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As Vidas de José Bonifácio | Mary Del Priore

Veio a público uma biografia sobre um dos personagens mais controversos e emblemáticos da história do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva. E, redigida por uma das mais importantes autoras brasileiras, com uma vasta produção acadêmica, a historiadora Mary Del Priore. A obra é destinada tanto aos especialistas, como ao público em geral.

O livro busca contribuir para uma historiografia produzida nos últimos anos que objetiva desconstruir visões e ideias cristalizadas por historiadores desde o fim dos anos 1920 e início dos anos 1930, momento em que trataram o personagem como um herói ou ídolo, como um pioneiro, o “patriarca da independência”. Dentre tais autores podemos mencionar Alberto Sousa, autor de Os Andradas, editado em 1922.

Falamos contribuir pois a obra de Del Priore não é a pioneira a ter como mote a intenção de desconstruir essa imagem forjada pelo próprio José Bonifácio como o “patriarca da independência”, imagem que seria recuperada no ano do centenário da Independência do Brasil e perduraria ao longo do século XX. Já na última década dos novecentos surgiram estudos apresentando uma releitura da história da nossa independência e que questionavam a visão de Bonifácio como um “santo”. Dentre os autores que se encaixam nessa releitura estão Lúcia Bastos, com a obra Corcundas e Constitucionais, publicada em 2003, e Isabel Lustosa, com a obra Insultos Impressos, de 2000. As duas publicações são sobre a história da imprensa na época da Independência, não centradas propriamente dito no personagem José Bonifácio. Mas, elas já questionavam a imagem do “Timoneiro da Independência”.

Por sua vez, há aquelas obras centradas única e exclusivamente na trajetória de Bonifácio como as que foram produzidas por Alex Gonçalves Varela (“Juro-lhe Pela Honra de Bom Vassalo e Bom Português”: As Memórias Científicas Produzidas por José Bonifácio (1790-1819)), de 2006; Ana Rosa Cloclet da Silva (Construção da Nação e Escravidão no Pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva), de 1999; Berenice Cavalcante, José Bonifácio: Razão e Sensibilidade. Uma História em Três Tempos, de 2001. E, no campo biográfico, a obra de autoria de Miriam Dolhnikoff (José Bonifácio. O Patriarca Vencido), de 2012, dentre outros.

Vale a pena sublinhar que, em menos de duas décadas, foram publicados dois estudos biográficos sobre o personagem José Bonifácio. A primeira supracitada por Dolhnikoff, e a segunda publicada agora por Mary Del Priore. A valorização da biografia está diretamente ligada ao processo de renovação da mesma no período entre o final dos anos 70 e começo dos 80 do século passado, quando o indivíduo voltou a ocupar um lugar central nas preocupações dos historiadores. Após a polêmica contra a “história historizante” que fez da biografia um emblema da história tradicional e événementielle* , a biografia renovada superou aquele tipo tradicional superficial, anedótica, puramente cronológica, pouco problemática, que heroiciza o personagem, e passou a ser “o lugar por excelência da pintura da condição humana em sua diversidade, se não isolar o homem de suas diferenças ou o exaltá-lo às custas de seus dessemelhantes”.** Ela não pretende explorar um indivíduo em sua exaustão, nem fazer o culto ao herói ou ser apologética. E, a biografia de José Bonifácio produzida por Del Priore segue essa postura, ao mostrar como o próprio Bonifácio se auto construiu a sua imagem de “patriarca da Independência” e construiu sua época do mesmo modo que foi construído por ela. E esta construção foi realizada de acasos, hesitações e de escolha. Ademais, a autora para construir a biografia do personagem teve que conhecer a sociedade em que ele atuava, aquela da lenta agonia do Antigo Regime Português e o início do nascimento do Brasil enquanto país.

Um dos méritos da historiadora foi analisar para a construção da biografia uma documentação produzida por Bonifácio que se encontra em suas coleções de manuscritos guardadas em bibliotecas e instituições arquivísticas que diz respeito à notas pessoais, íntimas e subjetivas, sem referência ao local onde foram escritas e não datadas, o que dificulta a contextualização. São escritos sobre história, países, mulheres, caráter dos brasileiros e dos portugueses, sobre os lentes da Universidade de Coimbra, dentre outros. Essa prática da escrita de si deixa ver a “silhueta” do letrado, e, nessas curtas observações, ele se distinguia dos contemporâneos que deixaram longas descrições da época, da política, da paisagem e dos costumes em memórias ou correspondências. Ele preferia frases soltas, curtas, mais fáceis de se retratar.

