Nas últimas décadas, apareceram numerosos estudos sobre a história das regiões fronteiriças das Américas, muitos deles focados nas estratégias dos europeus para afirmarem sua soberania sobre territórios e atraírem os povos indígenas a se tornarem súditos das monarquias1. No bojo dessa importante produção historiográfica, alguns autores têm atentado para a perspectiva indígena, demonstrando que, em realidade, foram os povos autônomos que iniciaram os contatos, impuseram as pautas nas negociações de paz, inseriram os europeus em redes nativas de diplomacia, comércio e parentesco, e, com isso, conseguiram manter sua autonomia para além do colapso dos impérios coloniais2.
Este recente livro de Heather F. Roller, professora associada da Colgate University nos Estados Unidos, é uma importante contribuição à crescente literatura sobre esse tema. Trata-se de um estudo consistente, que abarca as relações de grupos indígenas autônomos das bacias Amazônica e do Paraguai – principalmente os Mura e os Guaicuru3 – com a colonização portuguesa e com o Brasil dos períodos do Império e dos princípios da República, cobrindo, portanto, uma longa história de contatos, negociações e conflitos, do século XVIII até meados da década de 1930. Para tanto, a autora se vale de um amplo repertório de fontes manuscritas e impressas localizadas em 11 arquivos, destacando-se o Arquivo Histórico Ultramarino, o Arquivo Público do Estado de Mato Grosso e o Arquivo Público do Estado do Pará.
Em seu livro anterior, Amazonian routes, Roller (2014) apresentou uma inovadora análise da mobilidade dos nativos na Amazônia portuguesa durante a vigência do Diretório dos Índios, política estabelecida em 1757 que visava converter as antigas missões em vilas integradas à sociedade colonial e estimular o trabalho agrícola. Naquele trabalho anterior, como também neste novo livro, a autora conseguiu aliar com maestria uma notável sensibilidade para resgatar as vozes dos atores históricos indígenas com uma análise cuidadosa das dinâmicas de poder vigentes, efetuando um diálogo contínuo e fecundo entre história e antropologia. Contact Strategies apresenta um sofisticado e atualizado aparato teórico, que permite à autora oferecer reflexões importantes sobre a dialética entre o contato cada vez mais frequente que os nativos passavam a ter com os europeus e a apropriação seletiva de itens que eles fizeram (armas, cavalos, roupas etc.), e mesmo a opção pelo rechaço total a certos elementos (religião, sedentarismo, língua etc.), complexidade que pode ser uma chave para entender como certos grupos sobreviveram até os dias de hoje.
Os três primeiros capítulos se concentram nas últimas décadas do século XVIII, isto é, no período de aplicação da política do Diretório, a qual visava encorajar os nativos independentes a se aldearem. O primeiro capítulo trata das estratégias por meio das quais os nativos buscavam obter itens adventícios e informações sobre as intenções dos brancos sem, contudo, deixarem-se incorporar ou dominar pela sociedade colonial. Nesse quadro, os Guaicuru e os Mura experimentaram contatos mais assíduos com as colonizações ibéricas. Ambos haviam protagonizado, nas décadas precedentes, processos expansionistas, e ocupado, respectivamente, áreas no Alto Paraguai e no Baixo Madeira. Diante da necessidade de informações e de mediadores, esses grupos incorporavam indivíduos indígenas e de origem africana que haviam vivido na sociedade colonial. Embora as autoridades convenientemente atribuíssem certas hostilidades aos “Guaicuru” e aos “Mura” em geral, Roller mostra que esses termos eram rótulos imprecisos que abarcavam grupos não apenas distintos e autônomos (ainda que falantes da mesma língua e com traços culturais similares), como também grupos que contavam com um considerável estrato de nativos provenientes de outras etnias. Por essas razões, e por haverem incorporado itens europeus e utilizarem táticas de guerrilha, ambos os grupos haviam se tornado interlocutores respeitáveis e temíveis.
