Como (não) fazer um golpe de estado no Brasil: uma história interna do 8 de janeiro de 2023 | Francisco Carlos Teixeira da Silva
Em um cenário político-partidário em polvorosa desde as últimas eleições presidenciais brasileiras em outubro de 2022, vê-se deflagrar em Brasília, em 08 de janeiro de 2023, uma tentativa golpista de tomada do poder por extremistas inconformados. Tal agitação, observada a partir dos seus aspectos fascistas, é a temática trabalhada na recente obra Como não fazer um golpe de estado no Brasil: uma história interna do 8 de janeiro de 2023, na qual se investiga o fato de o passado fornecer percepções valiosas sobre as raízes dos problemas e desafios vigentes, o que ocorre não por sua possibilidade de repetição, mas antes pelas continuidades e rupturas que irrompem nesse meio-tempo.
O livro possui autoria de Francisco Carlos Teixeira da Silva, docente titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ, e Karl Schurster, professor visitante do Programa Maria Zambrano de Talento Internacional na Universidade de Vigo, Espanha. A organização da narrativa se dá em 15 capítulos, que vão desde a exposição do quadro teórico da pesquisa até as conclusões provisórias sobre o evento perscrutado. Em toda a sua extensão, é contemplado um expressivo uso de notas de rodapé, em referência a profusão de informações advindas do ambiente digital – redes sociais e plataformas online – que permitem captar de forma instantânea o discurso dos atores bolsonaristas e de seus seguidores.
Não obstante, a apresentação da obra é feita pelo ex-presidente da OAB e atual Secretário Nacional do Consumidor, Wadih Damous, que ao analisar a desencadeamento do episódio, sinaliza para a persistência de mobilizações terroristas e insurrecionais no tempo presente suscitadas pela ótica militar do inimigo interno comunista. Nesse ponto, o prefaciador atina que, junto aos destroços gerados naquele domingo, entranhavam-se também antigas ideologias e estigmas da sociedade brasileira.
No capítulo primeiro, revela-se que parte do repositório utilizado para a escrita do livro advém da rede de parcerias civis e militares tocadas pela experiência profissional dos autores em órgãos públicos, como o Ministério da Defesa, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a Funai, instituições de ensino militares, a Reserva e o Serviço Ativo. Nessa ordem, no período de 12 de dezembro de 2022 e 21 de fevereiro de 2023, estabeleceram-se diálogos com diversos dirigentes do novo governo no Ministério da Justiça, na Presidência da República e Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), o que lhes permitiu elencar a temática em itens centrais, tais quais a natureza, a dificuldade de conceituação para o evento, a sua modalidade, entre outros.
Em relação ao método, este item é abordado no segundo capítulo, alertando de que a História do Tempo Presente é uma modalidade em construção, sem periodização fixa, que exige do historiador discernir entre a multiplicidade de conhecimentos que emergem da rede de dados contemporânea, sobretudo, àquelas ligadas ao que denominou “Domingo da Vergonha” examinado pela transdisciplinaridade de diferentes abordagens que se intercruzam.
Simultaneamente, os capítulos três e quatro, tratam propriamente do episódio golpista, momento em que é feita uma sondagem do clima nervoso que se instalou no país desde o pleito eleitoral de 2022. Nessa órbita, o corpo social mostrava-se notoriamente polarizado: de um lado, havia o Presidente Jair Bolsonaro, representante dos interesses da direita e extrema direita brasileira, do outro, o candidato Lula da Silva, apresentado por seus opositor de maneira caricatural como “descondenado”. Após os resultados do primeiro e segundo turno, partiu-se do núcleo bolsonarista uma enérgica desconfiança acerca dos parâmetros de validação eleitoral, como é o caso das urnas eletrônicas, que culminara na organização de acampamentos patrióticos de onde se articulou a conspiração antidemocrática de 08/01/2023.
Na seção seguinte, são analisadas as bases sociais do bolsofascismo, que emergem assentes em uma novilíngua carregada de expressões agressivas e de cunho opressor. Nesse ponto, vê-se a reunião de diversas agremiações em seu funcionamento, que transitam desde as forças policiais, passando aos caminhoneiros, taxistas e os pequenos empresários/MEI, até agrupar os membros do agronegócio nacional. Esses últimos, inclusive, ofertaram um notório subsídio econômico aos ataques de 08 de janeiro, ao financiar passagens de ônibus, instalação e alimentação dos referidos acampamentos dos patriotas, entendido como o ambiente em que se articulou não apenas tal evento, mas também outros que o antecederam, a exemplo da noite de destruição e fogo em Brasília em 12/12/2022.