Para narrar a vida de José Bonifácio, a autora dividiu a obra em três partes. Na parte inicial, ela inicia apresentando o local de nascimento do personagem, a cidade de Santos, e a sua família. Argumenta que os Andradas eram “alvos” e tinham negócios como tantos outros comerciantes, mas não estavam incluídos entre as casas fidalgas. Na adolescência, deixou Santos e foi para São Paulo, onde ficou sob os cuidados de frei Manuel da Ressurreição, bispo que dava aulas de lógica, ética e retórica. A seguir foi para o Rio de Janeiro, e daí partiu para Portugal, onde foi realizar os estudos superiores na Universidade de Coimbra. Para lá também iriam seus outros dois irmãos, Antonio Carlos, e Martim Francisco. Neste espaço formou-se em Leis e Filosofia. Prosseguindo, ele ingressou na Academia Real das Ciências de Lisboa, e foi condecorado com uma bolsa do governo português para realizar uma viagem de aperfeiçoamento técnico por diversos países da Europa setentrional e Central. Passados dez anos viajando, retornou a Portugal, momento em que teve a oportunidade de ser tornar um membro do aparelho do Estado, ao ser agraciado com diversos cargos públicos, como o de Intendente Geral das Minas e Metais do Reino, e esteve bem próximo ao todo-poderoso ministro Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. Retornou ao Brasil no ano de 1819. Portanto, Bonifácio esteve em Portugal no período de 1780 a 1819, ou seja, trinta e nove anos.

A segunda parte tem início com o retorno de Bonifácio ao Brasil, agora a cidade do Rio de Janeiro transformada na capital do Império Português, desde o ano de 1808. Dois anos antes havia estourado o movimento rebelde de Pernambuco, em 1817, no qual seu irmão Antonio Carlos esteve envolvido, tendo sido inclusive preso. Desembarcou no Rio de Janeiro, onde recebeu o título de membro do Conselho de D. João VI e retirou-se para Santos. Em companhia do irmão Martim Francisco realizou uma viagem mineralógica pela Província de São Paulo, e depois não mais atuou como naturalista. Começou a se imiscuir na vida pública. Integrou na qualidade de vice-presidente, a Junta Governativa da Província de São Paulo, que se formou no contexto do Movimento Vintista Português. Redigiu, junto com os irmãos, o texto Lembranças e Apontamentos..., escrito que orientaria os trabalhos dos deputados paulistas nas Cortes. A seguir passou a participar ativamente da vida política brasileira, tendo sido nomeado para chefiar o Ministério dos Negócios do Reino e Estrangeiros. Teve participação incisiva no processo de Independência, lutando pela manutenção do Império do Brasil, e a defesa de uma forma de governo monárquica nos moldes do absolutismo ilustrado. Fundou o Apostolado, uma sociedade secreta maçônica. No cargo de ministro, ganhou amigos, mas também inimigos. Com estes últimos, foi autoritário e intolerante. Reprimiu com violência. Na Assembleia Constituinte, apresentou inovador projeto para o Brasil, que previa a abolição da escravidão, a integração do indígena, a promoção da mestiçagem, e a civilização do povo e da elite segundo padrões europeus. Tal projeto criaria tensões, e entrou em rota de coalizão com agricultores, comerciantes, pequenos e grandes donos de escravos. Resultado: D. Pedro I demitiu o Ministério dos Andradas e Bonifácio passou da situação à oposição. Fundou o Tamoio, espaço em que formularia críticas ferozes ao governo do Imperador e seus aliados, bem como naquelas páginas argumentou que foi “o primeiro que preguei a Independência e liberdade do Brasil”. Portanto, ele próprio criou um jornal para se autopromover como o “patriarca da independência”. Com a dissolução da Assembleia, os irmãos Andradas foram presos, julgados e deportados.

Na terceira parte, a autora narra a ida dos Andradas para o exílio. Eles foram para a França, mais precisamente para a cidade de Bordeaux. Momento de desgosto, de amargura, de sentimento de traição, de derrota. De articulador da Independência a exilado. E de ministro poderoso a inimigo do Imperador, a quem passou a chamar de “o Rapazinho”, “o enfático defensor perpétuo”, “Pedro Malasartes”. Durante cinco anos e oito meses, Bonifácio viveu isolado, recebendo apenas uma pensão dada pelo Estado, que às vezes atrasava. Ao retornar ao Brasil, queria descansar e foi para o “retiro filosófico de Paquetá”. Mas, logo seria chamado para participar da vida pública. Com a abdicação do Imperador, este lhe nomearia tutor dos seus filhos. Cargo de prestígio. Contudo, os inimigos de outrora reapareciam, e passariam a argumentar que Bonifácio era um traidor ou inepto, “velho decrépito”, responsável pelo absolutismo de D. Pedro I. Foi demitido do cargo. Retornou a Paquetá, onde passou os últimos anos de sua vida.

A autora escreve a biografia com uma linguagem acessível, fácil de ser compreendida. Ela busca “romancear” o texto, torná-lo mais agradável ao leitor, que pode ser um especialista no assunto, ou não. Em momento algum, ela não utiliza notas de pé-de-página, exceto para traduções, nem apresenta ao longo do texto os autores em que está se baseando ou refutando. Busca fugir das regras acadêmicas. Ao final apresenta uma extensa bibliografia, informando a documentação de Bonifácio que utilizou, bem como os artigos, livros e teses lidos.