O segundo capítulo indaga a respeito dos motivos que levaram esses e outros grupos a buscarem “pazes” com os ibéricos nas últimas décadas do século XVIII. Estudiosos por muito tempo enfatizaram apenas fatores externos para explicarem essa aproximação, como a pressão militar dos rivais ibéricos (acentuada pelos tratados de limites), os avanços territoriais dos colonos, as epidemias e as crises ecológicas. Sem negar a importância desses fatores, a autora apresenta outros, particularmente as iniciativas indígenas para expandir sua participação em redes de comércio, bem como para aumentar seu acesso ao gado, à tecnologia e a outros elementos da cultura adventícia, e para preponderar sobre grupos rivais. Roller observa que os documentos que registraram essas negociações (tratados de paz, cartas e outros informes) evitavam assinalar concessões feitas aos nativos, pois elas comprometeriam a imagem de liderança de governadores e outros funcionários. A perspectiva indígena podia divergir dessas narrativas em vários aspectos. Os chefes Guaicuru que se aproximaram do forte português de Nova Coimbra, a partir de 1791, esperavam aumentar seu poder e prestígio ao mesmo tempo em que protagonizavam uma “pacificação” dos brancos. Já alguns líderes da etnia Guaná, tradicionalmente obrigada a pagar tributos aos Guaicuru, viam na aliança com os portugueses uma possibilidade de liberação. Assim, a mera pressão portuguesa não explica as negociações. Entre 1784 e 1786, os Mura apareceram em certos estabelecimentos coloniais amazônicos solicitando paz. Muitos Muras (como o chefe Ambrósio) eram oriundos das aldeias portuguesas modeladas segundo a lei do Diretório. Eles certamente conheciam as dificuldades que poderiam enfrentar nessas comunidades, mas também as apreciavam por oferecerem segurança contra ataques de seus inimigos Munduruku e acesso a redes de comércio e negociação política.
O capítulo três se concentra nas conversações de paz entre oficiais ibéricos e lideranças nativas e nas ofertas de presentes que acompanhavam essas ocasiões. Os europeus esperavam que ambas as estratégias neutralizassem os grupos nativos e os tornassem dependentes; na prática, contudo, o cenário se mostrou muito mais complexo e os europeus foram obrigados a se adaptar aos padrões nativos de estabelecimento de alianças. Roller mostra que, para os grupos nativos independentes, a paz era um processo, não um estado permanente. Eles rejeitavam a mera “compra” da amizade por meio da oferta de itens europeus. Com o tempo, os europeus foram aprendendo a ofertar presentes seguindo os protocolos nativos, embora a distribuição de ferramentas, uniformes e outros itens continuasse a gerar custos inevitáveis diante das rivalidades interimperiais. No entanto, Roller vai além e sugere que, para os nativos, pedir itens europeus era uma forma de reforçar a própria autonomia, ao deixar claro para os brancos que eles só eram “úteis” enquanto tinham itens a oferecer. Roller não utiliza muito o trabalho de Richard White (1991), ao menos não como um referencial teórico, pois o material que ela analisa não se ajusta bem à noção de “middle ground”, ou seja, de que nativos e europeus conformavam um conjunto de ideias e práticas comumente inteligíveis, ainda que diferentes de suas culturas, precisamente por conta do contato colonial. Em realidade, a autora documenta um descompasso entre as interpretações que nativos e europeus formavam de suas interações: assim, quando os nativos valorizavam, nas negociações, compromissos de proteção, camaradagem e mesmo parentesco (real ou fictício), os europeus esperavam que também abandonassem sua autonomia e suas terras tradicionais, o que para os indígenas estava fora de cogitação. Um exemplo interessante que a autora apresenta a esse respeito é o dos Mura, que, por volta de 1787, em vez de abandonarem suas terras, continuaram a explorar os lagos que os portugueses haviam reservado como “pesqueiros do rei”.
