A campanha da Nigéria pela restituição das esculturas de bronze depositadas em museus europeus colocou o passado pré-colonial africano nas recentes manchetes internacionais. Com sua longa história de comércio global, o reino do Benim era um dos estados na África Ocidental mais bem conhecidos e bem conectados com o mundo durante o período medieval.1 No contexto da conquista colonial de finais do século XIX, os britânicos saquearam Edo, sua capital. Dos muros do palácio, retiraram as esculturas de bronze que retratavam a história do reino. Os ingleses colocaram essas crônicas visuais em museus e as usaram para criar célebres coleções de arte “primitiva”. Centenas dos artefatos saqueados permanecem trancados em museus ao redor do mundo, e estão apenas começando a serem devolvidos aos lugares a que por direito pertencem.
Os bronzes do Benim têm tradicionalmente sido interpretados pelos historiadores da arte como exemplo da influência europeia na vida e na arte daquele reino. Mas já está provado que essa interpretação é eurocêntrica; a arte dos bronzes do Benim é representativa da complexidade e da inovação na sociedade do Bini. Tanto o artesanato técnico quanto o artístico dos bronzes são o produto de anos de trocas globais e invenções locais e não uma adaptação pura e simples de costumes ocidentais.
Os bronzes do Benim e a luta pela sua restituição demonstram as raízes profundas do papel da África Ocidental nas trajetórias de trocas culturais e econômicas. Em vista disso, estudar a história da África pré-colonial, argumenta Toby Green, significa debater questões de “grande relevância para dilemas modernos” (p. xix). Em seu premiado A Fistful of Shells, Green convincentemente defende uma compreensão mais profunda do papel do africano na história global, demonstrando que recontar essa história tem consequências na compreensão da política internacional contemporânea.
No cerne de A Fistful of Shells está uma questão central: quais são as origens do subdesenvolvimento africano? Para os historiadores da África e do Atlântico, tal questão é familiar. Desde que Walter Rodney escreveu How Europe Underdeveloped Africa, em 1972, os historiadores têm debatido a natureza da relação entre os negociantes europeus e os reinos africanos. O trabalho de Rodney situou as origens do subdesenvolvimento econômico africano na desigualdade de um sistema de comércio no qual os europeus trocavam bens manufaturados por matérias primas e africanos escravizados. Nesse sentido, o argumento de Toby Green a respeito do impacto desastroso do tráfico transatlântico sobre os africanos não é novo. Entretanto, seu livro adiciona camadas de nuances a esse argumento por prestar atenção aos termos econômicos dessa relação. Assim como defendeu Rodney, o autor argumenta que as desigualdades econômicas entre o Ocidente e a África derivaram das trocas desiguais. Green teoriza que é possível compreender essa divergência pelas lentes da moeda.
A parte I, “Causes: Economic Divergence in West and WestCentral Africa (Causas: divergências econômicas na África Ocidental e Centro-Ocidental)”, destaca o papel do dinheiro nas sociedades africanas e os termos do comércio atlântico nos anos 1300-1680. Essa seção é composta de cinco estudos de caso, separados por região: as zonas do Sahel (Borno, Kano e Songhay), a Grande Senegâmbia, a Costa do Ouro, os golfos do Benim e de Biafra, e o reino do Kongo. Através desses casos, o autor mostra como o comércio africano fez uso de múltiplas moedas simultaneamente: moedas “fortes”, como o ouro, e “fracas”, como os cauris e tecidos. Mas, na Europa, apenas as moedas fortes eram aceitas como dinheiro. Portanto, moedas fortes como o ouro, que poderiam ser usadas em vários mercados, mantiveram seu valor ao longo do tempo. Moedas fracas africanas, apenas válidas no comércio regional, perderam seu valor. A expansão dos mercados, Green sugere, foi uma espada de dois gumes: o comércio de ouro servia ao mesmo tempo de “pedra angular da globalização, mas ao custo econômico da dependência externa” (p. 64). A integração da África Ocidental nos sistemas globais, em última instância, foi o gatilho para o declínio econômico dos reinos africanos pré-coloniais.
