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Uma história feita por mãos negras | Beatriz Nascimento, organizado por Alex Ratts

Beatriz Nascimento | Imagem: AdUFRJ

Nascida em Aracaju (SE), Maria Beatriz Nascimento (1942-1995)[1] produziu reflexões diversas e dispersas em artigos, entrevistas, roteiros cinematográficos sobre a história do negro no Brasil, ganhando visibilidade no debate historiográfico no país, nos últimos anos, por conta da publicação de seus textos em livros (Ratts, 2006; 2021), reveladores da atualidade de suas ideias sobre as relações raciais e de gênero. Graduada em História, em 1971, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela contribuiu, decisivamente, para a rearticulação do movimento negro no Rio de Janeiro, seja “participando das reuniões no Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), situado na Universidade Cândido Mendes (UCAM)”, seja criando coletivos como o Grupo de Estudos André Rebouças (GTAR), na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela cursou especialização em História do Brasil, na Universidade Federal Fluminense, ingressando no Mestrado Acadêmico, sem concluí-lo (Pinn; Reis, 2021, p. 3). Em 1995, o curso de Mestrado na Escola de Comunicação, na UFRJ, sob a orientação de Muniz Sodré, foi interrompido, abruptamente, por sua morte prematura. Grande parte dessa experiência de vida e trajetória acadêmica está no livro Uma história feita por mãos negras, organizado por Alex Ratts, e lançado em 2021.

A recuperação de suas ideias está vinculada à emergência das perspectivas decoloniais dos estudos de gênero e de raça no contexto da presença de governos de centro-esquerda no Brasil, entre 2003-2016, haja vista que os atuais “estudos sobre escravidão, o movimento social e operário, o tempo presente, a memória, a história da historiografia, dentre outras”, estão em conexão, consciente ou não, com as “pautas que emergiram da luta pela redemocratização no país, desde a década de 1970” (Pereira, 2022, p.31).

Se as questões por ela levantadas, nos anos 1970 e 1980, encontraram pouca reverberação no meio acadêmico, a emergência das lutas antirracista e feminista, nas últimas décadas, tornou imprescindível retomar seus escritos esparsos, especialmente em um contexto negacionista da violência da escravidão e da nefasta “ideologia de gênero”, por parte da extrema direita, em que transparecem formas radicais e perigosas de fundamentalismos (Pereira, 2022, p.68).

Ao pensar o Brasil em suas inter-relações com Europa e África, Beatriz Nascimento estabeleceu uma “crítica da colonização, afinada com os processos de descolonização política e contra o colonialismo cultural” (Ratts, 2021, p. 18). Para a historiadora, “a dominação ocidental se encarregou não só de usar fisicamente seus dominados, mas também, sob forma de ideologia, impregnou-os de seus hábitos, de seus fins, de sua moral”. Para além da escravidão, a historiadora propunha a inclusão da história vivida na escritura da história do negro no Brasil. Não mais como a Etnografia e a Sociologia, mas escrever “a nossa história, buscando nós mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos complexos, estudando-os, não os negando”. Assim, o negro se veria como partícipe da formação nacional e não como vítima. Ao mesmo tempo, desconstruiria a ideia de que, apesar de se achar europeu, o brasileiro era tão miserável e “inculto” quanto seus escravos. Nessa contestação da ideologia dominante da democracia racial vigente, ela clamava pela “fidelidade histórica” para que se estabelecesse o reexame da cultura do negro no Brasil (Nascimento, 2021, p. 50, 45, 54 e 51).

Para a autora, o “preconceito racial contra o negro é violento e ao mesmo tempo sutil”. Ele “existe latente e muitas vezes vem à tona nas relações entre nós mesmos”. As agressões advindas da “senzala ainda presente” se transformavam em recalques de uma história ainda não escrita, “ainda não abordada realmente”. Por isso, ela afirmava, a história do negro “ainda está por fazer, dentro de uma história do Brasil ainda a ser feita” (p. 40, 44 e 45). A discriminação racial, continua a autora, tem relegado os negros aos lugares mais baixos da hierarquia social, sendo que a “‘herança escravista sofre uma continuidade no que diz respeito à mulher negra”. No processo de modernização social no Brasil, esse segmento permaneceu nos empregos tradicionais, como doméstica, ou como operária industrial, por falta de acesso à educação. Ao mesmo tempo, a exploração sexual da mulher negra, originada pela colonização e moral portuguesas, se perpetuava “em estereótipos de que sua capacidade sexual sobrepuja a das demais mulheres” (p. 58 e 61).