Em paralelo, o capítulo seis examina a insatisfação do governo eleito com a desmedida falha de segurança dos órgãos estatais, tal como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), em advertir e desarmar os prenúncios extremistas da “Festa da Selma” – codinome utilizado para organizar a investida de domingo nas redes sociais. Esta discussão se estende ao próximo capítulo que irá ater-se às constatações posteriores ao 08 de janeiro, as quais começam a tomar forma mediante a observação dos depoimentos preliminares dos detidos.
Com efeito, tendo em vista as apurações verificadas, quiçá uma das que mais causam perturbação em um Estado Democrático de Direito seja a de que ocorreu uma evasiva da Polícia Militar do Distrito Federal da Capital de suas atribuições básicas, no momento em que o grupo diminuiu, além de se cooperar, tanto em ato quanto por inação, para o avanço dos radicais rumo aos palácios dos Três Poderes. Aditado a isso, menciona-se o achado de um documento, que simulava um decreto presidencial, na casa do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, o qual respaldaria a intervenção na Justiça Eleitoral brasileira para anulação das eleições presidenciais, e mediaria a prisão de determinados ministros do Supremo Tribunal Federal.
Mais à frente, no capítulo Intervenção Militar ou ruptura com a tradição, os historiadores refletem o descontentamento militar face à preferência de Lula da Silva por uma Intervenção Federal ao invés de recorrer ao instituto GLO/Garantia da Lei e da Ordem, conforme prevê o Artigo 142 da Carta Magna. Ação esta que colocaria a condução dos desdobramentos do 08 de janeiro sob tutela dos militares, encarregando-os de nomearem um general comandante para restituir a ordem na unidade federativa.
Concomitantemente, a seção Brasília ocupada: o fascismo em marcha! disponibiliza uma questão pontual ao inquirir a respeito da procedência da falha de inteligência da Agência Brasileira de Inteligência/Abin e do próprio GSI que possibilitou a execução do episódio terrorista, o que torna manifesto a ressurgência da Extrema-Direita fascistizada em escala global. Ao longo do capítulo, é ponderado como o fascismo desloca-se por intermédio de uma paixão mobilizadora, que se expressa em uma metapolítica focalizada na aversão e repulsa ao sistema democrático, sentimento este que permite identificar, incitar e equalizar os seus adeptos de modo unitário, tal qual sucedeu na “Festa da Selma”.
O livro traz ainda um capítulo dedicado ao posicionamento do presidente Lula defronte a situação de risco. Nas exposições do chefe de Estado vislumbra-se o entendimento de que os ataques foram praticados por uma “gente preparada”, instigada pelo discurso de ódio apregoado ao decorrer do último mandato presidencial. Com base nestas alegações, fora impulsionada na mídia e nos meios jurídicos a controvérsia da natureza do evento, que transitaram entre “Sedição”, “Golpe de Estado”, “Putsch”, “Pronunciamento”, “Insurreição” e “Terrorismo”. Após uma breve conceituação de cada termo, os autores concordam em afirmar que o que ocorrera em Brasília abrange em si todas as transgressões que lhe foram imputadas.
Outrossim, os capítulos XVII e XVIII se debruçam sobre a relação dos militares com a República, e a forma como o “Domingo da Vergonha” faz uma alusão inflamada à utopia reacionária de 1964. Neste ensejo, Francisco Carlos Teixeira e Karl Schurster traçam uma linha do tempo utilizando momentos da história brasileira em que o corpo militar interviu e se tornou personagem ativo do quadro político nacional, fator que perdura nos dias atuais. Ora, a investida de 08/01 personificava uma ocasião singular para cessar com a sujeição militar que paira sobre o país, numa ação de ruptura com a tradição tenentista e reafirmação da soberania popular.
