Cavaleiro de Cola/Papel e Plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade | Carlile Lanzieri Júnior
Segundo Febvre, a “história era filha de seu tempo”, o que já demostrava a intenção do grupo de problematizar o próprio “fazer histórico” e sua capacidade de observar. Cada época elenca novos temas, no fundo, falam mais de suas próprias inquietações e convicções do que de tempo memoráveis, cuja lógica pode ser descoberta (BLOCH, 2020, p. 7).
Carlile Lanzieri Júnior é professor do departamento de História e da pós-graduação em História na Universidade Federal de Mato Grosso desde 2013. O historiador é graduado pela Universidade de Cataguases, possui mestrado em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (2007) e realizou o seu doutorado pela Universidade Federal Fluminense (2013). Lanzieri Júnior é membro do Vivarium, Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo, e também é coordenador dos grupos “Sociedade, Educação e Filosofia na Idade Média” e “Redes de mestres e discípulos no renascimento do longo e amplo século XII”. Seu atual projeto de pesquisa, “Os usos do passado e o papel do medievalista diante de seus novos públicos”, busca o diálogo entre a história pública, a história global e o ensino de história da Idade Média.1
A obra que optamos por resenhar foi publicada em 2021, no entanto, a sua elaboração começou em meados de 2018, tendo como contexto histórico o avanço da direita no mundo. Esse desenvolvimento se torna evidente nos Estados Unidos após o segundo ano de mandato de Donald Trump e, no Brasil, com a eleição do ex-militar e defensor da ditadura militar Jair Messias Bolsonaro. Nessa conjuntura, podemos pensar o grande aumento do uso da internet por grupos políticos, principalmente por aqueles ligados à extrema direita, os quais apresentaram uma narrativa diatópica acerca do período medieval para construir uma história que visa a confirmar os anseios direitistas por uma sociedade branca, armamentista, masculina etc.
Em Cavaleiro de Cola, Papel e Plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade, Lanzieri Júnior dispõe os temas estudados da seguinte forma: Introdução; Capítulo I – A alcateia negacionista e a mitologização do passado medieval: palavras de medo e esperança; Capítulo II – Cavaleiros de cola, papel e plástico: histórias conectadas de diferentes usos do passado medieval na contemporaneidade dentro e fora do Brasil e seus possíveis impactos na formação do conhecimento histórico escolar; Capítulo III – Ontem e hoje, o porta estandarte: reflexões finais sobre os usos do passado medieval, a estética bolsonarista e os discursos recentes da direita brasileira; e, por último, as Considerações Finais.
Na Introdução, o historiador expõe como o contexto histórico influenciou e motivou o estudo sobre o uso da Idade Média por grupos da extrema direita brasileira e mundial. Adentrando a pesquisa, no primeiro capítulo, Lanzieri Júnior nos mostra a abordagem da Idade Média por esses grupos, utilizando de fontes como fotografias, vídeos e apresentações do YouTube, além de trechos de outras redes sociais, como Twitter, Facebook e Instagram, para comprovar como o período medieval passou a ser totalmente descontextualizado por esse espectro político. Nesse sentido, percebemos uma valorização do medievo pela direita, destacando-se um passado europeu e bélico.
No segundo capítulo, “Cavaleiros de cola, papel e plástico: histórias conectadas de diferentes usos do passado medieval na contemporaneidade dentro e fora do Brasil e seus possíveis impactos na formação do conhecimento histórico escolar”, talvez o de maior relevância para a obra, o pesquisador nos apresenta alguns importantes conceitos e interpretações históricas, como história pública, medievalismo (ALBUQUERQUE, 2019, p.37-38)2, neomedievalismo (MORAIS, 2021, p.210) 3 e “história global”. No entanto, o que chama a atenção nessa segunda unidade são justamente os problemas de uma representação da história sem um critério científico e metodológico, fazendo com que os historiadores possam refletir sobre a sua função de pensar a história na contemporaneidade.
