Elisa Branco: uma vida em vermelho | Jorge Ferreira

A biografia é um gênero antigo, que tem forte apelo entre os leitores. Segundo informações de um dos nossos mais importantes autores do gênero, o jornalista Lira Neto (2022, p. 41), a mais antiga publicação desta modalidade de que se tem notícia foi escrita há 2.500 anos, uma autobiografia, talhada em pedra, na antiga Pérsia. A partir daí, trajetórias de vida nunca deixaram de ser objeto de interesse dos leitores.

Como gênero historiográfico, embora nunca tenham deixado de ser produzidas, as biografias receberam críticas de variadas origens, por terem contribuído para o enaltecimento de grandes heróis ou para a divulgação de vidas fictícias; por serem lineares ou se configurarem em exemplos de vida a serem seguidos pela posteridade; ou, ainda, por serem produzidas de forma apartada do contexto em que tais personalidades – em geral proeminentes – encontravam-se inseridas. Tais críticas levaram a um relativo descaso dos historiadores em relação ao gênero (Avelar, Schmidt, 2018, p. 9), debate hoje que consideramos já superado, tendo em vista a vasta expansão das produções biográficas entre os historiadores.

Um dos exemplos é o próprio autor do livro que resenhamos. Jorge Ferreira possui uma vasta e significativa produção bibliográfica, que o alça ao patamar de um dos maiores estudiosos brasileiros da história do Brasil republicano. Esta é a segunda biografia produzida por Ferreira, depois do grande sucesso de vendas que foi João Goulart, uma biografia (Ferreira, 2011). O historiador tem concentrado seus estudos sobre o trabalhismo, a história das esquerdas e a história do Brasil republicano, especialmente entre o pós-1945 e o golpe de 1964. Por essa razão, a trajetória de uma comunista nascida em 1912, cujo auge da vida foi na década de 1950, captou o interesse do autor, que por conhecer com profundidade o período, pôde construir uma análise da trajetória de vida de Elisa Branco (1912-2001). Tal análise não se limitou a suas vivências pessoais, mas envolveu de forma crítica os principais acontecimentos do período, entre eles a própria história do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na abertura do livro o recado ao leitor é explícito: “Aviso que o livro é sobre a vida de Elisa Branco, mas também trata da história do Partido Comunista e do próprio país.”

Para este fim se valeu de um conjunto amplo e diversificado de fontes primárias, orais, escritas e digitais, destacando-se entre elas a imprensa, os arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), relatos escritos pela própria Elisa Branco, entrevistas com seus familiares, arquivos privados, entre outras. Em que pese esse vasto aparato documental, alguns momentos da trajetória da biografada não foram contemplados, o que é natural nas biografias. Não se pode ter a intenção de biografar alguém como quem descreve uma identidade fixa, mas sim analisar traços fragmentados de uma vida, com seu caráter múltiplo e eventualmente paradoxal (Oliveira, 2018, p. 65).

O que de pronto me chamou a atenção no livro foi o texto, ou seja, o estilo de redação. Claramente o objetivo do autor, antes de produzir uma tese, como foi o caso da biografia de Jango, era, entre outros, atingir um público mais amplo, que não se limitasse à academia ou aos intelectuais de esquerda. A linguagem é simples e direta. As notas de rodapé limitam-se ao estritamente necessário. Há um bloco de imagens no meio do livro, cuidadosamente selecionadas, que nos dão outra dimensão da vida da biografada; foram inseridos alguns boxes com informações adicionais, que a mim não agradaram tanto, mas que, compreendo, têm uma função de caráter mais didático para o leitor menos acostumado com as citações teóricas dentro do texto.

Abandonemos por hora o autor e foquemos sobre Elisa, cuja vida me intrigou, fazendo com que o livro me abraçasse, me deixasse tensa e pensativa. Alerto ao leitor que a seguir virão alguns spoilers. Chama-nos atenção pelos menos dois aspectos da vida de Elisa Branco: a sua vida privada e o machismo estrutural dos comunistas. Em relação ao primeiro aspecto, embora o autor tenha sido muito cuidadoso no trato com a questão, especialmente por Elisa ainda ter descendentes e demais familiares vivos, seu casamento me pareceu uma relação muito tóxica. Ferreira procura amenizar as agressões entre marido e mulher, alegando que eram personalidades incompatíveis, gênios difíceis e explosivos. Mas sabemos que o elo mais frágil de uma relação, que inclusive envolvia agressões físicas, é a mulher. Elisa Branco podia ser uma pessoa “difícil de lidar”…, mas quantas de nós não somos assim qualificadas, apenas por buscarmos nosso espaço ou exercermos nosso protagonismo público, em um país que trata as mulheres como principais alvos de violência?

O segundo aspecto diz respeito aos comunistas. Elisa Branco foi uma de suas mais importantes militantes. Não era uma intelectual. Ferreira atesta que as discussões teóricas relativas ao marxismo não lhe interessavam. Mas acreditava no projeto de construção de uma sociedade comunista, pela qual lutou a vida toda, pagando, por isso, um alto preço, como as prisões, as críticas, as cobranças e até as dificuldades financeiras. Mesmo tendo recebido de Stalin a maior honraria que poderia ter sido ofertada a um comunista – o prêmio ­Stalin -, o partido nunca lhe abriu as portas para o poder, demorou a reconhecer as suas lutas e contribuiu para o que Ferreira chama de seu progressivo “apagamento”. Elisa Branco teve mais reconhecimento na União Soviética do que no Brasil, o que, em se tratando de uma mulher, nada surpreende.

