A elite do atraso: da escravidão à lava jato | Jessé Souza
Jessé de Souza constrói seu livro: A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato, da Editora Leya, como resposta crítica ao clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, publicado em 1936. Não obstante, analisa vários outros autores, como Roberto DaMatta, Gilberto Freyre, dentre outros, para formar sua convicção e justificar sua teoria.
O Livro foi publicado em 2017 e é dividido quatro capítulos. No primeiro deles Souza discorre sobre o tema “O racismo de nossos intelectuais: o brasileiro como vira-latas”. No segundo capítulo “A escravidão é nosso berço” aborda o mundo que a escravidão criou e as teses de Gilberto Freyre. No terceiro capítulo “as classes sociais do Brasil moderno”, aborda a criação, com o fim formal da escravidão, da “ralé de novos escravos”, os conflitos de classes e as frações da classe média. No quarto capítulo, “a corrupção real e a corrupção dos tolos” reflete sobre o patrimonialismo, a grande mídia e a operação lava jato.
Souza analisa três eixos em sua obra. No primeiro refuta a ideia de que a semente de toda sociabilidade brasileira é a continuidade do patrimonialismo de Portugal. Para ele as raízes de nossa sociedade remontam da experiência com a escravidão, que foi excludente e perversa e ainda hoje reflete na sociedade.
No segundo eixo o autor conclui que as classes sociais brasileiras são frutos de construções socioculturais e que a busca por privilégios e distinções deram origem a construções de alianças e preconceitos que revelam o padrão histórico das lutas políticas do Brasil de antes e de agora.
Esta disputa por criação e manutenção de privilégios, essas construções de alianças e conflitos entre as classes são distorcidas e ocultadas. Para isto criam a ideia de uma identidade nacional generalizada. Para Souza, Sérgio Buarque de Holanda oculta essas disputas sociais ao criar a ideia do “homem Cordial”. No mesmo sentido o faz DaMatta ao abordar o homem do “jeitinho brasileiro”. Colocar todos os brasileiros no mesmo “balaio” faz parecer inexistirem diferenças, conflitos, contradições, lutas de classes, privilégios, exclusões e descontentamentos.
Outra forma de ocultação é a concepção de que conflito se situa não a nível de classes sociais, mas entre um Estado corrupto que rouba e lesa o brasileiro versus um mercado virtuoso pronto para agir, sem interferência Estatal, pelo bem estar de todos. Esta ideia ainda hoje é fortemente difundida pela mídia e pela elite, e absorvida pelas classes médias.
De acordo com Souza o discurso elitista liberal usa os conceitos de patrimonialismo e populismo para tornar possível justificar e fortalecer alianças antipopulares que configuram o Brasil moderno, desde os anos de 1930, e para justificar a privatização de bens públicos.
No terceiro Souza realiza uma análise do atual momento vivido no Brasil. Para o autor a mídia, que não cria conhecimento, mas distribui, enfatiza e oculta alguns dados, de acordo com seus interesses políticos e comerciais, usa do populismo velado para justificar ataques contra o PT – Partido dos Trabalhadores, favorecer privilégios da elite e interesses do mercado internacional. Para o autor, a rede Globo e a operação Lava Jato atuam em prol do interesse do mercado internacional.
Para Souza o PODER é questão central dentro de toda sociedade. Quem detém o poder determina privilégios, determina quem manda, quem obedece e quem é excluído. Nesse contexto, o dinheiro age em nome de quem tem o poder.
Para análise do poder, o autor discorre que, no campo das Ciências Sociais, o paradigma “racista” que até 1920 se baseava na biologia, na cor da pele e traços fisionômicos e era usado para explicar os comportamentos sociais, foi substituído pelo paradigma “culturalista”. Passou-se a entender, nacional e internacionalmente, que o estoque cultural que estas pessoas herdam influenciam seus comportamentos e explicam porque alguns povos e nações são ricos e adiantados e outros pobres e atrasados.
Para Souza o Culturalismo é uma falsa ruptura com o paradigma racista cientifico. Segundo o autor, no Brasil, as ciências sociais dominantes ainda repetem este falso rompimento, e seu culturalismo na verdade traz um racismo implícito baseado no preconceito fenotípico ou racial. Para o autor a separação de indivíduos em primeira, e segunda classe, comprovam sua teoria e legitimam a ideia de superioridade inata de uns, que são tidos como honesto desde o berço e superiores no intelecto e na moral versus a inferioridade inata doutros.
Gilberto Freyre criou o paradigma culturalista brasileiro vigente até hoje e dominado pelas falsas ideias da continuidade com Portugal e da emotividade como traço singular dessa cultura. Foi ele quem construiu a versão dominante da identidade nacional. Para Freyre a sociedade se pautaria, tanto na política como cultura, no particularismo da família patriarcal. O chefe da família era autoridade absoluta e despótica e não havia limites à autoridade pessoal do senhor de escravos e terras.
O Brasil colônia tinha um patriarcalismo familiar e o Brasil do Império permitia a ascensão do mulato bacharel para atuar junto ao Estado, um símbolo de modernidade hibrida, patriarcal mas também burguesa. Nesta época a vestimenta ganhou importância para distinção de ascensão social.
O sadismo, o mandonismo sai da esfera privada e invade a esfera pública, diferentemente do patrimonialismo de Buarque de Holanda, pois para este último, a corrupção, o vampirismo encontra-se dentro do Estado.
Buarque de Holanda criou a noção de patrimonialismo, que defende que o Estado brasileiro é um alongamento do homem cordial, que público e privado se misturam, que o Estado abriga a elite e se pauta mais pela pessoalidade e pelos laços de sangue e afetividade.
