Jörn Rüsen: teoria, historiografia e didática | Margarida Maria Dias de Oliveira, Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior e Caio Rodrigo de Carvalho Lima
Jörn Rüsen | Foto: Júlio Minasi//UnB Agência
Jörn Rüsen: teoria, historiografia e didática, publicado em 2022 pela editora Cabana, reúne os textos do “I Seminário Jörn Rüsen. Um balanço da obra de Jörn Rüsen: teoria, historiografia e didática”, realizado em 2015, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Os organizadores da obra são Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior, Margarida Maria Dias de Oliveira e Caio Rodrigo de Carvalho Lima. Seu objetivo, para além de um balanço historiográfico sobre Jörn Rüsen, é fornecer subsídios para pensar o fazer histórico, o ensino de História na educação básica e a formação de profissionais de História em diálogo com a teoria da História.
Neste livro, percebi a existência de três grupos de ideias. No primeiro grupo estão textos do próprio Jörn Rüsen, nos quais expõe suas ideias, então, mais recentes. No segundo conjunto, há uma tendência em recorrer a uma narrativa sobre quem é Rüsen, qual é sua importância para a História e em qual contexto suas ideias ganharam força na Alemanha e no Brasil. Finalmente, um terceiro grupo de textos trata dos que utilizam suas ideias para pensar casos mais concretos.
O primeiro texto, “Sobre alguns fundamentos teóricos da didática da história”, é o registro de conferência de Rüsen. Estes fundamentos afirmam que o pensamento histórico e o conhecimento histórico são e devem estar enraizados na vida prática e que a Didática da História (DH), em sua íntima relação com a Teoria da História (TH), é a ciência da aprendizagem histórica. Ela deve subsidiar profissionalmente o aprendizado da História. Outro fundamento diz respeito à carência sobre as fases de desenvolvimento da consciência histórica. Mas, isto pode ser alargado a partir dos escritos sobre alfabetização histórica e progressão do conhecimento histórico.
Rüsen defende uma história global, que possa ampliar nossa ótica sobre a experiência humana. Sua proposta tem como objetivo muito mais uma reparação cultural do que propriamente uma vontade de conhecer e entender tudo, talvez naquela perspectiva iluminista que muitos poderiam pensar.
Rüsen, com isso, critica a pouca reflexão sobre o que torna a história História e o demasiado foco na narrativa. Sua ideia é que a pluralidade de experiências culturais dos alunos seja levada para a sala de aula e o professor, capacitado pela DH, possa alocá-las dentro de uma experiência humana maior. Portanto, a ideia de uma história global não se traduz na exclusão da alteridade. Ao contrário, ela faz da alteridade o meio para lidar com o outro culturalmente.
Já em seu segundo texto, “Engajamento na perspectiva da meta-história”, Rüsen tenta “corrigir um mal-entendido sobre o que significa o engajamento nos estudos históricos, na historiografia e na cultura histórica e do que ele trata” (p. 71). Sua proposição é que engajamento não está relacionado a objetividade ou subjetividade, nem tampouco a ser ideologicamente partidário ao se fazer História, mas que, se concordarmos que o conhecimento histórico nasce das necessidades de orientação na vida prática, é inevitável não ser um sujeito engajado.
O segundo bloco de textos é aberto por Arthur Alfaix – “História, teoria e liberdade: saudação a Jörn Rüsen”. Segundo ele, conhecer o passado demanda não apenas saber sobre ele, mas possuí-lo, interpretá-lo e mobilizá-lo. Portanto, a liberdade depende do conhecimento que a História pode proporcionar, de onde vem a relação entre a liberdade e a sua teoria. Neste ponto reside a principal ideia do texto.
Rüsen tem sua vida definida a partir de três pontos, a saber, sua tese sobre Johan Gustav Droysen, defendida em 1966; seu envolvimento na renovação historiográfica na Alemanha nos anos 1970; e sua mudança de foco, muito influenciada pela cultura histórica, a partir dos anos 1990.
Rafael Saddi, no capítulo “Jörn Rüsen e a didática da história”, ao fazer uma análise do pensamento de Rüsen, acaba por situá-lo, tocando em questões como a diferença entre ele e outros pensadores de sua época; e os motivos que nos levaram (em 2015) a estudar sua teoria. Considerando o contexto no qual estava inserido, na Alemanha dos anos 1960 e 1970, onde a mudança de paradigmas na História contava com historiadores os mais diversos, torna-se muito difícil definir o que é original de Rüsen. Porém, mais relevante para nós seria a segunda questão, mencionada no parágrafo anterior e que, de fato, condiz com um dos objetivos do livro e do evento de 2015, que é pensar a relação entre teoria e ensino. Saddi foi um dos poucos autores que cumpriu bem esta demanda. Segundo ele, no Brasil, “o pensamento de Jörn Rüsen produziu bastante impacto na área do ensino de História. É através dele que a reflexão sobre os processos de ensino e aprendizagem da História é levada à condição de uma autorreflexão relevante do próprio historiador sobre sua ciência” (p. 124).
