A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo | Demian Bezerra de Melo
Publicado em 2014, o livro organizado pelo historiador Demian Melo tem um título bastante sugestivo que nos faz lembrar, pelo menos, de duas grandes obras inseridas dentro do pensamento crítico: A miséria da filosofia, de Karl Marx (MARX, 2009), publicada originalmente em 1847, contra as formulações do socialista utópico Pierre-Joseph Proudhon, que não se baseava na luta de classes enquanto uma forma de transformação social; e a Miséria da Teoria, de Edward P. Thompson (THOMPSON, 1981), publicada em 1978, contra o teoricismo mecânico e, até mesmo, abstrato do filósofo marxista Louis Althusser.
Com efeito, o objetivo central d’A miséria da historiografia é criticar determinada produção revisionista contemporânea, que ganhou maior visibilidade a partir da Queda do Muro de Berlim (1989), bem como com o avanço do neoliberalismo, evidenciando o seu caráter ideológico conservador e, sobretudo, arbitrário. Portanto, essa corrente se mostra potencialmente prejudicial, visto que concentra sua análise em maniqueísmos e simplificações por meio da ideologização de processos históricos delicados, como: revoluções, golpes de Estado, fascismos e ditaduras.
O livro está organizado em oito capítulos e dividido em duas partes, contando também com o prefácio da historiadora Virgínia Fontes e com uma introdução do organizador Demian Melo. A primeira parte, compreendida nos três primeiros capítulos, é responsável por abordagens mais amplas e teóricas acerca da historiografia revisionista. A segunda e última parte, com cinco capítulos, é responsável pelo tratamento mais restrito e prático do revisionismo, ou seja, uma análise mais específica do problema em questão.
No prefácio intitulado Nas lutas, Virgínia Fontes pontua uma das principais caraterísticas dominantes do revisionismo historiográfico: o seu caráter nitidamente conservador e o seu objetivo de apagar os conflitos na história, a luta de classes. Em outras palavras, o revisionismo acaba fortalecendo o “senso comum” tanto fora quanto dentro da universidade, por reafirmar o já dominante imaginário conservador presente na sociedade. Ainda neste prefácio, Fontes pontua a intenção do revisionismo em apagar o aspecto da dominação socioeconômica e ideológica, realizada pela difusão de uma certa harmonia entre as classes sociais e a exaltação da democracia como um valor em si mesma, que, por sua vez, tem o intuito de esconder a estrutural desigualdade social que a democracia sob a égide do capitalismo esconde.
Na introdução, Revisão e revisionismo na historiografia contemporânea, Demian Melo vem traçar alguns delineamentos históricos do revisionismo, desde a sua primeira utilização de cunho estritamente político, por Eduard Bernstein (1850-1932), indo até as produções contemporâneas. Um dos casos mais clássicos do revisionismo contemporâneo é o de François Furet (membro da nouvelle histoire) acerca dos estudos sobre a Revolução Francesa. Este se propôs a desconstruir autores consagrados da Revolução de 1789, casos de Albert Mathiez, Georges Lefebvre, Albert Soboul e Michel Vovelle, taxados por Furet de “marxista-leninistas” e alegando que olharam 1789 como prenúncio de 1917. Para Furet, o período jacobino (1793-1794) impediu que a Revolução desembocasse naturalmente para o capitalismo e para a democracia liberal. O principal objetivo de Furet (declaradamente anticomunista), com sua vasta produção, era esvaziar o conceito de “revolução” e toda a sua tradição, desde 1789 até 1917.
Melo também cita a produção da Hannah Arendt, particularmente seu livro acerca do conceito de totalitarismo, que contribuiu para igualar os regimes fascistas com o stalinismo, e como Ernst Nolte radicaliza essa concepção arendtiana, defendendo que a política de extermínio nazista fora importada da União Soviética, escamoteando o fato de que tal política existia bem antes de 1917 e, logo, da União Soviética. Não obstante, no interior desse espectro reacionário do revisionismo, há também a sua versão mais caricata e de extremadireita, o negacionismo. Este movimento, liderado por Robert Faurisson e Paul Rassinier, teve como principal objetivo negar o Holocausto.
No primeiro capítulo, Depois da Revolução? …Revisionismo histórico e anatemização da Revolução, Manuel Loff investiga como o conceito de “revolução” passou a ter um caráter amplamente negativo ao longo da história. O autor estabelece uma relação da produção acadêmica com o seu contexto histórico pós-1945, onde se deu a radicalização política da Guerra Fria com o “macartismo” e com o “caça às bruxas” do século XX, marcado pelo extremo anticomunismo. Neste contexto de acirramento político e ideológico, Hannah Arendt, em 1951, publicou o livro Origens do totalitarismo convergindo com os posicionamentos mais conservadores acerca do conceito de revolução.
