Um guia introdutório sobre direitos humanos para internacionalistas é como poderíamos, em poucas palavras, definir “Direitos Humanos e Relações Internacionais”, da professora Isabela Garbin, professora da Universidade Federal de Uberlândia. O livro compõe a coleção Relações Internacionais, coordenada por Antônio Carlos Lessa, é publicado pela Editora Contexto e chega em importante quadra da história brasileira e mundial. O sofrimento decorrente do quadro de desigualdades, deterioração ambiental, governos de arroubos autoritários e conflitos de diversas ordens exige uma reflexão que aproveite as construções político-jurídicas já elaboradas pela humanidade na esteira dos seus momentos mais dolorosos sem deixar de refletir sobre novos desafios que se apresentam e possíveis soluções a construir. O livro contribui nesse sentido.
Organizado em cinco capítulos, além da introdução e de anexos que complementam o conteúdo com notas e informações sistematizadas, o leitor se depara com o que podemos chamar um verdadeiro mapa sobre as principais questões de direitos humanos para as Relações Internacionais.
A introdução traz importante ajuste inicial de foco, delimitando como o tratamento dos direitos humanos atenderá, na obra, as necessidades dos internacionalistas. Garbin (2021) se concentra na avaliação de como são construídos e realizados os direitos humanos, em detrimento à atenção dada pelos manuais jurídicos aos processos jurídico-normativos que envolvem o tema. Ao definir a perspectiva de análise a partir das Relações Internacionais, a autora também define que a redação do texto adota os referenciais terminológicos próprios dessa área, de forma que, quando houver sentidos plúrimos para um termo, a definição se resolve a favor do uso mais corrente para a perspectiva do internacionalista.
O primeiro capítulo explica o significado, o alcance e as características da proteção internacional dos direitos humanos. Apresenta-se o caráter intrinsecamente internacional do tema, uma vez que o termo direitos humanos liga-se à noção de humanidade compartilhada. Após apresentar as escolhas metodológicas do livro, o capítulo aponta as características das normas internacionais de direitos humanos. Fiel à perspectiva enunciada na introdução, a autora explica como a política internacional impactou na criação dessas normas, a exemplo da divisão do mundo em blocos políticos durante a Guerra Fria, que levou à criação de documentos de direitos humanos separados (o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, ambos de 1966), ao invés de um pacto internacional único. Por fim, o capítulo reúne sinteticamente como específicas abordagens teóricas das Relações Internacionais concebem, interpretam e explicam o papel dos direitos humanos.
O segundo capítulo recupera a história da proteção internacional dos direitos humanos. Com clareza metodológica, aponta para a necessidade de se fazer uma distinção entre fonte e origem dessa proteção internacional. Enquanto a primeira, narrada à exaustão em manuais de Direito Internacional, destaca o momento da exteriorização normativa dos direitos humanos, a abordagem focada nas origens exige uma perspectiva historiográfica, que recupera a gênese das ideias, dos projetos, das demandas e das articulações políticas internacionais que resultaram na proteção dos direitos humanos. Ao fazê-lo, a autora tem espaço para destacar projetos que apontam o papel fundamental de Estados do Sul em provocar avanços na área. Tal é o caso, por exemplo, da menção à obra Evidence for hope, de Kathryn Sikkink (2017), que aponta para mobilizações fundamentais do Sul Global para que Estados mais poderosos aceitassem incorporar os direitos humanos em textos e instituições internacionais no pós-Segunda Guerra Mundial.
O terceiro capítulo apresenta a estrutura da proteção internacional dos direitos humanos, organizada em torno de dois eixos: Um eixo Onusiano, cujos fundamentos normativos originários se encontram na própria Carta das Nações Unidas, de 1945, e que articula tanto a implementação de direitos humanos nas normas, órgãos e agências que compõem a Organização das Nações Unidas (Sistema ONU) quanto o próprio braço institucional especializado da ONU para tratar de direitos humanos (Sistema Universal de Direitos Humanos – SUDH). É na estrutura institucional do SUDH que estão localizados o Conselho de Direitos Humanos, sucessor da Comissão de Direitos Humanos responsável por examinar situações de violação de direitos humanos caras ao Sul Global, tais como os abusos do apartheid na África do Sul e as violações sistemáticas durante a ditadura militar no Chile. É também no Conselho de Direitos Humanos que se desenrola o processo de Revisão Periódica Universal, que observa e monitora o cumprimento das obrigações dos Estados em direitos humanos, a cada quatro anos e a partir de dados produzidos por atores políticos diversos, quais sejam: o próprio Estado, especialistas independentes, e relatórios de ONGs compilados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Esse, aliás, é o segundo órgão geral do Sistema Universal.
O segundo eixo de proteção internacional dos direitos humanos se estrutura em torno de organizações regionais. Ainda no terceiro capítulo são apresentados o sistema Interamericano, o Europeu e o Africano, cada um contando com breve apresentação, histórico e estrutura. Em que pese a ausência de um conjunto sistemático de órgãos, normas e dinâmicas envolvendo a proteção dos direitos humanos no Oriente Médio e na Ásia, a autora não se furtou a comentar o estado do tratamento ao tema nessas regiões. Em relação ao Oriente Médio, ligada à Liga dos Estados Árabes, destaca a entrada em vigor, em 2008, da Carta Árabe dos Direitos Humanos em sua versão revisada – já que o primeiro documento sofreu fortes críticas e pressões que questionaram a sua forma de aprovação e seu conteúdo. O capítulo anuncia, mas sem avançar analiticamente, os impactos políticos de eventos tais como a Primavera Árabe, que poderiam ter repercussão em matéria de direitos humanos. Sobre a Ásia é destacada a preferência por instrumentos de soft law que marcam os documentos produzidos sobre o tema na região.
