As ciências na história das relações Brasil-EUA | Magali Romero Sá, Dominichi Miranda de Sá, André Felipe Cândido da Silva
Os 17 artigos desta coletânea têm como tema o relacionamento entre Estados Unidos e Brasil na área técnico- -científica sobretudo a partir da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942. Desde 1933 os Estados Unidos vinham implementando a “política de boa vizinhança” com os países da América Latina, estabelecendo diferentes formas de colaboração diplomática, econômica e militar, para limitar a influência dos países do Eixo na região. A partir de 1940-1941, o governo americano estabeleceu o Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, dirigido pelo milionário Nelson Rockefeller, para conduzir essa política, sobretudo na área cultural. O Brasil vinha se mantendo neutro até então, mas, finalmente, não resistiu à pressão e entrou na guerra do lado americano. A partir daí o relacionamento entre os dois países se estreitou, com a instalação de duas bases militares norte-americanas em Natal; um esforço sistemático de produção de matérias-primas, sobretudo a borracha, mas também outros minerais e alimentos, para apoiar o esforço de guerra americano; o acordo para a construção da Usina de Volta Redonda e de reequipamento das forças armadas brasileiras; e a preparação da Força Expedicionária Brasileira para participar do teatro de guerra europeu.
Além disso, a Fundação Rockefeller já vinha atuando no Brasil desde 1916, sobretudo no apoio a atividades na área da saúde pública, e essa participação se intensificou durante a guerra, com destaque para o apoio à formação e consolidação de grupos de pesquisa brasileiros, especialmente nas áreas de saúde pública, física, genética e agricultura. As atividades da Fundação e a designação de Nelson Rockefeller para coordenar as relações culturais entre os Estados Unidos e a América Latina não são mera coincidência. Dona de uma das maiores fortunas do mundo, a família Rockefeller desenvolvia intensas atividades econômicas, políticas, culturais e filantrópicas nos Estados Unidos e em outras partes do planeta, e, durante a guerra, sobretudo no continente americano. Na visão da época havia o entendimento, descrito pelo termo “progressivismo”, de que crescimento econômico, modernização, ciência, tecnologia e organização social eram coisas que andavam juntas, cada uma reforçando as demais; e tampouco haveria contradição entre os interesses econômicos da Standard Oil Co., de propriedade da família, que se estendiam por todo o mundo, e as necessidades de modernização e desenvolvimento econômico nos diversos países em que atuava.
Os artigos desta coletânea não se limitam aos temas da ciência, mas abordam também questões como a presença americana na exploração da borracha, no desenvolvimento da indústria pesqueira, na extensão agrícola, na expansão da fronteira para o Planalto Central, e várias outras. Isto se justifica, em parte, porque em muitas áreas, como a da citricultura, em que é preciso entender a natureza das pragas e desenvolver formas de cultura economicamente viáveis, os mundos da ciência e da economia andam juntos. Em outras, como a da física de partículas e da área de genética, essa relação não aparece tão diretamente, e o papel da Fundação Rockefeller de apoio à ciência básica sobretudo por intermédio da atuação de seu coordenador para o Brasil, Harry M. Miller Jr., adquire maior destaque. Trabalhando com fontes primárias no Brasil e no exterior, com os autores mostrando conhecimento profundo das diversas áreas de ciência, tecnologia e economia que estudam, o livro, como um todo, é um bom testemunho de como a área de história da ciência e, mais amplamente, de estudos empíricos sobre ciência, tecnologia e inovação se desenvolveu e amadureceu no Brasil nas últimas décadas.
Apesar do título, o livro não pretende ser uma história organizada das relações entre Brasil e Estados Unidos, que ainda está por ser escrita. Essa história deveria incluir, entre outros temas, a importante participação da Fundação Rockefeller na área do ensino médico e do desenvolvimento dos serviços de saúde pública no Brasil desde os primórdios do século XX; a influência americana na reforma universitária de 1968, que tentou trazer para o Brasil o modelo das research universities norte-americanas; a influência da Fundação Ford que, principalmente a partir dos anos 1960, teve papel importante na consolidação das ciências sociais brasileiras, sobretudo na economia, ciência política e sociologia, e mais tarde em temas como direitos humanos, saúde reprodutiva e relações raciais; uma consideração dos aspectos técnicos e científicos da cooperação militar, com destaque para a criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica, dirigido durante vários anos por um reitor norte-americano; o impacto do Ponto IV, o programa de cooperação estabelecido pelos Estados Unidos no pós-guerra, e sua influência nas áreas de administração pública, educação, agricultura e várias outras; e o impacto dos programas de agências governamentais brasileiras como Capes, CNPq e Fapesp em fomentar os projetos de cooperação e os estudos de brasileiros em programas de pós-graduação nos Estados Unidos.
Os diversos autores tratam de lidar com a questão dos possíveis efeitos positivos e negativos do grande predomínio dos Estados Unidos nas relações que se estabeleciam entre instituições acadêmicas e governamentais americanas e brasileiras, tanto em termos de recursos quanto dos métodos de trabalho, das ideologias implícitas e da mescla de interesses científicos, políticos e econômicos que muitas vezes ocorria e nem sempre aparecia de modo explícito. De um modo geral, predomina uma visão benigna, próxima do “progressivismo” adotado pela Fundação Rockefeller e endossado pelos cientistas brasileiros cujas instituições cresceram e se beneficiaram dessa colaboração, como o Instituto de Física da USP, o Instituto Biológico de São Paulo, a Universidade Federal de Viçosa e tantas outras. Desde a Primeira Guerra Mundial, e especialmente depois da Segunda Guerra, os Estados Unidos adquirem uma posição predominante no desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação no mundo, que se desdobra em uma combinação nem sempre coerente de ações militares, governamentais, comerciais e científico-acadêmicas. Nem sempre os interesses nacionais e os dos Estados Unidos coincidiam, como por exemplo no veto americano às tentativas do almirante Álvaro Alberto, fundador do CNPq, de tornar o Brasil independente na área de energia nuclear. Mas não havia a alternativa de se manter isolado ou optar, no mundo da Guerra Fria, por uma parceria com a União Soviética. Entre o rechaço extremado ao “imperialismo americano” e a adesão ingênua ao progressivismo do discurso da cooperação internacional, talvez tenha faltado ao Brasil, ao longo do tempo, uma estratégia mais complexa e articulada de como participar e se beneficiar das oportunidades de cooperação internacional e ciência e tecnologia oferecidas pelos Estados Unidos e outros países, com mais atenção para os interesses nacionais.
Resenhista
Simon Schwartzman – Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Referências desta Resenha
SÁ, Magali Romero; SÁ, Dominichi Miranda de; SILVA, André Felipe Cândido da (Orgs.). As ciências na história das relações Brasil-EUA. Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj, 2020. Resenha de: SCHWARTZMAN, Simon. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 104-105, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR/JF]