Blood and Boundaries: The Limits of Religious and Racial Exclusion in Early Modern Latin America | Stuart Schwartz
Stuart Schwartz é certamente um dos mais importantes autores da historiografia atual sobre o mundo ibérico na primeira modernidade. Para simplificar, podemos definir este campo como o dos estudos sobre Portugal e Espanha, além de seus domínios e espaços de interesse entre os séculos XV e o XIX. Schwartz tem pesquisado sobre as dimensões da vida econômica, social, política e cultural, com atenção para a formação econômica, as instituições do poder e da justiça, a luta social, formas de resistência e negociação, assim como aspectos da cultura política, intelectual e religiosa dos povos imersos e submersos nesse espaço dos impérios português e espanhol. Seus livros, artigos e textos compõem uma obra vasta e plural, mas coesa; uma obra comprometida com o estudo crítico da sociedade e de expressões da resistência popular.
Em um novo livro, publicado em 2020 pela Brandeis University Press (a sair no Brasil pela editora Companhia das Letras), Schwartz retoma sua investigação sobre asraízes modernas da discriminação religiosa e étnica, que iniciara (de uma certa forma) pelo caminho inverso no seu estudo sobre a tolerância religiosa e os caminhos alternativos para a salvação. Com efeito, no livro All Can Be Saved (publicado no Brasil em 2009 como Cada um na sua lei pela Companhia das Letras), o historiador trouxe à luz atitudes de tolerância, de aceitação e abertura para a diversidade religiosa que confrontavam a sociedade ibérica, profundamente marcada pela brutalidade da ortodoxia católica, pela violência da inquisição e pelo controle do pensamento e dos comportamentos. Este livro – fortemente inspirado, como bem notou Yosef Kaplan, na obra de Carlo Ginzburg, que havia estudado no seu Queijos e os Vermes (1976) as ideias relativistas e tolerantes de Menocchio – foi uma incursão no lado mais solar do pensamento ibérico, na busca de experiências, pensamentos e atitudes que confrontavam a opressiva sociedade ibero-americana.
Já em Blood and Boundaries o historiador toma um caminho mais sombrio e difícil. O livro, formado por três ensaios que estão profundamente interligados, investiga a exclusão racial e religiosa na América Latina colonial. Sua proposta é examinar como, nas sociedades ibéricas, princípios de incorporação ou exclusão foram mudando de ênfase no curso da primeira modernidade e, em particular, nas experiências sociais da colonização. Diferentemente do estudo anterior, o autor quer agora, de forma sintética e impactante, revelar esses territórios limiares das sociedades ibéricas, nos fazer compreender como a colonização – resultante da violenta conquista e domínio de terras e povos – confrontou e construiu realidades sociais de transição e que, nos marcos da ortodoxia religiosa, eram exclusivistas e segregadoras. Como Ginzburg, Schwartz apresentou suas pesquisas na prestigiosa série das Menahem Stern Lectures, abrigadas na Sociedade Histórica de Israel. Desde 1993, quando foram instituídas em memória do professor Stern, grandes historiadores são convidados para apresentar três conferências ao público, que são publicadas em seguida. Stuart Schwartz esteve em Israel em 2019 e este novo livro é o resultado dessas conferências.
Inicialmente centradas nas dimensões religiosas ou étnicas, os limites da exclusão moveram-se para o fenótipo, ou o que podemos chamar de discriminação racial. Desta forma, seu estudo nos ajuda a apreender a construção do fenômeno contemporâneo do racismo nas suas raízes modernas e coloniais. O assunto, como sabemos, já foi abordado por ampla bibliografia. Blood and Boundaries, contudo, é inovador porque seu olhar, como Schwartz revela na introdução, não foi capturado “pelo estudo das leis e instituições que buscaram fazer cumprir as exclusões e reforçar a hierarquia social, ou no discurso e padrões do pensamento genealógico que buscaram distinguir pureza e contaminação” (p. 5). Por uma opção deontológica, mais que metodológica, o historiador orienta seu interesse para a compreensão da experiência dos indivíduos, das pessoas que concretamente vivenciaram as situações e condições de restrição e que, pela ação das estruturas sociais e políticas, pelas instituições do Estado e da Igreja católica, foram marginalizadas, perseguidas e violentadas. Olivro tem como objetivo compreender como um sistema de exclusões operava definindo parâmetros de vida para grupos específicos, mas sobretudo revelar como essas restrições e desvantagens, “quando vistas através das experiências de vida de famílias ou indivíduos”, poderiam ser “contornadas, negociadas, ignoradas”, e mesmo terem fracassado como medidas de marginalização social, “embora tenham sido relativamente bem-sucedidos em enfraquecer esses grupos como atores corporativos com interesses políticos” (p. 10). Neste particular, seu estudo procura, então, revelar a resistência e os limites deste mesmo processo de marginalização.
