Com certa frequência alguns casos de violência acabam tomando os meios de comunicação e comovendo a sociedade de modo a desencadear novas ou velhas polêmicas. Muitas vezes, o caso atinge proporções maiores e passa a ser discutido também nos meios acadêmicos, no ambiente familiar e nos mais diversos ambientes. Diferentes sujeitos, partindo de diferentes esferas da sociedade, apresentam seu ponto de vista a fim de rotular o autor do crime: Seria ele um louco? Um desfavorecido socialmente? Um herói? Ou simplesmente uma pessoa má?
Esse fenômeno, no entanto, não é algo recente. Ao menos, é o que diz o historiador espanhol Ricardo Campos em seu livro El Caso Morillo: Crimen, Locura y subjetividade en la España de la Restauración.
Ricardo Campos é pesquisador titular do Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC) da Espanha e dedica-se a estudos na área da história da saúde pública e da psiquiatria. Na obra, o historiador parte da comoção social causada por um crime cometido em Madri no final do século XIX, a fim de analisar os modos pelos quais diferentes agentes sociais como psiquiatras, juristas e a imprensa, compreendiam as relações entre crime e loucura.
O crime em questão aconteceu na noite de 28 de outubro de 1883, quando o jovem médico Manuel Morillo agrediu o casal José Fernández e Carolina Lanzaco num ato que resultou na morte de Carolina por tiro a queima roupa. Após uma tentativa de fuga, o agressor foi preso por um policial local. O caso, que ficou conhecido como El Crimen de la Calle San Vicente, foi cometido em razão de José Fernández ter proibido o namoro entre sua filha Amparo Fernández e o agressor, Manuel Morillo.
Durante seu depoimento de defesa, além de proferir uma série de frases desconexas, Morillo alegou ter empreendido o ato por ordem divina, o que acabou por levantar a hipótese de que o acusado fosse louco. Hipótese que, no tribunal, foi defendida por psiquiatras e contestada por juristas em um debate que foi incansavelmente narrado pela imprensa.
Por meio de sua investigação, o historiador buscou compreender de que maneira a imprensa, os juristas e os médicos interviram no caso, construindo assim uma determinada imagem social da loucura e do louco na Espanha do final século XIX (CAMPOS, 2012: 13).
Vale destacar o trabalho realizado por Campos em seu levantamento de fontes que resultou num notável acervo documental acerca do caso e contribuiu em grande medida aos fins de sua investigação. Graças a uma dedicada e minuciosa pesquisa, o historiador teve acesso a uma vasta gama de fontes sobre o assunto, como os processos judiciais, notícias de jornais e artigos científicos escritos pelos próprios psiquiatras e juristas envolvidos no processo.
Contudo, o que mais chama a atenção no trabalho de Campos é o levantamento de fontes autobiográficas, escritas pelo próprio Morillo, que tornam a obra ainda mais fascinante. Tratam-se de fragmentos de dezenas de cartas trocadas antes do crime entre Morillo e suas vítimas, além de trechos de dois manuscritos redigidos pelo acusado. O primeiro manuscrito, intitulado por Morillo de Mi declaración foi escrito antes do crime, enquanto o segundo, En la Cárcel, foi escrito na prisão, como uma tentativa de justificar o assassinato.
Por meio de suas fontes, o historiador pôde construir uma intrigante narrativa sobre a história de Morillo desde sua infância até sua morte, atentando-se para os momentos do crime e do julgamento. O livro tem 272 páginas e foi dividido em quatro capítulos.
No primeiro capítulo, intitulado El Crimen de la Calle San Vicente y la Opinión Pública, Ricardo Campos pondera sobre o papel desempenhado pela imprensa ao noticiar o crime. Segundo ele, este foi um dos casos criminosos de maior impacto midiático naquela época em Madri (CAMPOS, 2012: 24). Tanto o assassinato quanto os acontecimentos posteriores foram incessantemente noticiados pelos jornais, sendo que após o julgamento, alguns órgãos da imprensa chegaram a publicar duas monografias diferentes, escritas por jornalistas, narrando todo o caso.