No último capítulo, o historiador nos aponta como a história medieval também foi utilizada pela direita em outros contextos históricos, ao comparar o estilo das narrativas medievais adotadas pela extrema direita nos regimes autoritários europeus da década de 1930, como, por exemplo, o regime nazista. Nesse sentido, Lanzieri Júnior chama a atenção para os problemas que essa construção da Idade Média pode gerar para o mundo contemporâneo. Dessa forma, o objetivo da obra, segundo o autor:
Por rompantes de razão delirante e ética seletiva, como estudiosos da Idade Média, percebemos uma crescente retomada do uso do passado medieval por aqueles que adoram torturar e sacrificar a História nos recém-construídos altares da pós-verdade, da direita à esquerda do campo político. Como sabemos, desde pelo menos o século XV, os usos referenciais do medievo em contextos a ele posteriores são conhecidos e praticados. Contudo, na atualidade, em função do distanciamento temporal e do desconhecimento acerca das inúmeras pesquisas especializadas sobre o período histórico em questão por parte do grande público, esses usos (e múltiplos abusos, evidentemente) ganharam novas gradações e possibilidades quase que infindáveis de disseminação. E estas servem para fomentar toda sorte de preconceitos e insanidade e encontraram na organicidade invisível dos já mencionados algoritmos a segurança para trafegar em qualquer direção sem barreiras. Ninguém está livre desta ameaça. Ao que parece, estamos apenas no começo dessa nova-velha história (LANZIERI JÚNIOR, 2021, p. 27).
O livro faz uma reflexão teórica e metodológica acerca de algumas compreensões que vêm sendo debatidas e avaliadas na atualidade pela historiografia, como, por exemplo, o medievalismo, o neomedievalismo e também a história global. Valendo-se de todas essas perspectivas metodológicas, Lanzieri Júnior questiona em seu trabalho como a direita na contemporaneidade utiliza do período medieval para constituir seu discurso, ou seja, o historiador “busca analisar diferentes narrativas (escritas e visuais) que fizeram (ou ainda fazem) uso do passado medieval para legitimar ideologias na modernidade e na contemporaneidade” (LANZIERI JÚNIOR, 2021, p. 28). Assim, a obra Cavaleiro de Cola, Papel e plástico aborda a forma como o passado medieval é utilizado pela direita nos Estados Unidos e no Brasil.
Para o desenvolvimento do estudo, o historiador utiliza fontes ligadas à internet, como, por exemplo, canais de YouTube, páginas de Facebook e também grupos de WhatsApp e Twitter. Todas as redes sociais estudadas por Lanzieri Júnior se relacionam com o pensamento da direita cristã, nacionalista, defensora dos bons costumes, armamentista e contrária às minorias. Assim sendo, por meio da análise do discurso apresentado por esses grupos na internet, foi possível a concepção da obra pelo historiador.
O alicerce metodológico do livro de Lanzieri Júnior é o “medievalismo”, que pode ser compreendido como um campo de estudo que se concentra na recepção das representações medievais, ou seja, é um processo contínuo para recriar, lembrar ou reapropriar o passado medieval. Nesse sentido, podemos compreender que o conceito está conectado com o uso da Idade Média em distintos aspectos midiáticos, como, por exemplo, obras literárias, jogos de videogames, bandas de heavy metal, memes, seriados de televisão, filmes e até mesmo produção de estudos sobre história. Outro aparato teórico que embasa o estudo é a história global, no qual se estrutura a prerrogativa dos “4Cs”: conectar, comparar, conceituar e contextualizar, que são perspectivas defendidas, pensadas e organizadas pelo historiador Diego Olstein (2015, p. 51-58). Com elas, Lanzieri Júnior busca entender o uso e a construção de novas narrativas acerca do período medieval pela extrema direita.