Criticando a expressão “democracia racial”, forjado por Gilberto Freyre, a escritora interpelava: “Se somos parte integrante de uma democracia racial, por que nossas oportunidades sociais são mínimas em comparação aos brancos?” (p. 66) Citando Robert Conrad, seus escritos interrogavam por que, após “cem anos desde a libertação dos recém-nascidos, milhões de seus descendentes ainda lhe veem negada a igualdade de oportunidades imaginada para eles pelos líderes abolicionistas”? (p. 78).

Em sua crítica às relações raciais no Brasil, a intelectual negra escreveu uma resenha sobre a reedição do livro de Luís Luna, O Negro na luta contra a escravidão (1976), afirmando a permanência da explicação da “escravidão do africano segundo o velho mecanismo ideológico, o índio”. Para ela, esse argumento é racista, na medida em que se considera os africanos mais aptos ao cativeiro do que os brasileiros nativos. “Qualquer homem é passível de cativeiro” (p. 87 e 92). Entretanto, suas reflexões sobre a história do negro no Brasil se concentravam na “formação social dos quilombos como base de uma interpretação da nação e de mundo” (Ratts, 2021, p. 9), aproximando-se das reflexões de Edison Carneiro na caracterização do quilombo como síntese dialética de um fato novo, que permeou a colonização portuguesa na América, com desdobramentos até o século XIX. “Como seus correlatos na Jamaica e São Domingos, Palmares ameaça o domínio colonial, exigindo uma ação repressora mais severa”, pois os levantes indígenas também se faziam presentes no nordeste daquela época. As reflexões de Nascimento sobre o passado dos quilombos também traziam, no presente vivido, a figura heroica de Zumbi, vivo na memória nacional e “marco em nossa tradição de povo livre” (p.100 e 103).

Ao tomar o quilombo como lugar onde a liberdade era praticada, a historiadora dissertou sobre o Quilombo do Jabaquara, em Santos, já estudado por Clóvis Moura. Para a historiadora, não se pode considerá-lo com o quilombo no sentido de que “não foi organizado espontaneamente pelos ex-escravos, mas por pessoas de fora, inclusive brancas”. Contudo, isso não diminuía a sua importância por “exercer um papel fundamental na consciência histórica dos negros”, mesmo servindo para a função econômica nas docas, na exportação do café (p.105-106).

Em seu diálogo com a historiografia marxista, principalmente a de Eric Hobsbawm, seus escritos caracterizaram os quilombos como “movimentos sociais arcaicos de reação ao sistema escravista, cuja particularidade foi inaugurar sistemas sociais variados, em bases comunitárias”. Desse modo, Nascimento afirma uma “continuidade histórica entre os sistemas organizados pelos negros quilombolas e os assentamentos sociais nas favelas urbanas, assim como nas áreas de economia rural decadente com incidência de população negra e segmentos populacionais de baixo poder aquisitivo pertencentes a outras etnias” (p.118).

Encontro de Kilombos urbanos em Belo Horizonte – MG (2021) | Foto: Leonardo Ramos/CedeFes

É provável que a sua grande contribuição esteja no combate à visão estereotipada da realidade de um “quilombo”, especialmente a representação de quilombolas como criminosos e a designação de “negro fujão”. Para além do caráter de rebelião, a estudiosa projetava o conceito de “paz quilombola” para reiterar o “caráter produtivo” da “estrutura social interna, autônoma e articulada com o mundo externo”. Portanto, o que interessava era o “antes e o depois da guerra dos quilombos”, significando “muito mais a reprodução das formas conhecidas do regime colonial do que reminiscências de organizações sociais africanas”. Segundo a historiadora, “é na paz que esse modelo de estrutura social se perpetua como história do Brasil e do negro dentro dela” (p.133, 134 e 137). O quilombo, continua Nascimento, “representa um instrumento vigoroso no processo de reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior autoafirmação étnica e nacional”. Assim, “o mito da terra prometida – o Quilombo dos Palmares – e edificação do herói Zumbi, civilizador de uma cultura negra, atraem outras codificações que não as já estereotipadas pela tradição e pela história” (p. 167 e 217). É, portanto, nessa perspectiva que o movimento negro vai construir a luta para transformar o dia de morte de Zumbi em data nacional, contrapondo-se ao Treze de Maio.

