A guerra não tem rosto de mulher | Svetlana Aleksiévitch

A primeira versão do livro da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch foi publicada em sua língua original na década de 1980 e, no Brasil, em 2016. A publicação brasileira foi, muito provavelmente, uma pronta resposta de nosso mercado editorial ao potencial de vendas atrelado a uma autora agraciada com o Prêmio Nobel, que Svetlana recebera em 2015: com o selo no Nobel estampado na capa, o livro percorreu, rapidamente, as livrarias do país e tornou-se um objeto de interesse para quem pouco (ou nada) sabia sobre a participação feminina na Segunda Guerra Mundial. “A Guerra não tem rosto de mulher” reúne, ao longo de seus dezessete capítulos, relatos de mulheres soviéticas que participaram dos teatros de operação contra a Alemanha Nazista. Trata-se de uma antologia polifônica, construída ao longo de um périplo no qual Svetlana percorreu mais de cem cidades da então União Soviética. Embora seja uma obra que atingiu o grande público, está longe de apresentar uma análise superficial sobre a Segunda Guerra. Pelo contrário, o livro de Aleksiévitch oferece interessantes perspectivas aos estudos das guerras, sobretudo na intersecção com os estudos de gênero.

A Segunda Guerra Mundial dificilmente pode ser descrita como um tema inédito ao público brasileiro, mas Aleksiévitch inova ao tratar do assunto por meio de vieses pouco convencionais: em primeiro lugar, parte de percepções soviéticas da Segunda Guerra, quando, na maior parte das vezes, o que temos são versões dos Aliados da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos; em segundo lugar, sua composição foi feita por intermédio de relatos de mulheres combatentes, quando os relatos e memórias masculinos da Segunda Guerra (como das guerras, em geral) são claramente majoritários; em terceiro lugar, Aleksiévitch busca confrontar a imagem tradicional da guerra como um “evento político grandiloquente”, de ufanismo e de glória, às narrativas individuais que, muitas vezes, discordam ou se ressentem das versões oficiais da história nacional. A fórmula que consagrou Sevtlana Alexijevich está, em síntese, na equidistância entre liberdade literária, cultivada no início de cada capítulo ou nas breves reflexões acerca da natureza da guerra e da escrita da história, e a metodologia da história oral, com que diligentemente colhe, justapõe e encadeia os relatos pessoais das ex-combatentes. Seu grande trunfo, sem dúvidas, é o de dar representatividade às mulheres do front, figuras frequentemente negligenciadas nas narrativas oficiais das guerras – tradições, aliás, das quais o Brasil não está isento (OLIVEIRA et al., 2009).

Existem, pelo menos, duas correntes historiográficas principais que destacam o protagonismo feminino na Segunda Guerra Mundial. A primeira delas enfatiza as necessidades excepcionais das economias de guerra que ocasionaram a inserção em massa das mulheres no mercado de trabalho, uma vez que parte significativa da força laboral masculina destinou-se aos combates. Nesta corrente, a correlação entre protagonismo feminino e guerra dá-se nas mudanças gestadas no sistema produtivo doméstico, principalmente nos Estados Unidos, ainda que esse protagonismo tenha sido posteriormente reduzido com o retorno dos combatentes (COLMAN, 1998). A segunda corrente que correlaciona protagonismo feminino e Segunda Guerra enfatiza o uso político e propagandístico do mito da maternidade por Estados que valorizavam a criação de “soldados-cidadãos”, inclusive por meio de premiações e/ou da valorização pública daquelas mulheres que tivessem muitos filhos homens e, portanto, aptos à defesa da pátria. Dava-se, assim, a vinculação direta entre a ideia de maternidade à de nacionalismo, em uma espécie de recriação da “mãe espartana”, sobretudo por parte da Alemanha Nazista (COOKE, 1996; ELSHTAIN, 1995).