Um dos pecados da biografia sobre José Bonifácio redigida por Mary Del Priore diz respeito ao perfil de estudioso das ciências. A autora demonstra não ter o entendimento das ciências, tal qual ela era praticada na época do Andrada. Esse ponto negativo deixa transparecer a falta de diálogo entre os historiadores e os historiadores das ciências. Pois há uma produção acadêmica sobre a trajetória de naturalista de José Bonifácio, e que a autora pouco mencionou.

Bonifácio formou-se em Filosofia na Universidade de Coimbra, onde teve contato com o mestre Domenico Vandelli, que ensinava com base nos livros de “Lineu”. A seguir ingressou na Academia Real das Ciências de Lisboa, onde passou a estabelecer contatos importantes. Não a toa foi agraciado com uma bolsa de estudos para a realização de uma viagem de aperfeiçoamento técnico por diversos países da Europa Central e Setentrional, quando deveria frequentar minas e escolas de mineração. A viagem complementou a sua formação e especializou as suas atividades, tornando-se, como o próprio Bonifácio afirmava, um “metalurgista de profissão”. Ademais, possibilitou que ele tivesse mantido contatos com importantes homens de ciência da época, como Abraham Gottlob Werner, responsável por elaborar uma sistemática de classificação dos minerais, e frequentar a Bergakademie Freiberg, uma das mais importantes academias de minas do mundo. A viagem também possibilitou a Bonifácio produzir conhecimento, uma vez que publicou vários estudos científicos, detalhados e pormenorizados, e não superficiais, que deixam transparecer que o autor estava atualizado com as modernas ideias científicas, e conhecia os principais sistemas de classificação dos minerais, descobriu quatro novos minerais, e passou a integrar importantes sociedades científicas, como a Sociedade Filomática de Paris, e a Sociedade de História Natural de Paris. Salienta-se que em Paris teve sim aulas com Antoine François de Fourcroy, fato que é comprovado no Diário de Despesas e Lições na Cidade de Paris, documento pertencente ao acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, onde informa ter estudado com o sábio (“Lição de Fourcroix”).

Na Inglaterra, ele lá não esteve visitando minas. Também não integrou a Royal Society, espaço ímpar da ciência, mas que também não invalida nem um pouco a sua carreira como naturalista. A adesão às ciências modernas era buscada em distintos espaços, selecionando os conhecimentos que mais lhes interessava, uma vez que os centros científicos nem sempre eram os mesmos. E, para Bonifácio o espaço científico selecionado era Freiberg, e o seu mestre Werner. Bonifácio e as ciências se internacionalizaram, ao contrário do que argumentou a autora da biografia.

Após o período de dez anos (1790-1800) viajando pelas minas e escolas europeias, Bonifácio retornou a Portugal. Logo ao chegar, estabeleceria uma aproximação importante junto ao todo-poderoso ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que lhe nomeou para diversos cargos. Bonifácio ficou responsável por administrar minas, matas e bosques, e rios. Os cargos para os quais foi nomeado eram centrais para o programa reformista político-científico de D. Rodrigo que visava promover a regeneração do Império Português. E tinham que ser exercidos por um letrado, estudioso das ciências, especializado no campo da História Natural. Fruto da sua atuação nesses cargos, ele produziu importantes memórias científicas, verdadeiros mananciais de produção de conhecimento, muitas das quais foram publicadas e outras permaneceram manuscritas. Podiam não ser de alto escalão, mas eram funções centrais para o projeto de D. Rodrigo. Enfrentava inúmeras dificuldades, como o atraso de salários, mas que sempre procurou exercê-los da melhor maneira possível.

Salienta-se que as suas memórias científicas, como eram chamados os artigos científicos na época, deixam transparecer a atualização do seu pensamento científico com tudo aquilo que de mais moderno era defendido nos principais científicos europeus. A produção do conhecimento caracterizava-se pelo utilitarismo, pragmatismo, e ecletismo, características da História Natural moderna, conforme foi preconizada por Francis Bacon. E, Bonifácio assim procedia. Como ele próprio afirmou, “tenho honra de defender o nome de português e acadêmico”.

A obra Vidas de José Bonifácio é mais uma importante contribuição sobre este personagem contraditório e controverso da história do Brasil. O mérito da obra está em argumentar que ele foi um personagem complexo, amado por muitos, mas odiado por tantos outros. Ele próprio construiu a sua imagem e história. Foi um homem de carne e osso. Há ainda muito a desvendar sobre este indivíduo. Bibliotecas e arquivos estão abarrotados de coleções de manuscritos do personagem. Como a própria Mary Del Priore argumenta, “Isso consola, pois nenhuma biografia é completa ou definitiva. Que venham outras”. (p. 295). E assim esperamos! Durante longo tempo expulsas do campo da pesquisa histórica, as biografias agora estão bombando.


Notas

* LORIGA, Sabrina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (Org.) Jogos de Escalas. A Experiência da Microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, p. 234.

** LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René (org.). Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 175.


Resenhista

Gonçalves Varela – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


Referências desta Resenha

PRIORE, Mary Del. As Vidas de José Bonifácio. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019. Resenha de: VARELA, Gonçalves. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 270-273, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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