O capítulo quatro se concentra nos anos que vão das declarações de guerra contra diversos grupos por D. João VI, entre 1808 e 1811, até a promulgação do “Regulamento acerca das missões de catequese…”, de 1845, passando pelas revoltas durante o conturbado período regencial, e trata das lutas dos grupos independentes para manterem as conquistas obtidas em fins da época colonial. Trata-se de um momento marcado pelo abandono da política centralizada e paternalista da Coroa portuguesa e pela ênfase na iniciativa privada, na utilização dos índios como trabalhadores forçados e na liberação de suas terras para colonos brancos e para a produção de itens de alto valor econômico como cacau, borracha e gado. Vale lembrar que a Constituição de 1824 sequer incluiu os povos indígenas entre os considerados “cidadãos”. Nessas circunstâncias, as ações dos Guaicuru e dos Mura estiveram marcadas por um maior contato com autoridades e particulares: eles alternavam a residência sazonal em aldeamentos, a oferta sazonal de trabalho aos colonos, e a continuidade da tradicional mobilidade que os caracterizava. Duas importantes revoltas contaram com a participação dos Guaicuru e dos Mura. Entre 1826 e 1827, grupos Guaicuru se revoltaram contra a colaboração entre brasileiros e paraguaios que levou à prisão e execução do chefe Calabá, do subgrupo Kadiwéu. Os Guaicuru atacaram os fortes de Coimbra e Miranda e roubaram o gado que puderam encontrar, o que levou as autoridades brasileiras a renovar a aliança em termos mais favoráveis para os nativos. Por outro lado, os Mura, que já rejeitavam as pautas de trabalho compulsório e aldeamento, uniram-se à rebelião da Cabanagem (1835-1840), que se opunha às estruturas de dominação imperial e às imposições das oligarquias locais. Apesar de terem sido duramente reprimidos por guerreiros Munduruku aliados ao império, os Mura continuaram ativos nas décadas seguintes, alternando oferta de trabalho aos brasileiros com incursões.
O capítulo cinco discute a situação dos grupos independentes durante a segunda metade do século XIX até meados da década de 1930. Para este período, a autora faz uso de relatos de indivíduos que durante algum tempo viveram entre os nativos e endossaram o paradigma oitocentista de que os povos indígenas estavam prestes a desaparecer. Os autores selecionados por Roller são Guido Boggiani e Émile Rivasseau, para os Kadiwéu, e Constantin Tastevin e Curt Nimuendajú, para os Mura. Roller argumenta que, embora esses autores não compactuassem com os interesses dos usurpadores de terras, a visão que eles tinham das culturas nativas como estáticas e incapazes de incorporar elementos adventícios (sem se corromper e acelerar seu desaparecimento) fez com que seus textos engrossassem o coro de vozes (juntamente com manifestações políticas de empresários e autoridades governamentais) que afirmavam que esses grupos não eram mais índios e que, portanto, não tinham mais direito às suas terras. Roller desmonta cuidadosamente essa falácia, mostrando que as culturas nativas eram dinâmicas, capazes de se reinventar e encontrar formas surpreendentes de sobrevivência. Os Kadiwéu construíram para si a memória de que a sua reserva era recompensa por terem lutado com os brasileiros na Guerra do Paraguai (1864-1870), algo que autoridades governamentais e particulares tinham dificuldades de questionar. Já os Mura valorizavam historicamente a mobilidade e a incorporação de indivíduos de outros grupos, particularmente os refugiados de situações de opressão colonial, e assim atestavam que a sua mobilidade e o seu dinamismo cultural e étnico sempre haviam sido formas de afirmar sua “indianidade”, e não a perda dela. Contudo, as lutas de ambos os grupos em defesa de suas terras não foram fáceis. Como a autora demonstra, os Kadiwéu enfrentaram empresários e políticos poderosos, o que não raro levou a faccionalismos e a perdas territoriais. As terras dos Mura foram usurpadas e os próprios índios obrigados a pagar aluguel por elas, em um contexto em que eram tutelados de perto pelo SPI e submetidos a contratos desvantajosos na produção de castanha. Apesar disso, ambos conseguiram preservar a sua autonomia até os dias de hoje, ainda que por um caminho tortuoso que envolveu luta, resistência, negociação, intercâmbio cultural e resiliência.