O livro está organizado em três capítulos, cada um dedicado ao estudo de uma dessas condições de fronteira. Nos dois primeiros, o historiador volta-se para o grupo de convertidos ao cristianismo: os mouriscos, que eram os muçulmanos convertidos ao catolicismo; e os conversos ou “cristãos-novos”, como se chamavam os judeus convertidos em Espanha e em Portugal. Esses dois grupos, apesar de formalmente integrados às sociedades ibéricas, eram marginalizados e sofriam várias formas de controle, podendo mesmo ser proibidos de migrar ou fixar residência na América, por exemplo. No terceiro capítulo, o historiador estuda a figura do “mestiço”, termo que designava originalmente um indivíduo resultado da união, em geral violenta, entre europeus e indígenas americanos, e que será ampliado para englobar os descendentes de brancos com negras, particularmente africanas escravizadas. As categorias de mourisco e conversos estão referenciadas à relação da cristandade com as outras duas grandes religiões monoteístas; já a categoria de mestiço, mais ampla e polissêmica, refere-se, sobretudo, a um dos resultados do processo de colonização – a conquista e a escravização dos povos indígenas e o tráfico e a escravização dos africanos. Estes são processos implicados na violência da dominação; os mestiços seriam, então, o resultado do estupro, concubinato e mesmo uniões formais (nos padrões cristãos).
O primeiro capítulo, sobre os mouriscos, procura revelar a existência, imaginária ou real, desses muçulmanos (mouros) convertidos de maneira forçada, por ordem dos reis católicos de Espanha em 1502 e, depois de um século, expulsos dali por Filipe III, em 1609. Nas Américas, sua presença – quase nunca confirmada – era sobretudo imaginária, em razão do preconceito e do ódio religiosos, que traçavam as fronteiras da fé, que os identificavam como os reais inimigos da cristandade. Uma categoria sobretudo utilizada nas disputas políticas e sociais, quando se projetava no inimigo ou desafeto a condição estigmatizada de mouro. Na América, no trato com os grupos indígenas e mestiços, o uso da analogia da fronteira cultural e religiosa do Mediterrâneo, identificando os povos resistentes ou irredentos como “corsários”, renegados da fé, mouros… persistiu como metáfora. Afinal, nas palavras de Schwartz, “o medo de uma ação militar muçulmana hostil nas Índias, sempre algo fantástico, havia diminuído para uma preocupação distante no século XVII”. Para a maioria das pessoas na América espanhola e portuguesa, “os únicos mouros que tocavam suas vidas diárias eram os das lendas da sensual moura encantada, expressões como trabalhar como um mouro (mourejar), ou os dançarinos mascarados nas encenações de moros y cristianos…” (p. 38). Contudo, o historiador nos alerta que, no amanhecer do século XIX, “a analogia mudou para a realidade”. O “antigo inimigo quintessencial” das sociedades ibéricas cristãs havia chegado na América, mas não eram “turcos otomanos ou corsários berberes”, mas africanos escravizados – como os fulanis, bornus, haussás e iorubás – que utilizaram suas “associações étnicas e religiosas para acabar com seu cativeiro e, de certa forma, para manter suas culturas e crenças” (p. 39).
No capítulo segundo, o historiador estuda a situação dos “mestiços da fé”, ou seja, os conversos ou cristãos-novos – judeus que haviam sido batizados como católicos, mas eram sempre suspeitos de apostasia. A expulsão dos judeus ou a sua conversão forçada, resultara em que, no início do século XVI, não havia mais em Portugal ou Espanha uma comunidade judaica que, ao menos de forma pública, pudesse professar sua fé. Contudo, mantinham-se ali “milhares de indivíduos ou famílias que eram ostensivamente cristãos na religião, mas permaneciam étnica e culturalmente vinculados à nação hebraica” (p. 41). Esse senso de pertencimento era, ao mesmo tempo, uma forma de resistência, mas também um traço que ampliava a paranoia de uma sociedade e de instituições intolerantes; dessa maneira, fica claro que os novos conversos eram discriminados com base em regras de “limpeza de sangue”, o que impedia – paradoxalmente – sua plena assimilação. Schwartz, de forma elegante, sintetiza neste ensaio muitas das questões formuladas, e por vezes respondidas, por uma vasta bibliografia sobre o tema. Em pauta a presença dos cristãos-novos nas Américas; sua situação particular no Brasil, onde, ao contrário da Hispanoamérica, a Inquisição não implantou um tribunal; seu protagonismo nas posições mais elevadas do comércio e das finanças, que condicionava e limitava, por vezes, o controle, mas não impedia a marginalização e, frequentemente, a cruel perseguição.
