A sociedade da decepção | Gilles Ipovetsky

Gilles Ipovetsky1 Decepção
Gilles Ipovetsky | Foto: Fronteiras do Penamento

A sociedade da decepcao 2 DecepçãoA obra A sociedade da decepção, de Gilles Lipovetsky,1 3 é composta por três capítulos que se articulam e se complementam nos seguintes títulos: “A espiral da frustração”; “Consagração e descrédito da democracia”; e “Uma esperança sempre renovada”. Trata-se de um livro em formato de entrevista que foi prefaciado e inquirido por Bertrand Richard. Desde o primeiro capítulo – “A espiral da frustração” – são discutidas questões que insistem na programação tentacular dos corpos e das almas que contrastam com as análises de Foucault, ainda circunscritas à denúncia do controle e da imposição existencial totalitária sob as máscaras da democracia liberal (numa adesão secreta em obedecer). Para Lipovetsky (2017), há um novo papel social assumido pelo sujeito (de autonomia protagonista), agora impulsionado pela modernidade do consumo, dos lazeres e do bem-estar de massa, para além de ser uma existência programada e burocratizada por condicionamentos generalizados.

O autor toca uma atmosfera de suspeição da onda atual e de rejeição ao assumido discurso estático sobre alienação e controle programado da existência pelo capitalismo, em vista das dúvidas, ansiedades e incertezas de uma “realidade plural, multidimensional, mas dificilmente vivida (inclusive pelos antagonistas declarados da modernidade), como se fosse um inferno absoluto. Sem dúvida, nosso universo social contém elementos que podem induzir-nos ao otimismo e ao pessimismo” (LIPOVETSKY, 2017, p. 3).

Entretanto, vivemos a esquematização dos problemas no paradoxo da felicidade, ou seja, “uma atmosfera de entretenimento e distensão contínuos, de bem-estar consolidado, coexiste com a intensificação dos obstáculos para se viver e o aprofundamento do mal-estar subjetivo” (2017, p. 3-4). Assim, o estado de decepção (mais afetivo do que político ou consumista de uma realidade vazia) e o desejo de felicidade (princípio do prazer) caminham juntos. No entanto, a evolução do desencanto em relação ao mundo em nosso convívio social vem produzindo a notoriedade de uma sociedade da decepção.

Tudo indica que a sociedade moderna inflacionou as decepções, as desilusões e o descontamento da classe média assalariada, cujos ideais democráticos do bem-estar e bem viver são incompatíveis com a realidade social. Sem dúvida, a qualidade de vida, em todos os campos da atividade humana, passou a ser o novo horizonte das expectativas individuais, mais exigente e vulnerável aos tentáculos da experiência frustrante que acelerou a decepção. O autor nos alerta para que evitemos o equívoco de insinuar a desmoralização absoluta como a marca da sociedade da decepção, uma vez que, quanto mais há projetos e deleites do cotidiano, mais se estendem as contrariedades da vida e a experiência da desilusão. Mais do que nunca, as desilusões do progresso, a desorientação e o desencantamento geral, por conta da destruição ecológica, do consumo de transgênicos ou da ansiedade de buscar um equilíbrio no orçamento jamais alcançado, por exemplo, aprofundam os retratos de uma nova marginalização (de frustração pessoal, subexistência, insucesso e desqualificação ou fracasso profissional como autorresponsabilidade), do desemprego ou do subemprego em massa que gera adoecimento e desumanização.

Na percepção do autor, o fenômeno da decepção tem origem na sensação de fracasso da experiência particular (infelicidade e irrealização nos sistemas sociais) conjugado ao enrijecimento do neoliberalismo com que os sujeitos são confrontados. “As instituições de ensino, que anteriormente eram o veículo condutor de um projeto igualitário e de promoção social, já não desempenham o mesmo papel […]. Também a escola se tornou um foco de decepção” (2017, p. 16). Contudo, não resta dúvidas de que essa melancolia do saber não é apenas um fracasso do projeto educacional, mas é, também, da ordem política, econômica, hiperconsumista, e da integração pelo trabalho na vida em sociedade, que tem originado um sentimento de injustiça e de exclusão.

Para recolocar os sujeitos nos trilhos da educação, da inclusão e da sustentabilidade, para enfrentar essa espiral frustrante da decepção, será necessária a adoção de políticas que levem em conta a diversidade étnico-cultural, talvez fomentando bolsas de estudo e outros dispositivos de apoio, inclusive aos jovens imigrantes, assegurando, assim, a igualdade de condições e oportunidades. Isso é tão verdadeiro que o sentimento de amor à vida, ao outro e à própria realidade brilha na mesma sincronia de valores pungentes e pouco atrativos das decepções. Na verdade, os sentimentos são mutáveis e, seguidamente, percebemos aspectos menos amáveis na personalidade da outra pessoa, os quais incomodam pela incapacidade de comunicação, pelo cansaço ou por gestos que são frios, antipáticos e fugazes.

