Espanca | Luz Ribeiro

Um novo fenômeno de poesia oral e performática cresce no mundo contemporâneo: são os chamados slams — competições ou batalhas de poesias que dão vez e voz a poetas da periferia, os quais versam sobre as adversidades do seu cotidiano, abordando temas como racismo, violência, drogas, machismo, sexismo, sempre de teor crítico e engajado, que requerem a escuta, a reflexão e a politização do seu público-ouvinte.1

Luz Ribeiro, poeta paulistana, versátil na arte da palavra, enquadra-se neste cenário. É a primeira mulher a vencer a final do campeonato brasileiro de poesia falada, Slam BR, e a representar o Brasil na Copa do Mundo de Slam na França, Slam Nation et Coupe Du Monde.

Antes de apresentar como se deu a aproximação com o seu livro duplo Espanca e Estanca e compartilhar minhas percepções de leitura, acredito ser fundamental contextualizar um pouco mais o que venha a ser o Slam e o seu surgimento. Para isso, mais uma vez, recorro ao trabalho de Cynthia Agra de Brito Neves:

A palavra slam é uma onomatopeia da língua inglesa utilizada para indicar o som de uma “batida´ de porta ou janela, seja esse movimento leve ou abrupto. Algo próximo do nosso “pá ´ em língua portuguesa. A onomatopeia foi emprestada por Marc Kelly Smith, um trabalhador da construção civil e poeta, para nomear o Uptown Poetry Slam, evento poético que surgiu em Chicago, em 1984. O termo slam é utilizado para se referir às finais de torneios de baseball, tênis, bridge, basquete, por exemplo. Smith nomeou também de slam os campeonatos de performances poéticas que organizava e no qual os slammers (poetas) eram avaliados com notas pelo público presente, inicialmente, em um bar de jazz em Chicago, depois nas periferias da cidade. A iniciativa “viralizou´, como se diz hoje, contagiando outras cidades dos Estados Unidos e, mais tarde, ganhou o mundo.2

No Brasil, os slams — campeonatos de poesia falada — seguem com características semelhantes: os poetas são avaliados pelo público e os eventos ocorrem nas periferias das cidades brasileiras. Fruto do trabalho coletivo das mulheres no campo literário, a criação do Slam das Minas já tem desdobramento em vários estados brasileiros. Luz Ribeiro, por exemplo, é membro do Slam das Minas – SP3 e, após se tornar a primeira mulher campeã do Slam BR, passou a circular ainda mais por diferentes geografias apresentando sua performance poética.

O primeiro contato que tive com a performance de Luz aconteceu justamente por isso: ela era uma das convidadas da 3ª edição da Balada Literária que ocorreu em Salvador4 , como desdobramento da 12ª edição da Balada Literária de São Paulo, e eu estava na plateia e ela também. De repente, um dos curadores do evento, o escritor Marcelino Freire (o outro curador da edição soteropolitana foi o poeta Nelson Maca), apresenta Luz e a convoca para partilhar conosco seu slam. Foi quando, então, pude me arrepiar com seu “menimelimetros´. Não só eu, mas toda a plateia vibrou com aquela voz poderosa que sabia exatamente como conduzir a palavra e não deixar dúvidas de que os nossos corpos também são textos. E uma coisa ficou evidente para mim naquele momento: a importância do jogo entre corpo e voz e o ritmo e as rimas que capturam o público no slam.

Portanto, tendo contato, primeiro, com a palavra falada da poeta, tive vontade de conhecer o seu livro duplo: Espanca e Estanca, do qual me falara ainda na ocasião da Balada Literária. 7odo esse preâmbulo é para registrar um fato importante: a poesia contemporânea produzida por jovens negros periféricos surge, muitas vezes, pela existência dos saraus, dos espaços comunitários em que palavra e corpo compõem textos vivos e vibrantes. Não é à toa que a poeta versa:

[…] por isso escrevo, porque suspeito que ler só

não basta […]

Em outro trecho do mesmo poema, continua:

[…] as escolas me causaram traumas imensuráveis

não admiro instituições de ensino valorizo cada sarau que dá voz a um todo […]

A trajetória de Luz Ribeiro como poeta, por exemplo, ganha força depois que ela participou do primeiro sarau de poesia na periferia, na Cooperifa, no final de 2011.5 É em espaços como esse que os jovens com anseios literários percebem a existência de uma poesia que dialoga com suas vidas‑ afinal, é comum escutar ou ler versos que falem de medo, de anseios e da luta diária do negro brasileiro. Por tal consciência, Luz Ribeiro emprega a coloquialidade e a oralidade em favor de sua poética, trazendo em seus versos questões que permeiam a periferia, o ser mulher, o ser mulher negra e as questões de afetividade.