O autor debate com uma historiografia que aborda o medievalismo e compreende essas releituras na contemporaneidade. Ainda pouco debatidos no Brasil, esses estudos vêm ganhando forma e impulso com as contribuições de Lanzieri Júnior para a historiografia brasileira, uma vez que o autor apresenta temas e autores pouco estudados, como Guillermo Altares, Juan Arias, Candace Barrington, Sebastian Conrad, Andrew B. R. Elliott, Tommaso di Carpegno Falconieri, Ralph Keyes, Andrew Lych, Richard Utz, entre outros autores e obras mais recentes. Sendo assim, trata-se de uma contribuição importante para a compreensão das narrativas contemporâneas sobre o medievo, uma vez que essa é a primeira obra que apresenta a perspectiva de uma história global, vinculada às propostas do medievalismo e neomedievalismo.
Compreendemos que o trabalho de Carlile Lanzieri Júnior é uma grande contribuição para a historiografia referente ao medievo no Brasil, pois o autor é pioneiro em investigar a reelaboração do período medieval pela direita. O historiador apresenta uma vasta historiografia que visa a abordar categorias referentes à história pública, ao medievalismo e ao neomedievalismo. Ou seja, através dessa obra, podemos pensar categorias históricas que ainda estão sendo debatidas e refletidas ao redor do mundo, de modo que Lanzieri Júnior busca inserir a produção historiográfica brasileira nessa discussão. Outro ponto que também destacamos é que esse estudo foi o primeiro em língua portuguesa a debater essas categorias, abrindo, com isso, um leque de possibilidades futuras para pesquisas interessadas nessas novas abordagens. Dessa forma, Cavaleiro de Cola, Papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade torna-se uma obra basilar para entender como a história da Idade Média vem sendo recontada, reinterpretada e reescrita pelos espectros da direita na contemporaneidade.
Notas
1 Informações retiradas de http://lattes.cnpq.br/4540469424960429. Acesso em: 29 jun. 2021.
2 O medievalismo seria ‘o contínuo processo de criar a Idade Média acarretando no estudo da Idade Média não em si mesma, mas dos estudiosos, artistas e escritores que construíram a ideia de Idade Média que herdamos’ […] Medievalismo tornara-se, então, sinônimo de reutilização de motivos, temas, gêneros e topos medievais na cultura pós-medieval, expressos na arquitetura, na arte, na teoria social e política, nos romances, na poesia, no cinema, e nas expressões folclóricas. Mais tarde, a área se expandiria, abrangendo jogos eletrônicos, mídias e outras formas de cultura pop(ular).
3 Insere-se no setor da indústria cultural de massas e entra de vez na lógica de consumo-produção pautada pela relação mercadológica que é o próprio ao sistema capitalista. […] o neomedievalismo não é, portanto, um sonho da Idade Média, mas o sonho do medievalismo de outra pessoa. É o medievalismo dobrado sobre si mesmo.
Referências
ALBUQUERQUE, Mauricio da Cunha. Por Trás da Capa e a Espada: O Neomedievalismo em “Príncipe Valente” de Hal Foster (1939-1940). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.
BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
LANZIERI JÚNIOR, Carlile. Cavaleiro de Cola, Papel e plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade. Campinas: D7, 2021.
MORAIS, Luan L. O “mito” fundador luso-brasileiro: apropriações do passado medieval europeu na construção de uma identidade nacional em “Brasil”, a última cruzada. In: GATT, Pablo; CARNIEL, J.S.(Org.) Estudos em Medievalismo: sociedade, poder e cultura. 2ed. Vitória/ Vila Velha: LETAMIS (Laboratório de Estudos Tardo-Antigos e Medievais Ibéricos e Safaradis), 2021, v.2, p.203-232.
OLSTEIN, Diego. Thinking History Globally. Londres: Palgreve Macmillan, 2015.
Resenhista
Éderson José de Vasconcelos – Mestre em História Ibérica pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG) e atualmente é doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: ederson_vasconcelos@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-7960-3060
Referências desta Resenha
LANZIERI JÚNIOR, Carlile. Cavaleiro de Cola, Papel e Plástico: sobre os usos do passado medieval na contemporaneidade. Campinas: D7, 2021. Resenha de: VASCONCELOS, Éderson José de. As prerrogativas do Neomedievalismo: as fundamentações históricas da direita em Terra de Santa Cruz. Faces da História. Assis, v. 9, n. 2, p. 320 -324, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]