a uma guerra civil semelhante (Marchese, 2017). Também já temos algum conhecimento sobre as relações diplomáticas entre a União, os confederados e o Império Brasileiro (cf. Oliveira, 2017). No entanto, os canais de comunicação entre as duas realidades mereceriam um estudo mais detalhado. Quais jornais eram lidos e transcritos de lado a lado, por defensores da escravidão ou abolicionistas? Como os canais diplomáticos alimentaram perspectivas e posturas? E os imigrantes confederados, teriam colaborado nesse debate? Como?

Do mesmo modo, em termos estritamente militares, há inúmeras questões a serem abordadas. A Guerra do Paraguai começou praticamente ao final da Guerra Civil nos Estados Unidos, o que significa que a experiência militar acumulada nos Estados Unidos estaria disponível para uso pelos militares brasileiros ou paraguaios. Claro que a realidade militar da União era muito diferente da brasileira: de um lado, uma potência industrial capaz de mobilizar e suprir milhões de homens e com uma ampla rede ferroviária com a qual mover seus exércitos; de outro, um país agrário e que lutava numa área inóspita, com poucas vias de comunicação a não ser as fluviais. Ainda assim, as condições sanitárias, o tipo de armamento, o estado da arte da logística e outros aspectos eram muito semelhantes (Gonçalves, 2020), o que significa que havia o que se aprender com a experiência do outro.

Em outras palavras, se a experiência americana foi estudada em detalhes pelos exércitos europeus (Luvaas, 1988), é difícil crer que os militares brasileiros ou paraguaios não tenham prestado atenção ao que tinha acabado de acontecer no grande vizinho do norte e procurado repensar suas armas, táticas e logística.

Os militares americanos foram pioneiros, por exemplo, no uso de balões de observação e o Duque de Caxias também os utilizou no Paraguai. Há referências ao fato de ele ter se inspirado na experiência dos exércitos do Norte e que ex-militares da União colaboraram na sua construção (Vas, 2012). Relatórios sobre o uso de rifles na Guerra Civil Americana, por exemplo, circulavam entre os militares brasileiros no início da década de 1870 (Gonçalves, 2020, p. 55), mas é provável que ponderações sobre armamentos e táticas tenham acontecido já durante a guerra. Isso indica que diálogos aconteceram. Mas quais teriam sido os canais? Observadores militares brasileiros, oficiais ou informais, nos campos de batalha da América do Norte, leitura de relatórios enviados por adidos ou de artigos de jornais? E teria o Exército Brasileiro contratado assessores, veteranos da guerra apenas terminada, para ensinar aos seus soldados a guerra moderna? No caso dos balões de observação, foram contratados essencialmente técnicos, mas e em outros campos?

Há uma menção, em um livro já antigo (Williams, 1955, p. 262-265), que o general confederado Beareugard teria recebido uma oferta do Exército Brasileiro para assumir uma posição em 1865. O caso demandaria mais investigação, mas seria um entre vários? Haveria assessores confederados ou da União aconselhando oficiais brasileiros na utilização de novas armas e táticas em Tuiuti ou Lomas Valentinas? Ou os instrumentos do diálogo eram outros? Enfim, mais questões do que respostas, mas, se algum historiador quiser responde-las, os livros de Vitor Izecksohn serão, com certeza, um ponto de partida obrigatório.


Referências

ABREU, Marcelo de Paiva; DO LAGO, Luiz Aranha Correa. A economia brasileira no Império, 1822- 1889. Texto para discussão 584, Departamento de Economia, PUC/RJ, 2010.

BERTONHA, João Fábio. Representing Austrian, American, and Mexican Interests: Consul Charles Frederick de Loosey in Emperor Maximilian’s Diplomacy, 1864–1867. Journal of Austrian-American History, v. 4: 73-92, 2020.

GONÇALVES, José Leandro Clemente. Três Guerras, Uma Mesma Maneira de Combater: a tática nas guerras de meados do século XIX nos casos das guerras da Crimeia (1853-1856), da Secessão Americana (1861-1865) e do Paraguai (1864-1870). Diálogos (Maringá), v. 24, n. 3: 43-63, 2020.

LUVAAS, Jay. The military legacy of the Civil War: The European Inheritance. Chicago, IL: Lawrence: University Press of Kansas, 1988.

MARCHESE, Rafael. The Civil War in the United States and the crisis of slavery in Brazil. In: Doyle, Don. (Ed.). American Civil Wars. The United States, Latin America, Europe and the crisis of the 1860s. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2017, p. 222-245.

OLIVEIRA, Juliana Jardim Oliveira e. A Guerra Civil no espaço Atlântico: a secessão norte-americana nos debates parlamentares brasileiros (1861-1865). Tese de Doutorado (História). Mariana: Universidade Federal de Ouro Preto, 2017.

VAS, Braz Batista. Os Balões de Observação na Guerra do Paraguai: considerações historiográficas. Revista da Unifa, v. 25, n. 31: 34-56, 2012.

WILLIAMS, T. Harry. P.G.T. Beauregard: Napoleon in Gray. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1955.  p


Resenhista

João Fábio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá (UEM). Maringá-PR, BR. E-mail: fabiobertonha@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-5194-5632


Referências desta Resenha

IZECKSOHN, Vitor. Estados Unidos. Uma História. São Paulo: Contexto, 2021. Duas Guerras nas Américas: Raça, Cidadania e Construção do Estado nos Estados Unidos e Brasil (1861-1870). São Paulo: Alameda, 2019. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Cidadania, recrutamento e construção do Estado. Brasil, Estados Unidos e as guerras nas Américas na década de 1860. Diálogos. Maringá, v. 26, n. 2, p. 193-198, mai./ago. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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