O último ensaio, mais amplo, é dedicado aos mestizos, uma categoria criada pelo “contato sexual e cultural” dos europeus com povos nas Américas. Um fenômeno que “levou à mudança de distinções baseadas na religião para uma sociedade aparentemente baseada na cor, ou no fenótipo, ou, como muitos argumentaram, deve ser chamado de raça” (p. 73). Com efeito, segundo Schwartz, se com o tempo “surgiram taxonomias raciais”, “o processo de mestiçagem nunca foi simplesmente biológico”: “as circunstâncias sociais e históricas sempre determinam os parâmetros das categorias dos povos e suas variadas definições ao longo do tempo” (p. 73). Essas são, afinal, categorias instáveis e conjunturais, criadas em cada espaço e tempo no complexo processo da colonização, que é o da formação dos impérios ibéricos.
Esse é, certamente, o ensaio mais difícil do livro, pela dimensão ampla e incerta do objeto. Com efeito, nas palavras do autor, “o processo de conquista e colonização europeia criou uma miríade de novas categorias humanas e supostas afiliações das quais a miscigenação sexual ou reprodutiva, a ‘mistura de sangue’, era apenas uma dimensão de uma miríade de contatos culturais e físicos”:
Amas de leite africanas ou nativas americanas amamentavam crianças nascidas de mães espanholas, os europeus às vezes se tornavam eles mesmos ‘nativos’, os chefes indígenas procuravam brasões espanhóis, os indígenas pobres costumavam se vestir como espanhóis ou mestizos para evitar o pagamento de tributos e os mestizos podiam alegar ser indígenas para evitar a jurisdição da Inquisição. Havia intermediários (passeurs) culturais de muitos tipos. O próprio processo de conquista provavelmente foi a força mais transformadora de todas na criação de novas categorias. (p. 74).
O livro não se fecha. São ensaios que podem ser lidos de forma autônoma, a depender do interesse do leitor. Não são, por isso mesmo, exaustivos, nem pretendem abarcar toda a vasta historiografia sobre o assunto, tão ampla para temas tão complexos. É claro que o assunto não se encerra nesses ensaios e nos recortes propostos. Mas não é algo que possamos exigir do autor – pelo contrário! Entre os muitos proveitos do livro de Schwartz se encontra a sugestão de novos estudos, novas leituras, para compreender as vivências dos marginalizados, desses grupos constituídos e excluídos pela violenta modernidade europeia, na sua dimensão ibérica e colonial.
Cabe uma outra consideração. Alguém poderia dizer que Schwartz contribui, com este ensaio, para uma nova história global que se pretende escrita a partir de uma perspectiva desprendida dos constrangimentos de projetos historiográficos nacionais. O estudo dos mecanismos de exclusão aqui estudados ultrapassa as fronteiras dos impérios português e espanhol e se apresenta em um território mais amplo. A noção de um mundo ibérico – não mais comprometido com as narrativas unionistas e reacionárias do fascismo espanhol ou luso-brasileiro – estão sendo agora revisitado, reativado por uma historiografia interessada em comparar e conectar histórias, compreender dimensões estruturais que atravessam os impérios português e espanhol, confrontar diferenças e encontrar semelhanças. Mas, sobretudo, perceber processos que são análogos.
Não creio, contudo, que a novidade esteja nas novas perspectivas, novas abordagens. Pelo contrário, Schwartz e outros historiadores há muito têm percorrido um território historiográfico solidamente constituído. Seu livro é parte de uma densa literatura interessada na dimensão global do processo de colonização; processo que, ao mesmo tempo que inventa uma América, inventa e transforma uma Europa conflagrada.
Estes ensaios podem ser lidos como uma reflexão sobre uma das mais angustiantes aporias do contemporâneo: a exclusão social e a discriminação racial que ainda definem nossas sociedades. Condições que parecem se reforçar no nosso tempo, em paralelo a novas religiões que revelam sua índole para a intolerância e o fanatismo, corrompendo os avanços dos direitos da pessoa humana, em particular da liberdade e autonomia das crenças (religiosas ou não). Nas palavras de Schwartz, “antigas sombras da exclusão – limpieza de sangre, a difamação do indigenismo, as desvantagens impostas às origens dos escravos e os legados e manchas conceituais de casta e mestizaje” (p. 110) ainda pesam nas vidas e experiências de muitos indivíduos e coletividades. Compreender a construção dessas violências é um passo para superá-las.
Resenhista
Pedro Puntoni – Universidade de São Paulo. https://orcid.org/0000-0002-6451-281X
Referências desta Resenha
SCHWARTZ, Stuart. Blood and Boundaries: The Limits of Religious and Racial Exclusion in Early Modern Latin America. Waltham: Brandeis University Press, 2020. Resenha de: PUNTONI, Pedro. Os limites da exclusão religiosa e racial na América Latina colonial. Afro-Ásia, n. 65, p. 724-730, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]