A imprensa, segundo o historiador, destacou a boa aparência e a profissão prestigiosa do acusado, explorando de modo sensacionalista o fato de uma pessoa de sua posição ter cometido um crime tão horrendo. Segundo o historiador, os jornais negaram a identidade humana de Morillo e lhe atribuíram outra identidade de natureza selvagem e violenta (CAMPOS, 2012: 13).
Segundo o autor, a razão pela qual os jornais investiram tanto na polêmica do caso foi de que, naquele período, tanto o sistema judiciário quanto a imprensa espanhola passavam por significativas mudanças em suas diretrizes. Tais mudanças estariam ligadas a uma série de reformas empreendidas pelo Partido Liberal que ascendera ao poder no início da década de 1880. Em 1882, os liberais aprovaram a Ley de Enjuiciamiento Criminal que, entre tantos objetivos, visava garantir direitos dos acusados e acelerar os processos de julgamento. Algumas das medidas tomadas pelos liberais foram introduzir o julgamento oral e público e acabar com o segredo de justiça que mantinha os processos e investigações em sigilo do público (CAMPOS, 2012: 41). No ano seguinte, 1883, por meio da Ley de Policía de la Imprenta, o Partido Liberal também regulou a liberdade de imprensa e substituiu a lei anterior que permitia um controle repressivo aos meios de imprensa que se mostrassem contrários ao regime político da época.
As novas possibilidades permitidas pelas reformas foram amplamente exploradas pela imprensa. Segundo o autor, “las crónicas de los tribunales se transformarán a partir de entonces en acontecimientos sociales que la propia prensa se encargará de construir minuciosamente” (CAMPOS, 2012: 41).
Nesta conjuntura, o historiador nota ainda que os jornais, que até então se dedicavam principalmente a transmitir ou produzir opiniões e doutrina política passaram a dar lugar a periódicos de caráter mais comercial que tinham como principal objetivo o lucro. Este novo modelo de jornalismo “conllevaba como objetivos básicos el aumento de la tirada, el abaratamiento de los precios y la contratación de publicidad” (CAMPOS, 2012: 37).
No mesmo período, certas teorias psiquiátricas e criminológicas, como a frenologia que, de certa forma, explorava uma possível relação biológica entre crime e loucura, passaram a chamar cada vez mais a atenção do público leitor. Diante disso, os jornalistas espanhóis viram nos crimes mais violentos uma valiosa fonte de interesse popular e um meio de conseguir mais publicidade. As notícias passaram a ser veiculadas pela imprensa de forma romantizada, acrescentando um tom de crônica e teatralidade ao crime conectando os acontecimentos ao universo cultural do público leitor que era acostumado a ter espetáculos teatrais como forma de entretenimento. Além disso, romantizar notícias policiais, de acordo com Campos, foi também um meio para que a população aceite o conjunto de controles judiciais e policiais estabelecidos na nova sociedade burguesa do século XIX (CAMPOS, 2012: 43).
No capítulo dois, La Identidad del Criminal. Subjetividade y Escritura, Campos demonstra como a suspeita de que o acusado fosse louco trouxe aos holofotes um acalorado debate acerca da identidade de Morillo: de um lado, um grupo de frenópatas e psiquiatras que insistiu que o acusado padecia de uma loucura hereditária e degenerativa; de outro, juristas e médicos forenses rebateram a ideia alegando que o mesmo gozava de boa saúde e cometera o crime simplesmente por ser uma pessoa má (CAMPOS, 2012: 69).
Neste cenário, Campos narra com maestria a disputa entre os saberes médico e jurídico ao passo que Morillo é “expropiado de su identidad y de su cuerpo, pasando a convertirse, por medio de uma operación judicial y médica, en el individuo que psiquiatras y juristas necesitaban para imponer sus criterios” (CAMPOS, 2012: 69).
Diante disso, os escritos de Morillo tornam a narrativa ainda mais rica pois, conforme afirma o historiador, são apresentadas como “un espacio de subjetivización en el que surge con inusitada fuerza la identidad del criminal que se autorrepresenta y pone el contrapunto a los discursos que los expertos y la prensa construyen sobre sus actos y su personalidad” (CAMPOS, 2012: p. 81).