Com efeito, no segundo capítulo, aborda-se a consagração e o descrédito da democracia a partir da avalanche hiperconsumista e de governos liberais (extrema-direita), que fracassam e decepcionam pela desconfiança, pelo ceticismo e demérito do sistema político. Ao mesmo tempo, a política que não produz mais utopias coletivas de um mundo melhor, caiu em desonra, e a decepção contemporânea não está dissociada do respeito à época individualista e à pacificação da ordem democrática pluralista, agora por um novo perfil de cidadão. A indiferença e as desilusões dos cidadãos à coisa pública são comuns, pois estão, cada vez mais, desempregados e desorientados pela ruína de políticos e governantes que prometem o controle das crises, mas que, de fato, adaptam todos ao mundo globalizado e dessensibilizado às preocupações concretas. Por sua vez, o processo de despolitização, fragmentação, desengajamento e desidentificação que acontece com a política também ocorre com a religião, agora, instâncias menos formadoras de identidade social do que em outros tempos. Certamente, as correntes de decepção de um mal-estar generalizado da sociedade hiperconsumista e a desilusão em relação à política e à economia de mercado, repercutem em dinâmicas dos direitos humanos, da globalização e da influência da mídia.

Recentemente, o avanço dos sentimentos de decepção, de medo e insegurança com o mundo globalizado tem gerado a impressão de que somos pessoas confusas e estressadas pela febre consumista. No fundo, o discurso atual gira em torno de aumentar a qualidade de vida e os interesses superficiais e passageiros das pessoas, ganhando dinheiro, consumindo, viajando, se distraindo consigo mesmo em atividades esportivas ou decorando a casa. Todavia, “como o individualismo do mundo atual criou vulnerabilidade, ele vem associado a uma fila de demandas de sistemas previdenciários, de programas de proteção, de expectativas mais definidas em face do poder público” (2017, p. 53). A mediocridade democrática do homem-massa, por exemplo, cuja existência se desenrola numa introversão mesquinha e degenerada, não define o indivíduo hiperconsumista contemporâneo em todas as suas dimensões e desejos.

Segundo o autor, desde as denúncias dos situacionistas (1960) de que os meios de comunicação de massa suscitariam o isolamento humano e a hipertrofia da comunicação sem interlocução, passando pelo sociólogo Jeremy Rifkin, que se pergunta acerca das dinâmicas de comercialização que assolam os modos de vida, se elas não levariam à atrofia da sociabilidade e dos sentimentos humanos, defende que tais fatos não se confirmam ao longo da história e do influxo das mídias. Diante disso, o autor questiona: “Por que os laços que unem as pessoas deveriam durar para sempre? […] Por vezes, há mais intensidade e autenticidade nas experiências passageiras, que não se consolidam na rotina diária” e nem por isso são vazias ou superficiais (2017, p. 55).

Presenciamos a modernização desenfreada de uma sociedade hiperindividualista que “se impõe pela concorrência mundial, pelo culto da eficácia, pelas exigências de rentabilidade e sobrevivência econômica”, mas isso não significa que os nossos referenciais, protestos sociais e valores humanos foram extintos (2017, p. 56). Ao colocar em discussão a nossa sociedade secularizada, democrática e individualista, o autor organiza uma teia de cosmovisões éticas, de controvérsias e polêmicas acerca de assuntos da manipulação contemporânea que presenciamos, numa espécie de pluralização das formas de vida e dignidade da cultura. Na verdade, a democratização dos meios de informação pode estimular a curiosidade e incentivar os sujeitos a proporem novos recursos e soluções tecnológicas, alargando seus horizontes de pensamento, de conhecimento e de formação cultural, para além da hipertrofia da informação.

Na era da digitalização das telas, a cultura científica de natureza questionadora dos dados (e constante informação) cumpre um papel de referência para os sentidos no horizonte da história e serve de bússola à reflexão e aos processos interpretativos das humanidades. Tudo indica que a sociedade de fruição ou do hiperconsumismo perdeu os referenciais orientadores e, mergulha, por conta da angústia, da exacerbação do individualismo e da desestabilização/vulnerabilidade hipermoderna, em uma confusão extrema cuja frustração pode instalar a escalada para uma tirania de minorias ativistas.

O terceiro e último capítulo reúne discussões sobre uma esperança sempre renovada, fazendo referência ao papel da família como uma instância de refúgio e solidariedade de um mundo agressivo e angustiante, que pode enfrentar a espiral da decepção. Mesmo representando, hoje, um ponto de felicidade, equilíbrio e apoio da vida profissional, a vida familiar afetiva, da livre-escolha e da proteção não ficou imune à hidra da decepção.