De acordo com Loff, a teoria do totalitarismo favoreceu o típico maniqueísmo entre o bom e o mau: Mundo Livre/Totalitarismo, Liberdade/Revolução, Tradição/subversão social etc. Esse empobrecimento interpretativo favoreceu a radicalização do neoconservadorismo e do neoliberalismo das décadas de 1980-1990, chegando ao seu ápice com o livro O fim da História de Francis Fukuyama publicado em 1989 com a Queda do Muro de Berlim. Este livro de Fukuyama defende categoricamente o “fim da história” pela “vitória” do capitalismo contra o “comunismo”, alegando que a humanidade chegara ao estágio mais avançado da história, não havendo, portanto, a possibilidade de uma transformação social radical contra o sistema capitalista.
No segundo capítulo, As bases teóricas do revisionismo…, o historiador Marcelo Badaró Mattos analisa como que o “culturalismo” (1960-1970) converge com as interpretações revisionista. Culturalismo este que acabou desembocando no que ficou convencionado chamar de pós-modernismo (1980-), amplamente estabelecido na epistemologia pós-estruturalista com objetivo de anatemizar, principalmente, o marxismo. Esse tipo de literatura culturalista e pós-modernista tem o seu nutriente na chamada “virada linguística”, na qual todas as disputas se encontrariam no campo das linguagens, deixando de existir as classes sociais, a consciência de classe, a luta de classes etc., dando lugar as identidades e aos conflitos identitários. Neste capítulo, Mattos defende a análise da cultura a partir do método da totalidade – e não da fragmentação culturalista – levado a cabo por autores como: R. Williams, E. P. Thompson, A. Gramsci, M. Bakhtin etc. Portanto, esses aspectos do culturalismo acabam sendo amplamente convergentes com o revisionismo, seja pela aproximação teórico-metodológica, seja pelo próprio contexto histórico em que essas correntes interpretativas surgiram.
Mito, Memória e História… fecha a primeira parte do livro. Neste capítulo, Carlos Senna Júnior evidencia que o trato das revoluções, movimentos sociais e organizações de esquerda não são mais analisadas no plano político e social (no âmbito de sua totalidade), mas sim, fundamentalmente, por meio do estudo das subjetividades (individuais) e da condenação moral dos sujeitos pertencentes a estes movimentos. Esta metodologia de análise é encontrada, inclusive, no bojo da literatura acadêmica permeada, demasiadamente, por orientações antropológicas e pelo individualismo epistemológico. O principal problema do autor é entender como as “memórias do ressentimento”, de ex-comunistas, acabaram legitimando alguns estudos acadêmicos. Senna Júnior usa o exemplo do professor Jorge Ferreira (UFF) que, se utilizando excessiva e unilateralmente dessas memórias, acabou prejudicando o real entendimento da história do PCB, entre 1930 e 1956. Seus estudos sobre o movimento comunista no Brasil, se amparam em uma base teórica antropológica duvidosa, bem como na homogeneidade do uso de fontes pela utilização selecionada de ex-comunistas “ressentidos” do PCB, para sustentar a sua tese na qual “os comunistas viviam em um mundo à parte”, ou seja, completamente desvinculados dos interesses de transformações concretas.
O quarto capítulo do historiador Felipe Demier, Populismo e historiografia na atualidade…, busca evidenciar os limites analíticos de dois grandes campos de revisão historiográfica sobre o período populista (1945-1964) que, em maior ou menor grau, objetivam negar ou “corrigir” as clássicas obras sobre o populismo de Octávio Ianni e Francisco Weffort. O primeiro campo revisionista é oriundo da UFF e representado por historiadores como: Ângela de Castro Gomes, Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis Filho, que por meio da tese de “trabalhismo”, desenvolvida inicialmente por Gomes, buscam rejeitar por completo o conceito de populismo; o segundo campo é oriundo da UNICAMP, e por meio de uma base empírica mais sólida e de matriz thompsoniana, busca relativizar questões mais pontuais, por exemplo, a ideia de “sindicalismo populista”.
Esses dois campos, apesar de orientados por uma matriz teórica diferenciada, se aproximam no quesito da relativização da dominação. Mas, enquanto o primeiro campo busca a relativização total por meio da defesa da harmonia entre sociedade/Estado e capital/trabalho, apagando o aspecto da dominação de classe; o segundo campo reconhece a existência da dominação pelo Estado, entretanto, peca pelo ecletismo conceitual e pelas apreensões acríticas da hegemonia populista do período. Demier defende, com algumas ressalvas, o êxito interpretativo das teses tradicionais de Ianni e Weffort, pois ambas obras conseguem desvelar as contradições do período, o aspecto de classe do Estado populista, a dominação de classe, a oposição entre capital e trabalho etc.