Os diversos interesses defendidos pelos psiquiatras e pelos juristas são esclarecidos pelo autor no terceiro capítulo da obra, intitulado El Juicio. Segundo ele, naquele período o júri se recusava a reconhecer a psiquiatria como uma ciência. A magistratura espanhola acreditava num conceito baseado em senso comum de que a loucura se manifestava a partir de delírios facilmente perceptíveis. Em contraponto, os psiquiatras argumentavam que a loucura era algo muito mais complexo, cuja compreensão requeria os conhecimentos e o olho clínico dos novos profissionais especialistas no assunto: os frenópatas (CAMPOS, 2012: p. 157). Neste embate, Campos percebe um esforço dos psiquiatras em legitimar, frente aos magistrados e a opinião pública, a frenopatia, como a única ciência capaz de identificar ou não a loucura nos criminosos (CAMPOS, 2012: 186):
Los peritajes fueran la pieza clave em torno a la cual giró el juicio. Sin embargo, su importancia no residió en el hecho de provocar um diálogo entre las partes que permitiera un acercamiento de posiciones o una negociación sobre la naturaleza de la locura y sus implicaciones penales. Bien al contrario, su notoriedad radicó en el enconado y agitado debate que tuvo lugar entre los peritos y los juristas tanto en el interior de la ala como fuera de ella sobre la naturaleza de la locura, la capacidad de los frenópatas de dictaminarla y de la frenopatía como ciencia (CAMPOS, 2012: 150).
O julgamento tornou-se, assim, palco de um intenso debate sobre o tratamento penal da loucura no qual se discutia se o destino de Morillo deveria ser a prisão ou o manicômio. Contudo, mesmo com o apoio popular e da imprensa em favor da perícia psiquiátrica, ao fim do processo, o júri declarou a prisão do réu, considerando que o mesmo teria premeditado o crime e o cometido de maneira racional.
Em De Criminal a víctima: El Escándalo Morillo, quarto e último capítulo do livro, o autor afirma que os embates entre juristas e psiquiatras se seguiram por um longo período. Segundo ele, Morillo passou por diversas prisões e teve sua loucura atestada por diferentes médicos, mas, somente após muitos anos os juristas autorizaram sua transferência para um manicômio.
Campos conclui sua obra afirmando que após Manuel Morillo morrer em um hospital psiquiátrico, no ano de 1892, “la prensa, que tanto había aprovechado su crimen y el juicio, se limitó a reproducir una escueta nota el 18 de enero, anunciando su muerte” (CAMPOS, 2012: 250).
Longe de qualquer moralismo ou de tentar trazer algum veredicto sobre a loucura de Morillo, Campos fez um notável estudo sobre o processo de construção do conhecimento acerca de certas crenças e valores no que diz respeito aos papéis da psiquiatria e do poder judiciário na Madri do século XIX. Sua investigação aborda vários pontos importantes sobre o papel desempenhado pela imprensa e as relações e disputas entre os saberes jurídico e psiquiátrico em sua busca por espaços de poder. Vale destacar novamente, a importância da utilização das fontes autobiográficas que tornam seu trabalho ainda mais relevante, pois apresentam os modos pelos quais o acusado produz sua própria subjetividade frente a classificação imposta pelos diversos saberes.
Neste sentido, o livro El Caso Morillo: Crimen, Locura y subjetividade en la España de la Restauración de Ricardo Campos trata-se de uma obra de grande relevância para a historiografia, pois, convida o leitor a lançar novos olhares sobre o louco e refletir sobre os modos pelas quais diversas esferas da sociedade atuam na construção de uma imagem social do louco e da loucura.
Referência
Campos, Ricardo. El Caso Morillo: crimen, locura y subjetividad en la España de la Restauración. Madri: Editora Frênia, 2012. 272 p.
Resenhista
Diego Luiz dos Santos – Licenciado e mestre em História pela Universidade Estadual do Paraná e discente da especialização em História, Arte e Cultura da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Tem experiência em pesquisas nos campos da História Cultural e História das Ciências, com destaque para a História da Loucura e da Psiquiatria.
Referências desta Resenha
CAMPOS, Ricardo. El Caso Morillo: crimen, locura y subjetividad en la España de la Restauración. Madri: Editora Frênia, 2012. Resenha de: SANTOS, Diego Luiz dos. Tempos Históricos, v. 21, n.2, p. 575-580, 2017. Acessar publicação original [DR/JF]
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