Enquanto americanos criam seus heróis e usam da impessoalidade, o brasileiro molda sua identidade no complexo de vira latas, seguindo as ideias de Buarque de Holanda. O homem é emotivo, cordial e corrupto, corrupção que está, nesta visão, apenas dentro do Estado. Seguindo o raciocínio de Buarque de Holanda, seu discípulo DaMatta apelidou esse capital social das relações pessoais de “jeitinho brasileiro”.
O complexo de vira latas e o jeitinho brasileiro, ao dar uma falsa ideia de identidade brasileira pacífica e comum a todos os brasileiros, ocultam a dinâmica das lutas de classes, oculta que só há relações sociais vantajosas quem detém o poder do capital econômico e/ou capital social.
Souza defende que a dinâmica da luta de classes não deve ser percebida apenas nas esferas econômicas, como fazem o liberalismo e marxismo. Deve-se analisar e reconstruir a pré-história de cada classe, uma análise sociocultural para compreender as injustiças e não cair no engodo da meritocracia.
A análise de Souza parte do “berço”, da socialização familiar primária. Para ele cada classe social tem um tipo de socialização familiar especifica. As classes sociais se reproduzem pela força da transmissão familiar. Nessa análise, privilégios e esquecimentos/carências são decididos desde o berço. As camadas populares no Brasil são historicamente abandonadas pelo capital econômico, pelo capital cultural, monopolizado pela elite, classes médias e pelo capital social de relações pessoais. Desse modo, fica fácil compreender porque Souza crítica a ideia de Buarque de Holanda de que o brasileiro é o vira latas da história. A tese de Souza vai na contramão das ideias de Holanda.
Na visão de Souza, a elite do dinheiro detém o capital econômico, controla meios de produção material e também os meios de produção simbólicos, como jornais e canais de televisão. Esta elite passa a mandar também, de forma indireta, no capital social e político. Faz seus interesses pessoais e de manutenção de privilegio parecerem interesses gerais, de toda população. Para o autor a classe média é colonizada pelos benefícios que o dinheiro pode proporcionar. A elite exerce um controle simbólico, de convencimento, sobre as várias classes médias brasileiras. Já em relação às classes populares, a elite exerce um domínio material, com uso de repressão e violência.
Não há uma classe média homogênea e conservadora, mas as classes médias mantem certos privilégios e, no geral, sentimentos de desprezo em relação aos pobres e inveja em relação aos ricos. Talvez, por este motivo, em geral, engolem o discurso da meritocracia e da superioridade moral.
O autor destaca que no Brasil não há televisão pública e que os interesses da mídia televisiva são comerciais e não visam assegurar a circulação de argumentos em disputa. Não há pluralidade de debates com fito a permitir que os telespectadores construam opiniões autônomas e independentes. Há sim manipulação, programas repetem uma mesma opinião e criam uma fraude, com interesse de massificar a opinião pública, a manipular e influenciar as pessoas, retirando-lhes a capacidade de pensarem por si mesmos. Souza cita a rede Globo como grande exemplo de fraude e de manipulação midiática a serviço da elite do atraso. A mídia brasileira privatiza a opinião pública a serviço do dinheiro e da elite que detém o poder.
Para Souza a dominação não é mais por raça, mas por classe. A atual classe “ralé” é composta hoje por todos os tons de pele; são os pobres, os que herdam todo ódio e desprezo que os escravos negros detinham. A matança de pobres comove a poucos que detém privilégios. A “ralé” constitui a classe abandonada e odiada. Para o autor, o que levou ao golpe de 2016 com o impeachment da presidente Dilma, foi o fato do Partido dos Trabalhadores, alterar essa estrutura secular, ao dar visibilidade aos pobres e tentar melhorar minimamente suas condições socioeconômicas.
As reflexões de Souza vão além da ideia de herança cultural portuguesa. Ele toca o dedo na ferida, enfrenta a questão das desigualdade do Brasil que datam da escravidão e ainda marcam a sociedade moderna. Enfrenta também a corrupção midiática e do mercado, questões até então intocadas pela maioria dos autores. Discorre sobre questões atuais, como a PEC55 que congela por 20 anos investimentos em saúde e educação.
Souza acredita que o patrimonialismo e o populismo são usados para ocultar diferenças sociais, lutas de classes, forças corruptoras do mercado, preconceitos, conluios inter-classes, e para legitimar a exploração da classe popular pela elite e pelas classes médias, com o objetivo de perpetuar a manutenção do poder e dos privilégios.
O autor desnuda mecanismos de controle do capital econômico brasileiro, inclusive o controle midiático e simbólico, que, segundo o autor, operam no país a muito tempo e foram tornados invisíveis, propositalmente, para que o povo, não percebesse a rapina e o controle a que é submetido. O livro é um convite a reflexão, sobretudo sobre o patrimonialismo, a corrupção atribuída a um Estado demonizado e a corrupção invisível do mercado e, independente de se concordar ou não com as ideias do autor, merece ser lido pelos brasileiros, para formação de um pensamento crítico e reflexivo.
Resenhista
Giselle Paiva Rezende – Bacharel em direito pela UNITRI, pós-graduação lato sensu em Direito processual: grandes transformações pela Universidade Anhanguera – Uniderp e graduanda em licenciatura e bacharelado em história na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Referências desta Resenha
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017. Resenha de: REZENDE, Giselle Paiva. A Elite do atraso: uma reflexão sobre mecanismos de controle, patrimonialismo, corrupção Estatal e a corrupção invisível do mercado. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 32, n. 1, p. 157-163, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR/JF]