Em seguida, o quinto capítulo, O golpe de 1964 e meio século de controvérsias… do historiador e organizador do livro, Demian Melo, busca expor um levantamento crítico das versões revisionistas sobre o caráter do golpe empresarial–militar de 1964. Segundo o autor, o principal objetivo dessa corrente revisionista, composta, basicamente, por Maria Benevides, Daniel Reis Filho, Jorge Ferreira, Lucilia Neves Delgado, Denise Rollemberg entre outros, é suavizar e relativizar o período de exceção, seja retirando o caráter de classe do golpe de 1964, adjetivando o livro do Dreifuss: 1964: a conquista do Estado como “conspirativo”, seja modificando o período em que o Brasil estava sob ditadura. Por exemplo, para Reis Filho, o Brasil de 1979 não era mais ditatorial. O que há em comum entre todas essas pesquisas é o fraco ou inexistente material empírico que sustente as suas respectivas teses. Consequentemente, pela falta de evidências, suas críticas se baseiam, majoritariamente, a partir da moralização de determinados períodos e/ou sujeitos históricos e o “julgamento” de atos individuais.
O sexto capítulo, Imprensa e construção social da “Ditabranda”, da historiadora Carla Silva, continua com a linha de raciocínio de Demian Melo, porém, dando um enfoque especial para a grande imprensa. Neste capítulo, é enfatizado a atuação da Folha de São Paulo e da revista Veja no ocultamento do caráter mais obscuro do Estado ditatorial, como: as mortes, torturas e os desaparecimentos de presos políticos. Nessa “guerra de memória”, a permanente obliteração dos conflitos contribui para o apaziguamento social e para despolitização, criando um consenso forjado sobre o período de exceção. Esse consenso é reproduzido de diversas maneiras: desde a desconstrução da imagem de João Goulart, associando-o a um potencial “golpista” e conspirador, até a desconstrução dos próprios “guerrilheiros”, tornando-os terroristas, pois tinham como objetivo impor a “ditadura do proletariado”. Evidentemente que essas acusações ficam somente no plano retórico, sem nenhum material empírico que sustente estas ideias. A defesa da “Ditabranda” em uma coluna bastante polêmica da Folha de São Paulo, no ano de 2009, sintetiza essa “guinada” conservadora, que não é visível somente no “senso comum”, mas também dentro das universidades e nas produções acadêmicas.
No capítulo sete, Revisionismo histórico e música popular: a tentativa de reabilitação de Wilson Simonal na memória social, o historiador Romulo Mattos faz um balanço crítico acerca da trajetória de Simonal, particularmente o caso em que Simonal foi acusado de ter mandado torturar, em 1971, Raphael Viviani, ex-contador da Simonal Produções Artísticas, simplesmente por desconfiar que Viviani tinha desviado dinheiro de sua empresa. É a partir deste ocorrido que Mattos analisa a trajetória de Simonal, desde a sua ascensão até o seu sumiço no campo artístico em meados de 1971. Ao longo do capítulo, Mattos busca demonstrar o apoio de Simonal à ditadura, seja em seu posicionamento pessoal, seja de forma apologética em algumas de suas músicas. Neste aspecto, o revisionismo e a reabilitação de Simonal é focalizado por Mattos no documentário Ninguém sabe o duro que dei (2009), que tentou trazer Simonal para o centro do MPB, avaliando positivamente a história do artista e ocultando as suas participações obscuras nas “trocas de favores” com o DOPS.
O último capítulo, Conflito ou coesão social?: apontamentos sobre a história da Revolução dos Cravos, da historiadora portuguesa Raquel Varela, enfatiza a disputa em torno da utilização de determinados conceitos para a caracterização de períodos históricos. Seu recorte analítico é o processo da Revolução dos Cravos de 1974. Esse processo foi uma Revolução, transição ou evolução? Varela defende que determinados termos oriundos da corrente revisionista mais contribuem para esconder do que revelar a realidade. Como, por exemplo o termo “evolução”, que acabou contribuindo para o apagamento dos conflitos presentes no período e que, ao mesmo tempo, impõe uma teleologia histórica, na qual a democracia liberal seria o fim da história. Por fim, Varela incita o historiador a focalizar os conflitos na história e o permanente antagonismo entre as classes sociais, pontuando que a utilização de diferentes termos e conceitos podem mudar a compreensão sobre o passado.
Por fim, este livro consegue, a meu ver, compreender o surgimento e os desdobramentos do revisionismo, fazendo um diálogo permanente entre a produção destas ideias e o seu contexto histórico. É por meio da concepção metodológica de totalidade que o livro consegue dar conta da complexidade do revisionismo, tratando-o não como mera casualidade, mas inteiramente imerso e produto das relações sociais de seu tempo.
Referências
MARX, Karl. A miséria da filosofia: resposta à filosofia da miséria de Proudhon. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
MELO, Demian B. de (Org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.
THOMPSON. Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
Resenhista
Samuel Fernando Silva Junior
Referências desta Resenha
MELO, Demian Bezerra de (Org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. Resenha de: SILVA JUNIOR, Samuel Fernando. Tempos Históricos, v. 21, n.1, p. 526-531, 2017. Acessar publicação original [DR/JF]