O fenômeno da individualização dos modos de vida e da fragilidade do indivíduo hipermoderno assevera as desilusões, desconfianças e inquietações em relação às expectativas de êxito das famílias, que, ao serem cerceadas de cumprir suas obrigações de educar e socializar seus filhos por sobrecarga de trabalho, também sofrem retaliações e críticas quando renunciam a seus encargos, impulsionando, assim, “uma miríade de decepções e mágoas relacionadas a crises conjugais” (2017, p. 64).

A esse respeito, “numerosos estudos indicam a catástrofe dos isolamentos afetivo e social por que passam os desempregados. Sobre um plano totalmente diferente, a disseminação de sites de relacionamento na internet ilustra a importância social do sentimento de solidão, bem como do desejo de fazê-lo cessar” (2017, p. 65). Contudo, “a família constitui um lugar que, por si só, incute confiança, o que contrasta visivelmente com a atmosfera de desconfiança que paira sobre a empresa e a política, a mídia e as pessoas em geral” (2017, p. 65). De qualquer modo, não existe garantia em lugar nenhum contra as expectativas frustrantes e os desgostos vividos no tempo atual, apesar de a família, a natureza e os animais apresentarem elementos reconfortantes à sociedade da desilusão. À luz desses fenômenos, Lipovetsky (2017, p. 67) denuncia uma espécie de regressão, de um estado pueril geral, pois “alguns veem a abolição das diferenças entre as idades em benefício de uma infantilização universal da humanidade. O igualitarismo extremado teria assim levado a um estado de indistinção entre crianças e adultos”.

Por tudo isso, o autor defende que as novas oportunidades anunciam grandes desafios e esperanças para nos reorientarmos, evitando, assim, a tirania da (in)felicidade e da forte sensação de culpa. “A época hipermoderna tem muitos defeitos, mas, pelo menos, ela nos permite imaginar e, frequentemente, empreender alterações em nossa vida pessoal […] ao oferecer uma multiplicidade de caminhos para a conquista da felicidade” (2017, p. 81). Indo além da mera crítica ao universo hiperconsumista e incapaz de atender às aspirações humanas enquadradas em desejos imediatos, Lipovetsky (2017, p. 82) defende que o objetivo principal é oferecer aos sujeitos “outras metas (outras potencialidades humanas de conhecer, aprender, pensar, recriar, inventar, progredir, ganhar autoestima, compreender o mundo, superar limites pela resignação), outras iniciativas capazes de mobilizar paixões diferentes daquela do consumo”.

Aliás, conforme o autor, tudo isso demanda novos projetos políticos e pedagógicos empolgantes, com outros caminhos para a felicidade existencial que brotam de iniciativas do Estado, das famílias e da escola em prol da vida humana e da melhoria das condições dos desfavorecidos nessa cultura consumista. Contudo, “penso em uma reviravolta cultural que promova a reavaliação das prioridades da existência, da hierarquia das finalidades, da função dos prazeres imediatos nesse novo sistema de valores” (2017, p. 84).

Desse modo, o autor dá visibilidade às condições atuais da sociedade do hiperconsumo com formas de vida cada vez mais abertas e, ao mesmo tempo, da decepção, voltadas às aspirações do indivíduo democrático para concretizar os anseios diversificados da existência humana. A obra é fundamental para compreender os tempos de hiperconsumismo da humanidade, pois o autor trata o assunto de maneira ampla ao se referir aos sentidos da vida e aos desejos acessíveis à hipermodernidade.

Nota

1 O filósofo francês Gilles Lipovetsky nasceu em 24 de setembro de 1944 e é autor de diversos livros, a saber: A era do vazio; O luxo eterno; A terceira mulher; O império do efêmero; A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, entre outros. Destacado teórico da hipermodernidade, analisa a vida em sociedade marcada pelo desinvestimento público, pela perda de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas, e por uma cultura aberta que caracteriza a regulação das relações humanas paradoxais. Síntese disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Gilles_Lipovetsky. Acesso em: 8 jan. 2021.


Resenhistas

Adilson Cristiano Habowski – Doutorando em Educação pela Universidade La Salle (Unilasalle, Canoas – RS. Mestre em Educação por essa mesma instituição. E-mail: adilsonhabowski@hotmail.com  Orcid Id: http://orcid.org/0000-0002-5378-7981

Elaine Conte – Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora na Universidade La Salle (Unilasalle), atuando na Graduação e no Pro- grama de Pós-Graduação em Educação, na Linha de Pesquisa Culturas, Linguagens e Tecnologias na Educação. E-mail: elaine.conte@unilasalle.edu.br  Orcid Id: http://orcid.org/0000-0002-0204-0757


Referências desta Resenha

IPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Entrevista coordenada por Bertrand Richard. Trad. Armando Braio Ara. Barueri, São Paulo: Manole, 2017. Resenha de: HABOWSKI, Adilson Cristiano; CONTE, Elaine. Conjectura: Filosofia e Educação. Caxias do Sul, v.26, 2021. Acessar publicação original [DR]

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