As menções à participação feminina nas linhas combatentes são, por outro lado, relativamente escassas, ainda que a Segunda Guerra tenha inaugurado a inserção em massa de mulheres nos campos de batalha. Só no Exército Vermelho, segundo Aleksiévitch, lutaram aproximadamente um milhão delas. Segundo algumas teóricas feministas que lidam com o fenômeno da guerra, como Laura Sjoberg e Caron Gentry (2007), existem explicações para esse silenciamento. Argumentam que pressupostos essencialistas, que estão na base de muitas construções de gênero, inviabilizam uma leitura da mulher como capaz de “tirar vidas” e de protagonizar ações de violências – e, se o fazem, são como “exceções antinaturais” ou “socialmente ilegítimas”, portanto, não se encaixam nas narrativas formais das guerras nacionais. O livro de Aleksiévitch, assim, contribui com estes debates ao apresentar atuações femininas que, por definição, se contrapõem ao mito da mulher inerentemente pacifista porque “maternal” e “criadora de vida”. Os relatos que compõe o livro, afinal, são de franco-atiradoras, paraquedistas, sapadoras de desminagem, tratoristas, pilotas, mecânicas, cirurgiãs, maquinistas, partisans. As mulheres que concederam seus relatos combatiam em batalhões de infantaria, de cavalaria e de artilharia antiaérea e muitas foram condecoradas por honras militares e desfilaram no grande Dia da Vitória.

Além da pressão psicológica inerente aos cenários de guerra, as combatentes soviéticas evidenciam, em seus relatos, a constante tensão gerada pela improvável presença de seu gênero nas cidades arrasadas, nas trincheiras, nas operações de prospecção de terreno. As táticas de superar essa tensão variavam de acordo com a pessoa e de seu contexto e função imediatos. Houve quem preferisse se fingir, o quanto pôde, de homem: “uma mulher na Marinha… Era algo proibido, até antinatural. Consideravam que trazia azar para o navio” (ALEKSIÉVITCH, 2016: l.3591) 2. Houve quem preferisse se juntar a um homem durante os conflitos: “só havia homens à minha volta, melhor viver com um do que ter medo de todos” (ALEKSIÉVITCH, 2016: l.687). Muitas tiveram que colocar à prova sua capacidade de comando: “‘Pelotão, entrar em formação!’. Ninguém prestou atenção em mim. Então peguei minha pistola e dei um tiro para o alto”(ALEKSIÉVITCH, 2016: l.3839). Todas, porém, resistiram, de uma forma ou outra, à dupla pressão que caracterizou sua participação nos conflitos: a inerente ao cenário de guerra e a relacionada ao seu gênero. Foi com um mal escondido orgulho que uma ex-combatente relatou o que fez durante a fase de invasão de Berlim: “Eu pichei o Reichstag… Escrevi com um carvão, era o que tinha à mão: ‘Uma garota russa de Sarátov venceu vocês’” (ALEKSIÉVITCH, 2016: l.5317).

Os relatos de sobreviventes de conflitos armados costumam evidenciar, e os de Aleksiévitch não fogem à regra, que a ideia de resistência não é apenas uma questão logística ou tática: é, sobretudo, uma operação psíquica e subjetiva. Resistir à despersonalização e à fragmentação da identidade é crucial à sobrevivência. No limite, é preciso ter razões para seguir adiante em um cenário de decadência e de morte. Quanto à questão de resistência psicológica e identitária, as falas das militares soviéticas apresentam uma característica comum: na guerra, elas precisavam resistir, também, para se manter como mulheres. Afinal, do treinamento prévio até as minúcias do dia-a-dia, como fardamentos de uso cotidiano, as roupas íntimas e os calçados, haviam sido pensados para o exclusivo uso de homens. Uma ex-combatente dissera a Aleksiévitch que: “Arrumaram uns coturnos número 42 para mim; eu os tirava e calçava sem desamarrar o cadarço, e eles eram tão grandes que eu andava arrastando os pés na terra dia e noite” (ALEKSIÉVITCH, 2016: l.1324). Outra rememorou o dia do alistamento, quando cortaram seus cabelos e lhe disseram que iria “voltar a ser mulher depois da guerra” (ALEKSIÉVITCH, 2016: l.2980). Uma terceira soviética relatou que, durante os conflitos, “a contragosto, até no andar e nos movimentos apareceu algo de masculino” (ALEKSIÉVITCH, 2016: l.3480). Outra ex-combatente relembra que havia quem acreditasse no boato de que, na verdade, não eram mulheres combatendo pelo Exército Vermelho, mas “um grande número de hermafroditas” (ALEKSIÉVITCH, 2016: l.687).

