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Conhecimento desde dentro: os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias | Sheila S. Walker

Sheila Walker, em um intenso movimento afrogênico, presenteia-nos com “Conhecimento desde dentro: Afro-Sul-Americanos falam de seus povos e suas histórias”. A obra foi lançada no I SEMILLAH – I Seminário Latino-Afro-Hispânico, nas dependências da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Campus Nova Iguaçu, em 2018. Tanto a primeira publicação em espanhol (2010) quanto sua tradução (2018) são frutos de ações coletivas.

Em quatro reuniões, Walker (2018) e seu convidado, o afro-venezuelano Chucho García, em março de 2003, não mediram esforços para refletir com os/as futuros/as autores e autoras dos capítulos do livro sobre o conceito de diáspora. Foi necessário também trazer à baila como esta se deu, de que maneira foi relevante à constituição das nações e em que medida se configura como algo que nos particulariza, nos identifica, na dimensão da diversidade. Como a primeira reunião ocorreu na Venezuela, na região de Barlovento, o grupo foi denominado Grupo Barlovento. Nem todas as autoras e autores são da academia e esta não obrigatoriedade é um marco muito positivo na história da escritura do livro, afinal, muito têm a dizer sobre seus povos e suas histórias.

Oito anos após a publicação do livro em espanhol, Fernanda Felisberto propôs à antropóloga sua tradução ao português e me convidou para participar do projeto. Eu, Viviane Antunes, junto com ex-alunas de Espanhol da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Juliana Rovere, Mariana Mello, Priscilla Miranda, Rachel Santos, Stella Baptista e Viviane Valladares assumimos esta imprescindível empreitada, acompanhada pelos olhos atentos de Ricardo Riso.

Além da dificuldade com a tradução de palavras muito específicas e regionais presentes em alguns textos, o primeiro desafio foi pensar sobre a tradução da expressão “desde adentro”, parte do título. Muitas pesquisadoras e pesquisadores brasileiros/as já recuperavam a expressão advinda do espanhol, reconheciam-na e se apropriavam dela em seus estudos. Recorrentemente, atribuíam o termo “desde dentro” a algo que une as filhas e os filhos da diáspora e os leva a lançar mão de sua ancestralidade, de sua história e de suas experiências de vida para resistir, cobrar seus direitos, dar visibilidade à sua arte, crenças, saberes originários, conhecimentos, tecnologias, entre outros saberes. Tal expressão nos desloca do âmbito da objetificação e nos conduz ao universo da subjetivização, da humanização e da liberdade. “Desde dentro”, temos direito a ser e a sermos juntos e a recuperarmos nossa ancestralidade.

Por um viés coletivo, cultural e autorrepresentativo, o livro possibilita que, como afrosul-americanos, nos transformemos em leitores ávidos por juntar as peças de nossa própria história diaspórica. Nossa ancestralidade evocada por nossos tambores, nossas danças, nossa gastronomia, nossas lendas, nosso sentir-pensar conduzido pelo sagrado e desvelado na natureza nos conectam, nos fazem reconhecer nossos vínculos.

Em Recolocando os pedaços de Osíris / Recompondo o quebra-cabeça: A diáspora africana na América do Sul hispanofalante, Walker (2018), ao rememorar experiências na África e em outras rotas, se concebe como alguém cuja identidade se perfila diasporicamente. Ao conviver com a família Njoya, ao som de suas festas, canções e demais referências culturais e em tantas outras situações, Walker (2018) compreende como as ascendências se aproximam e como compartilham sentidos e saberes afrogenicamente. Coloca, na verdade, a imprescindibilidade de uma reflexão aprofundada, desde dentro (p.34), sobre o racismo historiográfico, a invisibilização das populações e de suas lutas, os mitos de inferioridade e corrupção reforçados ao longo da história, a busca de direitos e as diferentes formas de protagonismo e resistência.

Jesús Chucho García, em Afroepistemologia e afroepistemetódica, nos sinaliza que o conhecimento da diáspora africana ainda merece ser escrito com mais detalhes. O reconhecimento de nosso autodesconhecimento, o reestabelecimento e a interrelação entre dados de nossa origem etnoculural afro-subsaariana, bem como a criação de condições para que narremos nossas histórias de acordo com nossa perspectiva, são decisivos à nossa reconexão diaspórica (p.101). Dando visibilidade ao legado africano e afrodescendente, hoje ainda nas mãos do epistemicídio, fundamentado pela violência de projetos hegemônicos e eurocentrados. Nesta via afroepistemológica, constroem-se os demais capítulos do livro.