Um aspecto que perpassa praticamente todos os textos desta seção é a idealização de Rüsen como o autor da metarreflexão. Os principais conceitos dele se relacionam com a forma cognitiva como narramos, interpretamos e nos relacionamos com o tempo, como é o caso da consciência histórica. Contudo, acho positivamente questionável a proposição de Saddi. O ensino de História só construiu uma autorreflexão, no Brasil, a partir de Rüsen? Talvez, o mais adequado fosse dizer que o ensino ganhou novos elementos reflexivos sob os moldes desta didática da História.
Saddi também fez uma precisa análise sobre a recepção de Rüsen, no Brasil, constatando que a não tradução de outros autores faz com que o percebamos como a figura de autoridade para a Didática da História. Sua dessacralização, porém, é feita quando Saddi traz à tona outros nomes que estavam no mesmo movimento na Alemanha Ocidental, chegando à conclusão de que suas ideias são tributárias a este movimento.
A outra razão para o estudo de Rüsen seria o enfrentamento das contingências da vida. Vivia-se o prelúdio do impeachment de Dilma Rousseff e os primórdios das Fake News, e aqui tem-se a replicação de um modelo esquemático, muito difundido, mas não menos verdadeiro. Resgata-se a origem de Rüsen na crise como ponto de inflexão para o repensar a História e este repensar como uma fenda de onde emerge a Didática da História.
Astor Diehl, no capítulo “A re(li)gião dos historiadores”, retoma o contexto de crise da História na Alemanha para chamar a atenção sobre o nosso contexto (imigrantes, guerras, atentados etc.) e como ele também deveria nos fazer repensar a/na/a partir da História. Sua ideia é que, ao tentarmos criar orientações/reorientar a História, deveríamos “revisitar autores e obras que propunham entender a ciência histórica no processo criativo para o estabelecimento de renovados fundamentos, estratégias de pesquisa e, sobretudo, reorientar os sentidos e funções do conhecimento histórico” (p. 234).
Esta afirmação vem de sua inquietação com o fato de que é possível “redescobrir as possibilidades de diálogos no pensamento histórico de tradições e fundos epistemológicos com dimensões diferentes, porém não menos importantes” (p. 233/34). Por isso, Diehl fez um histórico das mudanças pelas quais a forma de narrar a História passou: do abandono às concepções positivadas do século XIX, da forma materialista até o surgimento das histórias culturais.
É neste sentido que surge Rüsen, como símbolo de uma tentativa de “estabelecer os fundamentos da ciência histórica, os princípios da pesquisa histórica e as formas e funções do conhecimento histórico, como está anunciado nos subtítulos de sua trilogia” (p. 232). Isso dialoga, por exemplo, com o que Saddi fala, também, sobre a diferenciação do pensamento de Rüsen. Assim como Freitas, mais adiante, Diehl aponta a necessidade de dimensionar a obra de Rüsen e seu impacto (no Brasil). É esse também um texto de demandas.
O terceiro bloco de leituras da coletânea inclui, inicialmente, “A recepção da teoria da história de Jörn Rüsen em periódicos brasileiros especializados (2001-2015)”, de Itamar Freitas. O texto pretende analisar a recepção da Teoria da História de Rüsen no Brasil, entre 2001 e 2015, utilizando trabalhos publicados em periódicos de nível A1 e A2. Ao longo do texto, se percebe que recepção tem a ver com a forma e o perfil, e não necessariamente com qualquer juízo de valor.
Freitas reuniu 6.000 textos, dos quais 120 fazem menção à Teoria da História de Rüsen – metade dos que o citam estão na revista História da Historiografia, sendo a maioria de doutores (83%), seguidos de mestres (14%) e graduados (2%). Esses textos não foram publicados em revistas de Ensino de História e, em sua maioria, são de pessoas ligadas às universidades de Brasília, Goiás e Paraná.