Mas outros aspectos narrados no livro também me chamaram a atenção. Elisa, como muitos comunistas brasileiros, personalizou muito seus ideais políticos, ao ser mais “prestista” do que comunista. Claro que a incontestável liderança e o carisma de Luís Carlos Prestes faziam com que vários militantes agissem da mesma forma. O mesmo aconteceu quando os crimes de Stalin foram denunciados por Kruschev. Em vez de surpreenderem Elisa, afastando-a do líder soviético, como ocorrera com Jorge Amado, agraciado pelo mesmo prêmio, em nada sua visão idealizada da ditadura soviética foi abalada.

Pela leitura me deu a impressão de que sua idolatria em relação a Prestes não era correspondida. Elisa se aproximou da família dele e se tornou muito íntima de Maria Prestes, mas não há no livro indícios de que recebesse algum tipo de atenção do marido de Maria, embora tenha se desdobrado para ajudar a família nos momentos de dificuldade.

Outro fato que chamou minha atenção foi a doação da maior parte do dinheiro do prêmio Stalin para o Partido, embora sua família vivesse em contínuas dificuldades financeiras. Claro que Elisa, ao lado de seu marido Norberto, era responsável pelo sustento de sua família, já que a vida toda trabalhou como costureira. Mas quando poderia comprar sua casa própria com os recursos advindos da premiação, priorizou seus ideais comunistas, como o fizeram muitos outros antes e depois dela. Nesse momento da leitura, não pude deixar de me lembrar de outra biografia de outro comunista, O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura (2015). Trotsky, sob a pena do renomado autor cubano, teve sua família perseguida e assassinada, a mando de Stalin, tão prezado por Elisa Branco, por conta de seu envolvimento com os ideais comunistas, que se colocavam acima da sobrevivência de seus próprios filhos. Mesmo estando em circunstâncias diversas e até mesmo opostas, Elisa e Trotsky, guardadas as inúmeras diferenças, se equiparavam ao colocar os ideais coletivos acima de seus interesses privados. Para uns, isso era um sinal da virtude dos grandes; para outros, uma renúncia às dimensões privadas da vida, por serem duras e difíceis.

Por fim, me incomodou muito ler sobre a velhice de Elisa Branco. As suas derrotas políticas foram agravadas pelo golpe militar de 1964, pela crise dos socialismos, pela doença e morte do marido, pelas relações conflituosas com seus familiares – sobretudo os de sexo masculino – e pelas mágoas em relação ao seu passado, manifestadas por meio das injúrias inseridas sobre os relatórios que o Dops fazia sobre ela. Elisa Branco teve uma velhice ruim.

De volta ao autor e seu belíssimo livro. Achei um ato corajoso, sendo homem, Jorge Ferreira se dispor a biografar a vida de uma mulher cujo cerne de sua luta, para além do pacifismo, era a defesa dos direitos das mulheres. Nesse quesito, Ferreira foi extremamente cuidadoso. Embora não tenha se aprofundado nas análises sobre a história do movimento feminista, soube reconhecer o machismo dos comunistas e as dificuldades que Elisa Branco teve somente por ter nascido mulher.

O zelo de Ferreira é perceptível em outros tantos aspectos, como o do início do livro, quando anuncia que parte das fontes e o próprio título provieram de uma ex-aluna, a qual agradece a cessão do material e do nome. Zeloso também com os familiares ainda vivos de Elisa, os tratando com o respeito e a estima devidos. Zeloso com a escrita, na qual tudo se encontra fundamentado em fontes empíricas. E, por fim, zeloso com a produção historiográfica, onde autores das mais diferentes instituições nacionais são citados, na medida exata do necessário.

Elisa Branco foi uma mulher de trajetória grandiosa para o Brasil e, sobretudo, para as esquerdas. Ao denunciar seu apagamento, Jorge Ferreira não só comprova empiricamente a diminuição progressiva de referências a ela nos jornais de esquerda, como tenta romper com esse apagamento injusto, ao torná-la protagonista em sua produção historiográfica, já tão consolidada. Creio que todos aqueles que conviveram com Elisa e todas as mulheres que militam em prol de um país mais justo e igualitário, encontrarão motivos para ler essa história e se imaginar como parte dela. É para isso que servem as boas biografias.


Referências

AVELAR, Alexandre de S.; SCHMIDT, Benito (orgs.). O que pode a biografia São Paulo: Letra e Voz, 2018.

FERREIRA, Jorge L. João Goulart, uma biografia 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

FERREIRA, Jorge. Elisa Branco: uma vida em vermelho Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023.

LIRA NETO. A arte da biografia: como escrever histórias de vida São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

OLIVEIRA, Maria da Glória de. Para além de uma ilusão: indivíduo, tempo e narrativa biográfica. In: AVELAR, Alexandre de S.; SCHMIDT, Benito (orgs.). O que pode a biografia São Paulo: Letra e Voz, 2018. p. 59-72.

PADURA, Leonardo. O homem que amava os cachorros 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2015.


Resenhista

Claudia Viscardi – Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora (MG), Brasil. E-mail: claudiaviscardi.ufjf@gmail.com  ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0277-4478


Referências desta Resenha

FERREIRA, Jorge. Elisa Branco: uma vida em vermelho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023. Resenha de: VISCARDI, Claudia. A militância feminina na esquerda brasileira: uma reflexão sobre Elisa Branco no PCB, sob o olhar de Jorge Ferreira. Tempo. Niterói, v. 29, n. 1, jan./abr. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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