Contribuições africanas e afrodescendentes à identidade nacional argentina: uma visão afrogênica, de Lucía Dominga Molina e Mario Luis López, por exemplo, alude à presença africana na Argentina e à transcendência cultural. Para Molina e López (2018), a afro-argentinidade se desvela na linguagem, na literatura, nas artes em geral e no cotidiano, mas é preciso (re)conhecê-la, captá-la e valorizá-la. Só assim, será possível livrar-se do silenciamento ancestral e ver-se em uma posição de pertencimento, de sujeitos de sua própria história e discurso (p.119).

Muito nos chama a atenção o posicionamento dos autores a respeito da negação da existência de afrodescendentes na Argentina e da falta de menção à mulher afrodescendente na época da escravização. Reivindicam o lugar da presença histórica africana na constituição da identidade nacional (p. 112) e a transcendência da mulher afrodescendente singularizada em diversas formas de resistência, projeção e defesa à família.

A meticulosidade descritiva e investigativa do texto de Juan Angola Maconde fundamenta o capítulo intitulado As raízes africanas na história da Bolívia. O autor, centrando-se na história das áreas urbanas de Potosí, La Plata, Oruro, Santa Cruz, Mizque, Valle Grande, Tarija, La Paz e da região de Yungas, põe relevo no papel da população escravizada, em sua relação com os colonizadores e com os indígenas, no cotidiano, nas lutas e no processo de transculturação.

No contexto colonial, o autor sublinha que a prata foi um motor econômico que transformou Potosí em uma metrópole à moda europeia (p.242). A força motriz dos fornos, dos engenhos, das tecnologias empregadas era proveniente das mentes e das mãos africanas e de seus descendentes cujas vidas eram totalmente apartadas da opulência que produziam. Ao longo da história, inclusive à época da República, as lutas para as quais eram convocados prometiam-lhes uma liberdade jamais alcançada por milhares. O sonho de liberdade, muitas vezes, assinava-lhes sentenças de morte.

O legado africano no Chile, de Marta Salgado Henríquez, começa por uma reflexão da autora tangente ao racismo cotidiano, responsável por minar profundamente sua autoestima. Henríquez (2018) desvela os questionamentos que comumente se levantavam com relação à sua nacionalidade pelo fato de ser negra (p.251). Reconhecer sua ancestralidade e sentir-se afro-chilena lhe dão ânimo para continuar seu trabalho.

Em Arica, especificamente na Organização Não Governamental Ouro Negro de Afrodescendentes Chilenos, a autora combate o branqueamento, está atenta e luta pela visibilidade da cultura afrodescendente, a partir da sensibilização e do fortalecimento dos movimentos sociais dos grupos racializados. Para Henríquez (2018), esta cultura está formada por uma rede de símbolos compartilhados e repletos de sentidos, que social ou historicamente (n)os unem e orientam (p.254).

Também é de grande importância a contribuição do afro-colombiano Raúl Alfonso Platicón Caicedo em Os afro-pacíficos: herdeiros de um legado diaspórico num território desconhecido. Com este texto, Caicedo (2018) legitima as conquistas dos afro-pacíficos, reivindica o seu lugar como um povo de memória coletiva histórica de resistência, de insubmissão e que deve continuar valorizando sua cosmovisão.

Para o autor, a destituição de colonialidades ideológicas ocorrerá através de reflexões concebidas desde dentro, capazes de viabilizar o afloramento de subjetividades, por meio da compreensão de que a identidade afro-pacífica é um produto histórico, dinâmico, diverso e que, apesar de ressignificações, mantém o legado africano (p.377). Romper o silêncio, mostrar os saberes, ritmos, cores, artes que os identificam é uma ação fundamental.

A elaboração de Os afro-chotenhos: legítimos guardiões da memória histórica e do conhecimento, de José F. Chalá Cruz, tem como princípio central dois tipos de revitalização: o da política cultural e o da memória coletiva. Chalá Cruz (2018) destaca que, “casa adentro”, os afrodescendentes devem legitimar de forma plena, sua afrodiasporicidade, isto é, conhecer, fazer e saber fazer com base no que temos de referência histórica, simbólica e mítica (p.385).