O quarto capítulo trata do que poderíamos chamar de direitos humanos em movimento. No âmbito da política internacional são destacados os principais atores e as ferramentas envolvidos nas dinâmicas de formulação de posições, monitoramento, responsabilização por abusos e ativismo em direitos humanos. Atentando para a formulação da posição brasileira de política externa para direitos humanos, é destacada a participação de atores não-governamentais no processo, tal como se dá com a atuação da organização Conectas. Quanto ao monitoramento, destacam-se as ferramentas de coleta de dados e elaboração de relatórios, que, fundamentalmente, identificam situações desviantes de normas e padrões acordados, indicam medidas para remediar o quadro e pontuam ações a serem tomadas pelos Estados. Sobre a responsabilização por abusos, é lembrado como de uma responsabilização unicamente do Estado tem-se avançado para alcançar a responsabilização dos indivíduos que praticam as violações. Notamos a ausência de menção, neste tópico, a uma relevante discussão que tem sido travada nas últimas décadas: a busca pela responsabilização das organizações internacionais por violações de direitos humanos. Embora se trate de obra introdutória, acreditamos que, por endereçar questões centrais tais como a introdução do cólera no Haiti pela ONU ou os abusos cometidos por agentes de missões de paz, o esforço por essa construção de responsabilização das organizações internacionais poderia ter sido mencionado.
Ainda no capítulo quatro são lembrados os avanços em termos de justiça de transição, importante tópico para os latino-americanos e que diz respeito à busca por respostas judiciais, não-judiciais e atos simbólicos que respondam às violações cometidas por regimes autoritários ou por grupos em conflitos armados internos. Finalmente, sobre o ativismo em direitos humanos são destacadas ações e estratégias mobilizadas por movimentos sociais.
O último capítulo coloca uma questão que perpassa a mente de todo estudioso de Relações Internacionais. Acostumado a lidar com as dinâmicas do poder, esse inevitavelmente se questiona sobre a eficácia da proteção internacional dos direitos humanos. Aqui a autora recupera as explicações das escolas realista, liberal-institucionalista e construtivista para a existência e as condições de cumprimento das normas de direitos humanos. Não deixa de apontar, contudo, os limites dessas construções teóricas, tal como faz quando aponta os limites da interpretação realista ao mencionar evidências empíricas que sustentam o relevante papel dos Estados menos poderosos para a promoção das normas internacionais de direitos humanos. De qualquer forma, notamos a opção por um enquadramento teórico que destaca três escolas bastante tradicionais das Relações Internacionais e que deixa de lado perspectivas caras ao espaço latino-americano e brasileiro, tais como a perspectiva decolonial, a feminista e a marxista. Ao fazê-lo, o texto reforça uma epistemologia e uma ontologia da área em que questões importantes aos estudantes brasileiros ficaram a descoberto, tais como o desafio de grupos identificados por seus recortes de gênero, raça e classe no contexto periférico para construir, encontrar proteção e mobilizar a implementação dos direitos humanos de modo a fazê-los funcionar para pessoas que enfrentam específicas formas de marginalização. Essas e outras questões, como os impactos sobre os direitos humanos da “guerra ao terror” e de uma certa normalização da exceção como expansão da ação do Estado sobre os indivíduos, para usar os termos de Agamben (2011), seriam abordagens bem-vindas em uma futura edição da obra, dada sua redação como manual de direitos humanos escrito a partir do Sul Global.
Finalmente, são apresentadas perspectivas pessimistas, céticas e otimistas sobre o potencial da proteção dos direitos humanos ter um impacto efetivamente positivo. O livro é encerrado com a autora deixando-se entrever em sua posição otimista quanto à eficácia da proteção internacional dos direitos humanos. Em verdade, ao fornecer um guia introdutório sobre o tema para os internacionalistas, mais do que apenas uma perspectiva otimista, a autora contribui para que seus leitores aperfeiçoem suas reflexões, argumentos e, enfim, ações em prol de um horizonte que promova mais compreensão e possibilidade de construção coletiva interna e internacionalmente.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2011.
GARBIN, Isabela. Direitos humanos e Relações Internacionais. São Paulo: Contexto, 2021.
SIKKINK, Kathryn. Evidence for hope: making human rights work in the 21st century. Princeton: Princeton University Press, 2017.
Resenhista
Cristine Koehler Zanella – Professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), São Bernardo do Campo – SP, Brasil. E-mail: cristine.zanella@ufabc.edu.br Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7092-4549
Referências desta Resenha
GARBIN, Isabela. Direitos humanos e Relações Internacionais. São Paulo: Contexto, 2021. Resenha de: ZANELLA, Cristine Koehler. Monções- Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.11, n. 22, p. 317-321, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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