A participação feminina nas linhas combatentes na Segunda Guerra coincidiu com um momento bastante prolífico para que intelectuais europeias escrevessem sobre a natureza da guerra e suas implicações nas sociedades domésticas. Em 1938, a inglesa Virginia Woolf publicou o ensaio “Three Guineas”, que se tornaria canônico não apenas aos movimentos feministas como, igualmente, aos posteriores estudos de gênero, ao discutir os distintos papeis sociais de homens e mulheres que, em tempos de paz, condicionam a eclosão dos conflitos armados. A francesa Simone de Beauvoir publicou o ensaio “O Existencialismo e a Sabedoria das Nações”, criticando os pressupostos do realismo político (que permanece como corrente teórica central das Relações Internacionais ao presente dia). No campo da literatura e da escrita autobiográfica, Natalia Ginzburg escreveu sobre a escalada da ideologia fascista e jingoísta na Itália, no aclamado romance “Léxico Familiar”. Doris Lessing, nascida na extinta Rodésia, extraiu de sua experiência multicontinental durante a Segunda Guerra a inspiração para construir as personagens que figuram em “O Carnê Dourado”, obra que a consagrou como uma das grandes vozes da literatura ocidental.

Assim como Woolf e Beauvoir, Aleksiévitch sofreu muitas críticas pela escolha temática de seu livro. Para uma mulher, falar sobre guerras é uma tarefa complicada – o que torna irresistível a pergunta: não será porque ganhou um Nobel de Literatura, isto é, com todos os marcadores sociais e intelectuais que separam o “romance” da “verdadeira história”, que o livro de Svetlana atingiu um público tão amplo? Ela mesma conta as várias negativas que recebera de editoras e a censura daqueles que diziam que “não faltavam homens para essa tarefa”:

A sentença é sempre a mesma: é uma guerra terrível demais. Muito horror. Naturalismo. Não há menção à liderança e à orientação do Partido Comunista. Em outras palavras, não é a guerra certa… E qual seria? Com generais e o sábio generalíssimo? Sem sangue e sem piolhos? Com heróis e façanhas? (ALEKSIÉVITCH, 2016: l.275)

Objetivamente, ainda que não haja uma “forma certa” de relatar a guerra, claramente há uma tradição narrativa bastante consolidada, cujas origens remontam à criação das narrativas nacionais pela historiografia do século XIX, aos quais os heróis nacionais, com suas façanhas de ordem estratégica e tática, têm o domínio da representação política. Uma das preocupações da autora, proclamada logo no início da obra, é a de não substituir a “história da guerra” por uma “história da vitória”. Em outras palavras, Svetlana não cede a essa longa tradição da história oficial que apaga individualidades – porquanto isso significaria apagar a participação feminina nos combates e reiterá-la como “exceção contingencial”, quando não, como aponta Laura Sjoberg (2007) como “exceção antinatural”. Em suma, o livro de Svetlana Aleksiévitch, ilustra, com a riqueza de detalhes que apenas testemunhas oculares parecem capazes de reproduzir, uma página pouco visitada de um evento bastante conhecido da história política do século XX, e o faz com um viés potencialmente enriquecedor aos estudos de gênero, tanto no campo disciplinar da História Política, quanto das Relações Internacionais e dos Estudos de Defesa.


Nota

2 Todas as citações da obra de Aleksiévitch correspondem ao seu formato digital (edição Kindle).


Referências

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. [RECURSO DIGITAL – Edição Kindle]

BEAUVOIR, Simone de. O Existencialismo e a Sabedoria das Nações. Lisboa: Minotauro, 1965.

COLMAN, Penny. Rosie the Riveter: Women Working on the Home Front in World War II. New York: Random House, 1998.

COOKE, Miriam. Women and the War Story. Berkeley: University of California Press, 1996.

ELSHTAIN, Jean Bethke. Women and War. New York: Basics Books, 1995.

GINZBURG, Natalia. Léxico familiar. São Paulo: Paz e Terra, 1988.

LESSING, Doris. O Carnê Dourado. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

OLIVEIRA, Alexandre Barbosa de et al. Enfermeiras brasileiras na retaguarda da Segunda Guerra Mundial: repercussões dessa participação. Texto contexto – enferm., Florianópolis, v.18, n.4, p688-696, Dec. 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tce/a/dggdPG5kkQSdYwvz6pTvPmK/?lang=pt. Acesso em: 06 Junho 2017.

SJOBERG, Laura. GENTRY, Caron. Mothers, Monsters, Whores: Women’s Violence in Global Politics. London: Zed Books Ltd, 2007.

WOOLF, Virginia. Three Guineas. London: Hogarth Press, 1938.


Resenhista

Brunna Bozzi Feijó – Historiadora (UFRGS) e Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS).


Referências desta Resenha

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: FEIJÓ, Brunna Bozzi. Tempos Históricos, v. 21, n.2, p. 563-568, 2017. Acessar publicação original [DR/JF]

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