Nesse ponto, a relação entre tráfico negreiro e crescimento dos conflitos deliberadamente organizados está bem estabelecida pelos historiadores. A intervenção do autor apresenta detalhes a essa relação. O livro explica em termos econômicos a ascensão de estados cada vez mais centralizados e militarizados: comerciantes europeus inundavam os mercados africanos e reduziam suas importações, levando à inflação, à instabilidade política e a um crescente movimento no sentido de fornecer africanos escravizados para garantir a balança de pagamento. Os estados militarizados se tornaram dependentes do comércio exterior e seus líderes capturavam e exportavam africanos escravizados para bancar a militarização e a manutenção do poder. O valor desses trabalhadores escravizados, ao invés de servir como aditivo para as economias africanas, contribuiu para o desenvolvimento das economias europeias e da acumulação de capital fora da África. Essas transformações, na abordagem de Green autor, forneceram os mecanismos para o legado de desigualdade global que duraria por séculos.
A parte II, “Consequences: Politics, Belief, and Revolutions from Below (Consequências: política, crença e revoluções vindas de baixo)”, acompanha as transformações sociais e culturais surgidas dos processos econômicos delineados na parte I. Essa seção usa uma abordagem temática, com capítulos focados nas mudanças ideológicas, a centralização estatal, a religião e a sociedade, conexões transnacionais, aristocracias militares e revoluções populares no século XIX. Notavelmente, nessa seção o historiador delineia as formas pelas quais a expansão de mercados e a demanda pelo ouro africano conduziram à comercialização de seres humanos. A escravidão atlântica desencadeou a reconfiguração ideológica das pessoas, do valor econômico e das relações de dependência. O comércio transatlântico investiu as pessoas de valor econômico direto e a sua compreensão como “unidades contábeis” tornou-se universalizada na África Ocidental e Centro-Ocidental. De uma perspectiva social, à medida que o valor dos cativos como capital crescia, os laços morais entre os governantes e os súditos se transformaram. Essas mudanças econômicas e políticas desencadearam o surgimento de poderosas aristocracias. Movimentos populares, influenciados pelas transformações sociais e religiosas, contestaram as desigualdades sociais e econômicas reinantes nesses estados militarizados e centralizados.
Talvez a contribuição mais inovadora de Toby Green na segunda parte do livro seja seu uso do conceito de “Estado fiscal-militar” para analisar a formação estatal na África. A ideia de um Estado fiscal-militar tem sido tradicionalmente utilizada para descrever os primeiros estados modernos europeus. Green sugere que tal modelo pode também ser aplicado aos estados africanos. No Estado fiscal-militar africano, a expansão do conflito organizado era necessária para atender à crescente demanda por pessoas escravizadas. A guerra requer uma tributação ostensiva que, por sua vez, demanda o aumento da estrutura administrativa, levando a um Estado cada vez mais poderoso.
A contribuição do autor para a ideia de Estado fiscal-militar como um método para compreender os estados africanos nesse período é indicativo de sua abordagem sobre a história africana. Para Green, as revoluções e transformações sociais simultâneas ocorridas na África, Ásia e Europa não foram coincidências; ao contrário, elas devem ser consideradas como evidências da interdependência transnacional e da conexão de longa duração. Assim como outros autores recentemente, Toby Green situa esses movimentos populares no interior da Era das Revoluções, período de transformações políticas e sociais globais entre 1775 e 1850. O foco de Green no descompasso da acumulação de capital entre a África e o Ocidente permite que o autor considere mais detidamente do que outros autores as diversas implicações da era revolucionária. Ele enfatiza que a inclusão da África na Era das Revoluções não significa que suas consequências foram as mesmas da Europa ou das Américas. Embora movimentos revolucionários nascessem por todo o mundo, os fundamentos econômicos desiguais significaram que as consequências da Era das Revoluções levariam a diferentes resultados na África.