Em busca da continuidade histórica dos quilombos na contemporaneidade, a historiadora realizou um trabalho de campo, dissertando sobre o Quilombo de Carmo da Mata, em Minas Gerais, por meio da memória oral, da etnografia e da observação participante. Sua investigação preliminar percebeu que a festa do Reinado representava essa continuidade histórica por se tratar de uma “manifestação impregnada de conteúdos simbólicos, no nível dos mitos afro-brasileiros”. As festas de São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e Santa Ifigênia compunham o Reinado, constituindo-se de “ternos – espécie de pequenos exércitos ou batalhões, cada um com seu comandante, sempre negro ou mestiço – que são quatro: da Congada, de Moçambique, de Catupé e do Vilão”. Sua preocupação foi “documentar não só a dramatização como os conteúdos simbólicos do Reinado” (p.141, 143 e 148).

No levantamento dos quilombos em diferentes estados, a historiadora se deparou com aqueles sob a influência de Antônio Conselheiro, no sertão baiano, no final do século XIX, o que possibilitaram uma interlocução fecunda com a obra do historiador conterrâneo José Calasans Brandão da Silva (1915-2001), seguidor das trilhas abertas por Odorico Tavares, nos anos 1940, o inaugurador de uma perspectiva pós-euclidiana de se pensar a Guerra de Canudos. Calasans (1986) considerava que os “vencidos” também têm um lugar na História, recuperando biografias dos conselheiristas como sujeitos históricos.

No trabalho apresentado para a disciplina ministrada por Calasans, no curso de pós-graduação em História do Brasil, na Universidade Federal Fluminense, em 1979, sob o título O nativismo angolano pós-revolução, a autora relatou suas experiências após a morte do presidente Antônio Agostinho Neto, em 10 de setembro de 1979, em “um país com sérias possibilidades de não alcançar uma unidade nacional e com vastas possibilidades de ser agredido”. Ali, destacou a importância do literato e do poeta no desenvolvimento do pensamento político angolano, tanto exprimindo sentimentos existenciais, quanto a “fala cáustica e primária da linguagem marxista-leninista”. Como forma de nacionalizar a produção intelectual angolana foi organizada a União dos Escritores Angolanos, preservando-se as diferenças etnolinguísticas e culturais das províncias (Nascimento, 2021, p. 176 e 188).

Já no artigo “O movimento de Antônio Conselheiro e o abolicionismo: Uma visão da história regional”, partindo da ideia de Calasans de que Canudos era o “último quilombo”, a historiadora afirmava que a interpretação da história oficial, sob a ótica do vencedor, não vinculou o movimento conselheirista “à dinâmica temporal e às condições estruturais e conjunturais da região onde ele se deflagrou”, isto é, na crise do escravismo entre 1850 e 1888. Quando Antônio Conselheiro iniciou sua peregrinação pelos sertões da Bahia e Sergipe, vindo do Ceará, “o Nordeste desloca populações escravas para a região Sudeste através do tráfico interprovincial”. Nesse contexto, esse tráfico nas províncias nordestinas possibilitou “o recrudescimento de quilombos, fugas e aglutinações”. A partir do Recenseamento Geral do Brasil de 1872, sua pesquisa constatou que o movimento conselheirista “contou não só com a presença do ex-escravo, mas também com populações pardas e pretas livres, enquanto ele durou” (p. 194, 201, 204 e 210). Assim, segundo a autora, o abandono das populações migrantes nordestinas, seja pelo imigracionismo externo, seja por causas ideológicas de inferioridade racial, possibilitou o desequilíbrio do “próprio sentido de união nacional”, contribuindo para o surgimento de Antônio Conselheiro, que aglutinou “em torno de si os povos sofridos que só encontram uma saída: o estabelecimento de sociedade baseada num sistema tradicional” (p. 208).