De forma cuidadosa e crítica, o autor nos apresenta as demandas sociopolíticas dos afro-chotenhos. A garantia de direitos, uma divisão territorial mais justa, a promoção de ações libertadoras, conscientizadoras e a efetivação de leis são exemplos das referidas demandas.

Lázaro Medina Benítez e José Carlos Medina Alfonso produziram Os kambás do Paraguai: as comunidades afrodescendentes. Neste capítulo, os autores ressaltam que no Paraguai se fomentou uma cultura extremamente hispano-guarani e foram proibidas oficialmente as relações entre africanos/afrodescendentes e indígenas. Isto possibilitou que no século XX, o negro não fosse reconhecível entre os paraguaios (p.421).

Se não era reconhecível, o que lhe garantiria o direito à terra e à liberdade de culto aos afro-paraguayos? E como seriam reconhecíveis se libertos e escravizados estavam na linha de frente do exército no século XIX? Em nome da pátria, que não lhe reconhecia, muitos morreram e, assim, o processo de branqueamento se fortaleceu. Essas são discussões travadas pelos autores, além de nos darem a conhecer as comunidades afro Kambá Cuá e Kambá Kokué. A consciência do fortalecimento da cultura afro e o senso de coletividade dessas comunidades permitiram aos afro-paraguaios refletirem e serem afrogênicamente, algo de grande importância à compreensão da diáspora no país.

Os afro-peruanos: retrospectiva e situação atual, de Oswaldo Bilbao Lobatón, Newton Mori Julca e fomentado pelo CEDET (Centro de Desenvolvimento Étnico), se preocupa em retratar a questão afrodescendente no território peruano. Várias lacunas encontram os autores para realizar este trabalho, principalmente no que tange à produção bibliográfica (p.472). Além de as informações se centrarem em Lima, as referências temporais privilegiam a colônia e chegam, no máximo, às primeiras décadas da República. Quanto ao processo de escravização, segundo os autores, não existe uma exploração sistemática e os estudos são relativamente recentes, datam da década de 40.

Entretanto, o resgate histórico feito pelos autores nos permite ter acesso a dados da chegada dos africanos no século XVI, da objetificação dos escravizados – divididos em lucrativos e não lucrativos – dos diferentes tipos de resistência, da “abolição” e dos processos de anulação das subjetividades dos afro-peruanos que os marginalizaram Mostram-nos quão decisiva é a consolidação da cidadania dos afro-peruanos, bem como a afirmação de sua cultura como um todo. Estes elementos também poderiam funcionar como antídoto afrogênico diante da crise de identidade nacional vivida pelo Peru.

Para Juanpedro Machado, autor de Afro-uruguaios: tecendo suas histórias com linhas invisíveis: uma aproximação à comunidade, entende que nossa luta contra o racismo, toda a subalternização experienciada pelos africanos escravizados e por seus descendentes e nossa busca por protagonismo dependem da reinterpretação de cada uma das inverdades oficiais de nossa história.

A inércia e a vilania do sistema escravista permitiram a reescravização em suas mais diversas formas de atuação. Para combatê-la, Machado (2018) nos adverte sobre a necessidade de os movimentos sociopolíticos darem séria atenção à conscientização sobre o racismo, à autorrepresentação, às referências culturais, identitárias e laborais das comunidades afro-uruguaias, à construção de uma cidadania afro na esteira de uma reafricanização. Esta pode um caminho de transformação social de caráter democrático, inclusivo e multiétnico, conforme acentua (p.585).

A diáspora africana na Venezuela: resistência e criação, de Jesús Chucho García, elenca mecanismos da organização escravista e mercantilista, promovida pelos espanhóis na consolidação da colônia, e formas de resistência em combate a suas ações. A força mercantil do sistema escravista fomentou absurdamente, na América do Sul, a diáspora africana subsaariana. Tal sistema era caracterizado pela despersonalização, já que africanas e africanos eram tratados como “peças”, muitos não puderam manter seus nomes e sofriam violências de toda ordem; e pelo trabalho forçado, sustentado intelectualmente pelo conhecimento africano no âmbito do trabalho com a lavoura e com a mineração (p.598).