Freitas conclui que não se adotou no Brasil a proposta de transformar em fonte os distintos suportes que se ocupam do passado, que constituem e são constituídos na complexa relação entre cultura histórica e consciência histórica. Todavia, se incorporou sua noção de homem. Isso concorda com o fato, também constatado, de que a maioria dos trabalhos se preocupa em discutir categorias da teoria ruseniana. Finalmente, Freitas ressalta que, ao não observar que Rüsen não é um especialista em aprendizagem histórica escolar, podemos cometer diversos equívocos caso ponhamos suas teses em aplicação direta às questões do ensino. Freitas, acima de tudo, aponta uma readequação do pensamento de Rüsen no Brasil. O que se vê, no entanto, quando ele consegue mapear geograficamente a recepção do autor e de que forma ela se dá, é a construção de uma rede teórica e um ambiente dentro do qual faça sentido reproduzir as ideias de Rüsen. Em outras palavras, sua aceitabilidade é, na verdade, uma construção.
O último bloco de textos do livro inclui Sérgio Duarte, que escreveu “A ação comunicativa e teoria da história: aproximação de Habermas e Rüsen”, comparando Rüsen e Habermas, entendendo que a consciência histórica é um elo entre os dois autores. Duarte defende a compreensão histórica (tipificação da compreensão) das práticas históricas (aquilo que se pode compreender) como forma de racionalização do conhecimento que hoje validamos como História, sem que isso se confunda com uma história da profissionalização, observando as formas de narrar como próprias do seu tempo e investidas de evidências sobre ele e ver nele a realização de uma ação que almejava a compreensão do indivíduo, própria da modernidade.
Pedro Spinola Pereira Caldas, autor do capítulo “Experiência traumática e conhecimento histórico: reflexões a partir da obra de Jörn Rüsen”, procura pensar questões próprias à modernidade, a partir de Rüsen. Para isso, dialoga com as obras É isto um homem?, de Primo Levi, e Reconstrução do Passado, de Jörn Rüsen, além de autores como Marx, Weber e Foucault . Ele afirma que a crise como paradigma de orientação pode se desvincular de eventos catastróficos, como o Holocausto, e ser concebida no mundo do trabalho, elemento constitutivo da modernidade. Neste ponto, vê-se que Caldas destoa dos demais autores que sempre evidenciam o contexto de crise na Alemanha no qual se deu a gênese da teoria de Rüsen, como se tentasse demonstrar como esta narrativa pode realmente nos servir.
Esta mudança é possível graças a uma outra perspectiva. Tendemos a identificar traumas quando alguém não consegue criar representações (sentido) sobre um determinado passado, mas isso não é verdade. Caldas fala isso porque é normal que tratemos o Holocausto de tal forma, ou seja, impomos a ele a impossibilidade de permitir aos indivíduos a ressignificação, a construção de sentido. Em suma, damos o caráter de crise catastrófica. Assim, a crise pode sair da dimensão individual e passar a existir coletivamente. Deveríamos tentar construir “nossa crise” a partir do trabalho. Isso é interessante, porque tentando seguir os moldes da experiência alemã, muito se tentou converter a Ditadura civil militar em nosso Holocausto. Mas, a questão do trabalho pareceu mais latente.
Ana Carolina B. Pereira, em “O formalismo teleológico em Jörn Rüsen: perspectivas sobre a interculturalidade”, faz um contraponto ao pressuposto universalista neokantiano de Rüsen, utilizando as perspectivas decoloniais para reafirmar a possibilidade de criarmos diferentes sentidos por meio do perspectivismo ameríndio. Seria necessário apropriar-se não só da organização social, mas da ontologia do pensamento ameríndio. A questão passa a ser como empregar esse pensamento diante de um modelo humanista como o de Rüsen. Mais importante seria, na verdade, respeitar esse pensamento dentro deste grande cálculo da sociedade.
Tanto Caldas como Pereira foram contraditados por Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior, no capítulo “Trauma e mito: questões aos limites em diálogo com a teoria de Rüsen”. Ele estabelece “um debate a partir das ideias de trauma e de mito como fundantes para a escrita e o ensino de história, expandindo a discussão no que se refere aos seus aspectos interculturais” (p. 14). Para ele, o desafio da teoria da história é o como pensar-se historicamente a partir de culturas não-ocidentais.
A obra aqui analisada situa Jörn Rüsen e sua produção, ora academicamente elogiando-o, ora criticando-o. Neste sentido, demostra um certo amadurecimento das discussões uma vez que a escrita sobre este teórico saiu de uma esfera mais restrita, como a de seus ex-orientandos, e chegou a pesquisadores que se apropriam de suas ideias para pensar suas próprias realidades. Mais do que isso, o livro promoveu algo talvez inédito à época: a dessacralização de Jörn Rüsen. Assim, reafirmou sua não exclusividade na formulação de determinadas ideias, a forma como e por quem ele foi recepcionado no Brasil, quais os verdadeiros pretextos que devem ou deveriam nos direcionar para sua teoria e a demonstração do que faz o historiador, historiográfica e cognitivamente.