A potência da escrita dessa historiadora, agora redescoberta no livro recentemente organizado (e aqui apenas brevemente esboçada), evidencia a superação de se isolar a história de uma parte da humanidade de seu contexto mais amplo, pois os historiadores “devem se posicionar em favor do universalismo”. Por outro lado, vemos que o engajamento pode contribuir para o avanço da historiografia, ao trazer problemas e assuntos que não foram levados em consideração pelo resto da comunidade intelectual à época. Nessa perspectiva, o trabalho de Beatriz Nascimento pode servir para “contrabalançar a tendência crescente de olhar para dentro”, do “autoisolamento da academia”, pois, como apontou Eric Hobsbawm (1998, p.292 154), sem o engajamento, o desenvolvimento das ciências humanas “estaria em risco”.

Sumário de Uma história feita por mãos negras

  • Introdução
  • Parte I. Intelectualidade, relações raciais e de gênero
  • 1. Por uma história do homem negro
  • 2. Negro e racismo
  • 3. A mulher negra no mercado de trabalho
  • 4. Nossa democracia racial
  • Parte II. Escravismo, fugas e quilombos
  • 5. Escravos a serviço do progresso
  • 6. A incensada princesa
  • 7. Conselhos ao príncipe
  • 8. Conceitos ultrapassados
  • 9. Escravidão
  • 10. Zumbi de Ngola Djanga ou de Angola Pequena ou do Quilombo dos Palmares
  • 11. O Quilombo de Jabaquara
  • Parte III. O quilombo como sistema alternativo
  • 12. Sistemas sociais alternativos organizados pelos negros: Dos quilombos às favelas
  • 13. Quilombos: Mudança social ou conservantismo?
  • 14. Kilombo e memória comunitária. Um estudo de caso
  • 15. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra
  • 16. O nativismo angolano pós-revolução
  • 17. O movimento de Antônio Conselheiro e o abolicionismo: Uma visão da história regional
  • Parte IV. Movimento negro e cultura
  • 18. Daquilo que se chama cultura
  • 19. Atualizando a consciência
  • 20. Carta de Santa Catarina
  • 21. A mulher negra e o amor
  • 22. A luta dos quilombos: Ontem, hoje e amanhã
  • 23. Eram deuses os negros da “Pequena África” do Rio de Janeiro
  • 24. Kilombo
  • Notas
  • Bibliografia
  • Fontes

Nota

[1] Agradeço a Joyce Silva, estudante do curso de graduação em História da UFS, por ter me despertado para a importância de conhecer a obra de Beatriz Nascimento.

Referências

RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

RATTS, Alex. Introdução. NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. (organização Alex Ratts). Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

PINN, Maria Lídia de Godoy e REIS, João Carlos. Por uma História Negra: a potência teórica do pensamento de Maria Beatriz Nascimento para a (re)escrita da História. Oficina do historiador, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 1 -12, jan./dez. 2021.

HOBSBAWM, Eric. Bandidos. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1976.

HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. (organização Alex Ratts). Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Lembrança do Presente: Ensaios sobre a condição histórica na era da Internet. Belo Horizonte: Autêntica, 2022 (História e Historiografia).

CALASANS, José. Quase Biografias de Jagunços: O séquito de Antônio Conselheiro. Salvador: CEB/UFBA, 1986.


Resenhista

Antônio Fernando de Araújo Sá – Doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), professor do Departamento de História e do Mestrado em História da Universidade Federal de Sergipe e editor da Ponta de Lança– Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. Publicou, entre outros títulos, Rio Sem História? Leituras sobre o Rio São Francisco (2018) e Entre sertões e representações: ensaios e estudos (2021). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4761668150681726; ID: https://orcid.org/0000-0001-6496-4456; E-mail: fernandosa1965@gmail.com. 


Para citar esta resenha

NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras. (organização Alex Ratts). Rio de Janeiro: Zahar, 2021. 272p. Resenha de: SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Por uma história antirracista do Brasil. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.7, set./out. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/por-uma-historia-antirracista-do-brasil-resenha-de-uma-historia-feita-por-maos-negras-de-beatriz-nascimento/>.

Itamar Freitas

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