Dentre as formas de resistência, o autor cita as estratégias da cimarronagem frontal, que encontra parcerias entre escravizadas, escravizados e indígenas nas lutas pela liberdade; e a cimarronagem jurídica que se dá quando alcançam a liberdade por alguma via legal. A Venezuela vivencia, mesmo com as lutas pela liberdade ao longo da história, uma necessidade de ressaltar a mestiçagem, baseada na miscigenação entre indígenas e brancos, em detrimento da memória etno-africana. Para Chucho Garcia (2018), a identidade nacional é medida pela hispanidade e, assim, continua sendo urgente o combate ao racismo, à exclusão e ao silenciamento da africanidade em terras venezuelanas (p.625).

Como grande novidade para os leitores, o Conhecimento desde dentro possui um capítulo sobre o Brasil: Breve panorama das políticas raciais antirracistas no Brasil, escrito por Marcio André de Oliveira dos Santos. O autor destaca a força afrogênica do movimento negro e de acadêmicos das ciências sociais e humanas na denúncia contra o racismo em seu país (p.630). Estudos, pesquisas e movimentos brasileiros delatam diversos tipos de violência à mulher, à juventude negra e ao sagrado. Avultam os riscos recorrentes que os assolam, fundamentados no mito de democracia racial e na negação da existência do racismo.

Oliveira dos Santos (2018) salienta a importância da rearticulação de movimentos que, a partir do final da década de 70 e meados da década de 80, perfilam no Brasil uma política racial antirracista. Esta tem caráter agentivo, combativo. Encontra fôlego em movimentos sindicais, em recursos não governamentais nos anos 90 e na resistência de atores educacionais que, enfrentando a inércia do racismo na estrutura das escolas, divulgam a importância da lei 10.639/2003 e levam adiante o projeto de trabalho efetivo com os conteúdos da história e da cultura afro-brasileira no currículo escolar. A afroepistemologia valorizada pelo autor nos possibilita recompor Osíris no âmbito de um protagonismo sociopolítico, amplamente decisivo ao resguardo de direitos dos afro-brasileiros.

Walker tem a capacidade de unir-nos em uma afrogenia que se sente tão natural, tão ímpar; ancorada pelo reencontro, por uma diáspora involuntária que nos identifica, nos aproxima, e, também, nos dá protagonismo. De forma crítica, dar espaço às vozes afrogênicas se traduzindo em uma luta contra uma história irreal, contada e recontada dentro e fora dos muros dos entornos escolares, que prioriza, enaltece e absolve os colonizadores e todos os seus mecanismos de poder e subalternização.

Esta história aplaudida e difundida hegemonicamente é responsável pela manutenção do racismo, a que imputamos, até hoje, o violento e desumano cerceamento de subjetividades, identidades e cosmovisões, em seu sentido mais amplo. O trabalho antropológico da autora e organizadora do Conhecimento desde dentro pode ser revisitado muitas vezes. Quantas vezes o for, será atual, sério, necessário, principalmente em um mundo em que a racialização precisa ser combatida, totalmente destituída e deixar de ser ferramenta de dominação.

Conhecimento desde dentro, portanto, nos rememora o princípio do Adinkra Sankofa: reconstituindo e vinculando as peças de nosso quebra-cabeças diaspórico, voltamos para buscar a nossa história, para vivermos o presente inteirados do que realmente somos e de nossas potencialidades. Assim, teremos a oportunidade de experienciar um mundo equitativo, antirracista e que, realmente, tenha sido capaz de rever-se e transformar-se.


Resenhista

Viviane Conceição Antunes – Bacharel e Licenciada em Português-Literaturas de Língua Portuguesa (1997) e em Português-Espanhol (2000), Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestre em Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002); Doutora em Letras Neolatinas (opção Espanhol), Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009) e atualmente estudante de Psicologia (Unigranrio). Professora de Língua Espanhola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Dedica-se ao ensino de Espanhol, no âmbito da Argumentação e dos Estudos Sintáticos, principalmente no que concerne ao uso pronominal, bem como sua relevância à competência tradutória. Desenvolve seus trabalhos sob o viés do interculturalismo crítico, da decolonialidade, do afrohispanismo e da luta antirracista. E-mail: vivianecantunes.ufrrj@gmail.com  https://orcid.org/0000-0003-1428-3761


Referências desta Resenha

WALKER, Sheila S. (Org.). Conhecimento desde dentro: os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias. Trad. Viviane Conceição Antunes. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018. Resenha de: ANTUNES, Viviane Conceição. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 22, n. 4, P. 211-217, out./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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Itamar Freitas

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