Contact Strategies é um estudo que apresenta não apenas uma contribuição sólida e bem documentada a respeito de grupos que estiveram à margem das narrativas tradicionais da história do Brasil, como também a respeito dos debates políticos atuais sobre o que é ser índio e sobre os direitos territoriais dessas populações. A autora nota que, em tempos recentes, usurpadores de terras e políticos retomaram com todo o vigor o sentido estático da palavra “índio” para negarem aos nativos qualquer dinâmica cultural de apropriação seletiva de elementos de outras culturas e de reinvenção cultural e étnica (próprias de qualquer cultura). Entretanto, reafirmando seu protagonismo histórico, esses grupos continuam suas lutas. Como escreve a autora: “Eles demandam respeito pela vida e cultura indígenas, reconhecimento das suas formas de autonomia e confirmação legal dos seus direitos territoriais” (Roller, 2021, p. 199). Escrito em uma linguagem elegante e repleto de reflexões bem polidas e originais, assentadas em uma sólida pesquisa empírica, este livro certamente se converterá em referência obrigatória para os estudiosos da história dos povos indígenas do Brasil.
Notas
1 Para Tamar Herzog (2015), no início da época moderna, as populações, mais do que linhas em mapas, definiam a soberania imperial; assim, a circulação de súditos através das Américas podia alterar as fronteiras imperiais ou levar à sobreposição e à contestação de jurisdições. Um trabalho de referência sobre as relações entre espanhóis e povos indígenas autônomos durante o século XVIII é o de David J. Weber (2005), mas esse autor apresenta escassa informação sobre os domínios portugueses. A recente coletânea de ensaios editada por Levin Rojo e Radding (2019) oferece um inventário das tendências mais recentes nesse campo de estudos.
2 Entre os autores que têm buscado entender as interações a partir da perspectiva indígena, cumpre destacar os trabalhos de DuVal (2006), Hämäläinen (2008), Garcia (2009) e Erbig Jr. (2020).
3 Remanescentes de ambos os grupos vivem atualmente em terras indígenas localizadas no Brasil (embora alguns vivam também em centros urbanos). Os Mura se encontram no estado do Amazonas e os remanescentes dos Guaicuru, chamados Kadiwéu, vivem no estado do Mato Grosso do Sul.
Referências
DUVAL, Kathleen. The Native Ground: Indians and Colonists in the Heart of the Continent. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2006.
ERBIG, Jeffrey Alan Erbig, Jr. Where Caciques and Mapmakers Met: Border Making in Eighteenth-Century South America. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2020.
GARCIA, Elisa Frühauf. As diversas formas de ser índio: Políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.
HÄMÄLÄINEN, Pekka. The Comanche Empire. New Haven, CT: Yale University Press, 2008.
HERZOG, Tamar. Frontiers of Possession: Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2015.
LEVIN ROJO, Danna A.; RADDING, Cynthia (Eds.). The Oxford Handbook of Borderlands of the Iberian World. Oxford: Oxford University Press, 2019.
ROLLER, Heather F. Contact Strategies: Histories of Native Autonomy in Brazil. Stanford: Stanford University Press, 2021.
ROLLER, Heather F. Amazonian Routes: Indigenous Mobility and Colonial Communities in Northern Brazil. Stanford, CA: Stanford University Press, 2014.
WEBER, David J. Bárbaros: Spaniards and Their Savages in the Age of Enlightenment. New Haven, CT: Yale University Press, 2005.
WHITE, Richard. The Middle Ground: Indians, Empires, and Republics in the Great Lakes Region, 1650-1815. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
Resenhista
Francismar Alex Lopes de Carvalho – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. University of Bonn, North Rhine-Westphalia, Germany. E-mail: francismardecarvalho@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-6172-3363
Referências desta Resenha
ROLLER, Heather F. Contact Strategies: Histories of Native Autonomy in Brazil. Stanford: Stanford University Press, 2021. Resenha de: CARVALHO, Alex Lopes de. Entre a procura do contato e a manutenção da autonomia: trajetórias indígenas nas fronteiras do Brasil. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 42, n. 91, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]
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