Todo livro começa pela capa. E os tons verdes musgo se desfazendo e formando o plano de fundo para os títulos Espanca e Estanca, junto com o nome da autora na cor branca, em caixa baixa, revelam, ao que parece, o desejo pelo deslocamento e pela leveza. É fácil invocar, pelos títulos, outras cores, como o vermelho, mas a autora evidencia sua liberdade poética desde o início. Depois do seu livro de poemas Eterno contínuo (livro independente, selo do burro), lançado em 2013, Luz Ribeiro coloca no mundo “seus segundos filhos que decidiram nascer juntos´, como aponta o texto da orelha do livro. Com títulos e textos contrapostos, o conteúdo mantém- se totalmente em caixa baixa e a tipografia dos poemas é perpassada por verdes e roxos em degradês. Aqui, me parece que a poeta nos revela seu cuidado estético nos mínimos detalhes, a tipografia colorida parece um sinal de pluralidade que permeia seu texto, a metamorfose do seu ser no mundo, e a visão ampliada pelo olhar interseccional, cruzando raça, classe e gênero.

A urbanidade da selva de pedras paulistana está marcada na poesia de Luz, assim como a forte presença do mar como desejo de outras formas de viver. O direito à memória me parece a pedra fundamental para compreender a sua poética e é, também, ao meu ver, o fio condutor que amarra os dois livros em um único exemplar:

[…] como faz para apagar uma lembrança?

quem estanca o que a memória espanca? […]

Consciente do seu lugar de fala, sua poesia carrega a metáfora do voo, para além do lirismo onírico, carrega um olhar cuidadoso, que passeia planando pela cidade, para revelar saberes e contradições:

[…] Eu tenho minha própria língua há [ainda] quem fale por mim […]

Antes da poeta, existe um corpo que lhe dá sustento, e esse corpo, que não passa despercebido em um cenário machista e sexista como o brasileiro, é também motor dos seus versos:

[…] minhas estrias são mapas que não me levam a lugar algum são marcas de uma cansável aceitação de quem já ousou caber nos incabíveis: 38, liso, moda, mídia, média… fracasso, eu não me caibo meu mundo é vasto número 44 punho de aço

cabelo em riste o abraçar insiste mas me mudo fácil solidão persiste […]

Seus poemas engajados revelam uma poeta consciente de seu lugar no mundo.

[…] fomos obrigados a tramar o futuro sussurrando […]

Na métrica de Luz encaixam-se os infinitos “casos isolados´ de violência contra os negros brasileiros. Nomes como Amarildo, Cláudia e Luana não nos deixam esquecer o horror, muitas vezes perpetrado pelo Estado, através da Polícia Militar.

[…] e você….

você sabe quem foi cláudia? você sabe quem foi luana? […]

E a poeta segue com seus versos:

[…] podia ser um coro, um coral a notícia impressa não cita os nomes ignora os coadjuvantes emudece os municípios são somente 19 corpos calados o opressor é a tecla mute do oprimido

[…]

Muitos temas cabem nos versos de Luz Ribeiro, que não se limita à poesia engajada: a cumplicidade, o amor e os prazeres confiados à liberdade da vida privada também permeiam seus versos. É a resistência por meio do afeto. É, antes de tudo, também o resgate da humanidade do ser negro, que luta contra o racismo sistêmico brasileiro e compartilha sua subjetividade com o mundo.

sobre apaixonar-se

frio no estômago atinge o miocárdio sensações que iniciam beijos e abraços quentes findam molhando os lençóis amornando-nos em fim

O livro duplo Espanca e Estanca, de Luz Ribeiro, merece uma leitura atenta por parte dos interessados na literatura contemporânea e nos interessados em compreender uma lírica embebida nas complexas relações de gênero e classe que perpassam o corpo negro.

[…] que esses versos poucos que esses versos soltos que esses versos tolos sejam minha sincera oferenda

que brota do meu peito encruzilhada da minha mão cadência errada da minha mente muito cansada e vire fruto pela língua navalha afiada […]

O livro, enfim, revela mais uma voz insubmissa nesse país genocida chamado Brasil. Com o poder da palavra, a poeta sentencia:

[…] já fizemos muitos minutos de silêncio

agora serão gerações e gerações de barulho! […]

Boto fé!


Notas

1 Cynthia Agra de Brito Neves, “Slams – letramentos literários de reexistência ao/ no mundo contemporâneo´, Linha D’Água, v. 30, n. 2 (2017), p. 92.

2 Idem, p. 93.

3 https://www.facebook.com/SlamdasMinasSP/ , acesso em 09/01/2018.

4 https://livrariabotocorderosa.com/, acesso em 09/01/2018.

5 https://tvbrasil.ebc.com.br/ acesso em 9 /1/2018.


Resenhista

Evanilton Gonçalves – Escritor. E-mail: evaniltongoncalves@gmail.com


Referências desta Resenha

RIBEIRO, Luz. Espanca. São Paulo: Quirino, 2007. RIBEIRO, Luz. Estanca. São Paulo: Quirino, 2007. Resenha de: GONÇALVES, Evanilton. Espanca e Estanca, livro duplo de Luz Ribeiro expõe a versatilidade literária da jovem poeta paulistana. Afro-Ásia, n. 57, p. 221-224, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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