Não obstante, expõe-se que no ano de 2016, instala-se no Brasil uma tensão que, mais tarde, desembocaria no bolsofascismo corrente. Este, afamado por seu negacionismo histórico exacerbado, inclusive no núcleo da própria família Bolsonaro, com seu saudosismo ao SNI ou ao AI-5, produzira o mais rígido colapso da República desde a década de 1960. Por conseguinte, o evento ocorrido no início de janeiro, com o comparecimento ou a inusitada ausência dos militares, trouxe à tona lembranças aflitivas das crises militares no passado republicano, o qual pode ser interpretado como um indicativo de possíveis retrocessos democráticos e instabilidades políticas que requerem análises profundas e ponderadas.
Para ampliar esse debate, a obra contém um capítulo que versa a respeito dos golpes de Estado encenados por Jair Bolsonaro. Nessa perspectiva, têm-se que, em um curto intervalo de tempo, houveram repetidas operações depreendidas pelo referido dirigente visando ameaçar a democracia brasileira. Em duas destas, o ato foi inaugurado diretamente por ele, em 2021, e, após as eleições de 2022, em parceria com o seu ministro da Justiça, forjou a disseminação de informações falsas sobre possíveis fraudes nas urnas eletrônicas. Um novo esforço de perturbar a ordem advindo do polo bolsonarista aconteceu em 02 de fevereiro, mediante a denúncia do senador Marcos do Val, o qual pretendia incluir membros do governo eleito em ações golpistas e evitar investigações, falsamente culpando o Ministro Alexandre de Moraes.
Isto posto, no capítulo final, os autores sintetizam seus apontamentos acerca do episódio praticado em Brasília, declarando-o como a personificação de uma nova maneira de protesto violento e contrário à democracia organizada por grupos da extrema-direita. Nessa ótica, o 8/01/2023 ganha a forma de uma insurreição fascista, isto é, um movimento de massa, composto por um contingente de pessoas arranjadas e patrocinadas por instituições clandestinas, cujo objetivo se expressa em subjugar um governo constitucional e possivelmente alterar a própria conformação do Estado de Direito, momento em que outros domínios já fascitizados, tais quais os militares e policiais, tomariam o controle para si em prol da harmonia social.
Haja vista, a obra cumpre com o propósito assumido pelos autores de se afastar de um relato jornalístico e se inserir no campo da História ao fazer uso de elementos como a multiplicidade temporal, a memória reconstruída e partilhada, assim como dos elos que permeiam o passado e o presente. No decurso do texto, o fascismo é observado enquanto uma unidade conceitual, em que a “novilíngua” que dele se origina endossa uma mobilização popular impetuosa, alheia ao princípio da alteridade, colocando-se como um fenômeno político-social de longa duração, que toca o cenário vigente, por exemplo, sob a configuração do ato antidemocrático de 08 de janeiro.
Sem embargo, a engenhosidade do trabalho de Francisco Teixeira e Karl Schurster reside em demonstrar que o evento extremista pleiteado na capital federal é proveniente de outros movimentos hostis à democracia arquitetados no período de 12 de dezembro de 2022 a 8 de janeiro de 2023. Durante esses dias, a constitucionalidade brasileira manteve-se em estado crítico, resultado da intervenção desses novos círculos radicais na política representativa. Dessa forma, livre de ostracismos linguísticos e narrativos, a obra entrega um alerta substancial para o público brasileiro: a necessidade de reconhecer que a presença destes grupos no panorama político é uma realidade que não deve ser postergada. De acordo com as lições aprendidas de outras nações, mesmo após a saída de Bolsonaro da presidência, essas agremiações detêm potencial em constituir um risco à soberania popular e à estabilidade administrativa do país.
Referência
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; SCHURSTER, Karl. Como (não) fazer um golpe de estado no Brasil: uma história interna do 8 de janeiro de 2023. 1. ed. Recife, PE: Editora Universidade de Pernambuco, 2023.
Resenhista
Cinthia Mirelly Gomes Barbosa – Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco/Campus Mata Norte. E-mail: cinthia.mgbarbosa@upe.br
Referências desta Resenha
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; SCHURSTER, Karl. Como (não) fazer um golpe de estado no Brasil: uma história interna do 8 de janeiro de 2023. Recife, PE: Editora Universidade de Pernambuco, 2023. Resenha de: BARBOSA, Cinthia Mirelly Gomes. Desvendando os bastidores do golpe fracassado: uma análise da insurreição fascista de 08 de janeiro de 2023. Boletim do Tempo Presente, v. 12, n. 03, p. 57-60, mar. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]