Contudo, ao longo do livro não são tipificados os subsídios que se pretende oferecer ao ensino de História, professores e/ou estudante, os quais apenas após a leitura se percebe serem de ordem epistemológica, o que requer uma leitura atenta. Também não há considerações sobre os elos possíveis entre a Teoria da História de Rüsen e o ensino de História, o que seria uma das principais funções sociais da obra. Em decorrência disso, cria-se a necessidade de levar as discussões trazidas pelo livro para campo das práticas ou, antes mesmo, pensar em como fazê-lo.
Outro ponto a destacar é a confusão na constituição do livro como uma obra e a intenção de sua elaboração em relação a seu evento originador. Como explícito na introdução, havia uma clara preocupação em não apenas discutir as ideias de Rüsen naquela época – o que é bem executado aqui –, mas também colaborar na formação de profissionais em relação à sala de aula. Mas, no livro, como esta intenção foi traduzida? A simples replicação de textos que foram escritos para as conferências fez com que esta proposta se desconectasse e acarretasse apontamentos como os feitos no parágrafo anterior. Desta forma, o livro é destinado, em primeiro lugar, para especialistas e, então, para estudante ou professores com certo conhecimento sobre Rüsen.
No que tange as tarefas relativas à Teoria da História, concluímos, a obra cumpre seu objetivo, sem aqui lhe propor tarefas que seriam bem-vindas (embora não estivessem no seu escopo de finalidades): não tratar de uma epistemologia própria/aplicada no ensino ou apresentar aproximações e distanciamentos da forma como podemos pensar o fazer histórico em relação a outras áreas, por exemplo. Há, de fato, a possibilidade de pensarmos, a partir de seus textos, inúmeras questões sobre o fazer/ensinar História. O único deslize, se é que assim posso chamar, parece estar localizado no que já foi comentado a respeito do ensino.
Sumário de Jörn Rüsen: teoria, historiografia e didática
- Apresentação | Margarida Maria Dias de Oliveira, Francisco das Chagas F. Santiago Júnior e Caio Rodrigo Carvalho Lima
- História, teoria e liberdade: saudação a Jorn Rusen | Arthur Alfaix Assis
- Sobre alguns fundamentos teóricos da didática da história | Jörn Rüsen
- Über einige theoretische Grundlagen der Geschichtsdidaktik | Jörn Rüsen
- Engajamento na perspectiva da meta-história | Jörn Rüsen
- Engagement in the perspective of metahistory | Jörn Rüsen
- Ação comunicativa e teoria da história: aproximação de Habermas e Rüsen | Sérgio Duarte
- Jorn Rusen e a didática da história | Rafael Saddi
- A recepção da teoria da história de Jorn Rüsen em periódicos brasileiros especializados (2001-2015) | Itamar Freitas
- Experiência traumática e conhecimento histórico: reflexões a partir da obra de Jorn Rüsen | Pedro Spinola Pereira Caldas
- O “formalismo teleológico” em Jorn Rüsen: perspectivas sobre a interculturalidade | Ana Carolina B. Pereira
- Trauma e mito: questões aos limites em diálogo com a teoria de Rüsen | Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior
- A re(li)gião dos historiadores: Jorn Rusen | Astor Antônio Diehl
- Posfácio | Margarida Dias
- Índice remissivo
- Autores
Resenhista
Matheus Oliveira da Silva – Mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicou, dentre outros trabalhos, “O(s) campo(s) do ensino de História, histórico, perspectivas e desafios: entrevista com o professor Itamar Freitas”, “Progressão do conhecimento histórico: um olhar sobre a produção brasileira (2014-2019)” e “Progressão do conhecimento histórico na primeira versão da Base Nacional Comum Curricular”; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5928-6977; E-mail: matheos_oliveira@hotmail.com
Para citar esta resenha
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas F.; LIMA, Caio Rodrigues Carvalho. Jörn Rüsen: teoria, historiografia e didática. Ananindeua: Cabana, 2022. 268p. Resenha de: SILVA, Matheus Oliveira. Para ler Jörn Rüsen. Crítica Historiográfica. Natal, v.2, n.7, set. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/um-historiador-e-sua-filosofia-resenha-de-jorn-rusen-teoria-historiografia-e-didatica-organizado-por-margarida-maria-dias-de-oliveira-francisco-das-chagas-fernandes-san/>