O livro situa a África Ocidental no interior de uma narrativa mais ampla da história econômica global, oferecendo uma porta de entrada estimulante e acessível para os não especialistas em história da África pré-colonial. Cada capítulo revisita a premissa fundamental do livro: as tendências sociais e econômicas na África pré-colonial só podem ser entendidas através de uma perspectiva global, e vice versa. A repetição dessa mensagem é justificável diante da persistência dos mitos que circulam nas páginas das histórias gerais mais divulgadas, mitos como o papel do comércio livre em inevitavelmente promover riqueza, da economia estática africana baseada no escambo e de que os eventos da história africana estavam apartados dos acontecimentos em outras partes do mundo. A conclusão de A Fistful of Shells enfatiza fortemente o significado do projeto do autor de combate a esses mitos.
O livro também oferece importantes intervenções para os acadêmicos no campo da História Atlântica e da História da África. O foco na história do dinheiro é um caminho frutífero (e relativamente pouco explorado) para iluminar temas de importância política, social e econômica na história africana. De fato, o livro se torna mais convincente quando o autor reflete sobre as maneiras pelas quais as transformações econômicas estavam ligadas às dinâmicas culturais. Por exemplo, as moedas “fracas” africanas eram valorizadas também por sua função nas práticas religiosas e rituais. Entre os igbos, os cauris – as conchas aludidas por Toby Green no título do livro – eram acumuladas com o propósito de pagar o ingresso em sociedades secretas. Na Senegâmbia e outras regiões, os cauris eram usados para adivinhação. Mas apesar de sua importância cultural e religiosa, as moedas locais como os búzios não tinham valor global devido a “uma visão de mundo que privilegiava a acumulação de excedentes” (p. 238). Toby Green sugere que o desenvolvimento das economias africanas e europeias tomou diferentes trajetórias em parte por conta das visões divergentes sobre valor e acumulação. Assim, embora este livro contribua para o campo da história econômica africana, Green nos lembra dos riscos de contar a história das moedas e do comércio em termos puramente econômicos.
A ligação entre cultura e economia se reflete nas fontes da pesquisa. A Fistful of Shells usa uma gama diversa de fontes orais e de arquivo, o que ajuda a movimentar a análise do nível global para o nível local. Em particular, a inclusão da tradição oral e da arte torna o livro altamente envolvente. Para um leitor acadêmico, no entanto, a atenção do livro à legibilidade não é totalmente satisfatória. Por exemplo, o engajamento direto de Green com a bibliografia relevante acontece nas notas no final do livro ao invés de se situar no corpo do texto. Seus argumentos econômicos sobre oferta de moeda, inflação e trocas são provocativos, mas não são claramente apoiados pelas fontes. Pesquisa adicional para demonstrar a evidência quantitativa para suas afirmações seria bem vinda para os leitores mais interessados. Mas de modo geral, A Fistful of Shells oferece uma reformulação reflexiva e vibrante das narrativas sobre o comércio e as sociedades da África pré-colonial, além de novos e estimulantes direcionamentos para um estudo mais aprofundado da história econômica da África.
Nota
1 O antigo reino do Benim se localiza na atual Nigéria, e não deve ser confundido com a atual República do Benim (antigo Daomé). N. T.
Resenhista
Abigail Warchol – University of North Carolina at Chapel Hill. https://orcid.org/0000-0001-9772-6200
Referências desta Resenha
GREEN, Toby. A Fistful of Shells: West Africa from the Rise of the Slave Trade to the Age of Revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 2019. Resenha de: WARCHOL, Abigail. Situando a África Ocidental pré-colonial na história econômica global. Trad. da resenha Carlos da Silva Junior. Afro-Ásia, n. 64, p. 600-605, 2021. Acessar publicação original [DR/JF]
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